“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (152)
7.5.4. Unidade e serviço
A nossa comunhão está comprometida com o aperfeiçoamento dos santos. A fraternidade cristã não existe em função de uma solidariedade pecaminosa, onde cada um cultiva o seu pecado com apoio fraterno de seus irmãos. Não confundamos misericórdia perdoadora com complacência conivente e promíscua. Na realidade, há um compromisso de nos aperfeiçoar mutuamente dentro do propósito estabelecido por Deus para que não mais sejamos imaturos.
Jesus Cristo em sua oração demonstra que agiu em prol da preservação desta unidade cujo modelo é a própria Triunidade Santa. A sua oração é uma expressão do seu propósito eterno demonstrado de forma contundente em seu Ministério terreno. Sumariamente, partindo desta oração, podemos recordar algumas coisas a respeito do Filho:
a) Demonstrou o sentido último de seu Ministério na glorificação do Pai e salvação do seu povo: Jo 17.1-4.
b) Revelou a glória do Pai ensinando-lhes a sua Palavra: Jo 17.3,6,8,14,22,25,26.
c) Cumpriu cabalmente a sua missão: Jo 17.4. Os seus discípulos eram a prova embrionária, mas concreta, da realização eficaz de seu Ministério.
d) Agiu sempre em prol de todos os discípulos revelando o amor do Pai: Jo 17.2,6ss,23.
e) Intercedeu por eles – e pelos seus futuros discípulos – a fim de que fossem preservados em santidade, alegria e unidade: Jo 17.9,11,13,15, 17,20,21.[1]
f) Manifestou o padrão de unidade ao qual eles devem se espelhar: Jo 17.11,21.
g) Inspirado na Missão concedida pelo Pai, agencia-se por intermédio de todos os Seus discípulos dando-lhes uma missão: Jo 17.18.
h) Consagrou-se inteiramente à sua obra para salvar os seus: Jo 17.19/Jo 17.4-5.
i) Demonstrou o prazer de estar na companhia espiritual e amorosa do Pai e de seus discípulos: Jo 17.24,26.
Analisemos outros dois textos os quais podemos considerar como paralelos a este.
No capítulo 4 da Epístola aos Efésios, Paulo está tratando de modo especial da unidade da Igreja dentro da variedade de funções. Assim, está implícita a figura tão cara a Paulo, a da Igreja como Corpo de Cristo, mostrando que o segredo do bom funcionamento do corpo é a utilização de todas as suas partes.
Organicamente, cada membro, por mais insignificante que nos possa parecer, tem um papel importante a desempenhar dentro do equilíbrio do todo. Certamente, existem diferenças de beleza e elegância entre nossos órgãos, todavia, todos são essenciais. Do mesmo modo, na Igreja de Cristo, ainda que haja diferenças entre nós, e não sejamos considerados pelos homens como dignos de algum valor, o fato é que todos somos essenciais no serviço do Reino: Devemos frisar no entanto, que não somos ontologicamente essenciais (como tudo que foi criado, somos contingentes); antes, Deus, por graça nos tornou essenciais no seu Reino e, por isso, agora o somos.
Assim, é Deus mesmo e não outro, quem nos concede talentos para servi-lo (Ef 4.7,11/1Co 12.11,18), portanto a nossa atitude de consciente e real humildade (1Co 4.7; 1Co 15.10), visto que Deus nos concedeu os talentos para o serviço do Reino: “A manifestação do Espírito é concedida a cada um, visando a um fim proveitoso” (1Co 12.7). Paulo continua: “Para que não haja divisão no corpo; pelo contrário, cooperem os membros, com igual cuidado (merimna/w = “preocupação”),[2] em favor uns dos outros” (1Co 12.25)
Calvino comenta:
O Senhor nos colocou juntos na Igreja, e destinou cada um ao seu posto, de tal maneira que, sob a única Cabeça, venhamos a nos auxiliar uns aos outros. Lembremo-nos também de que tão diferentes dons nos têm sido concedidos para podermos servir ao Senhor humilde e despretensiosamente, e aplicar-nos ao avanço da glória daquele que nos tem dado tudo quanto temos.[3]
Deste modo, os talentos recebidos, foram-nos concedidos para que os usássemos para a edificação da Igreja, não para a disseminação de discórdias, ou para usar de nossa influência para dividir, denegrir, solapar ou mesmo para a nossa projeção pessoal: Deus não desperdiça os dons “por nada e nem os destina para que sirvam de espetáculo”.[4] Mas, para a edificação. O objetivo é claro: “Com vistas ao aperfeiçoamento (katartismo/j[5] = “preparar”, “equipar para o serviço”) dos santos” (Ef 4.12).
Maringá, 16 de setembro de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] “O propósito original de Deus foi que o ser humano partilhasse a intimidade familiar jubilosa da Trindade” (J.I. Packer, O Plano de Deus para Você, 2. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2005, p. 125).
[2]A palavra tem o sentido de solicitude, preocupação e inquietação. Ela ocorre 18 vezes no NT. O seu uso no Novo Testamento não tem um sentido apenas negativo; Paulo a emprega positivamente, como, por exemplo, no texto citado (1Co 12.25). Do mesmo modo, quando se refere a Timóteo: “Porque a ninguém tenho de igual sentimento, que sinceramente cuide (Merimnh/sei) dos vossos interesses” (Fp 2.20) e, também quando descreve as suas lutas em favor da Igreja: “Além das cousas exteriores, há o que pesa sobre mim diariamente, a preocupação (Me/rimna) com todas as Igrejas” (2Co 11.28).
[3] João Calvino,Exposição de 1 Coríntios, (1Co 4.7), p. 134.
[4] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 12.7), p. 376.
[5]A ideia da palavra é de preparar de forma adequada e própria (espiritual, intelectual e moral) para a execução de determinada tarefa. O seu sentido é mais funcional do que qualitativo (Cf. R. Schippers, R. Retidão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 4, p. 215). O verbo katarti/zw tem um amplo sentido de restauração: consertar as redes (Mt 4.21; Mc 1.19); boa instrução (Lc 6.40); perfeita união (1Co 1.10); aperfeiçoar/equipar [2Co 13.11; Hb 13.21; 1Pe 5.10; 2Co 13.9 (kata/rtisij)]; correção (Gl 6.1); reparo (1Ts 3.10), formar (Hb 10.5; 11.3). O termo grego utilizado por Paulo, no campo cirúrgico, era usado para “consertar um osso quebrado”. “Ajustar em conjunto num só corpo” (David M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 172). “A ideia fundamental do termo é de pôr nas condições em que devem estar já uma coisa ou uma pessoa” (William Barclay, Efésios,Buenos Aires: La Aurora, 1973, p.156). Calvino diz que o termo grego “significa literalmente a mútua adaptação [= coaptitionem] de coisas que devem ter simetria e proporção; assim como, no corpo humano, há uma combinação apropriada e regular dos membros; de modo que o termo é também usado para ‘perfeição’. Mas como a intenção de Paulo aqui é expressar um arranjo simétrico e metódico, prefiro o termo constituição [= constitutio]. Pois, estritamente falando, o latim indica uma comunidade, ou reino, ou província, como constituída, quando a confusão dá lugar ao estado regular e legítimo” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998,(Ef 4.12), p. 124).