“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (149)
7.5.3.2. Na vida comunitária
Podemos ver que em muitos casos a comunhão era real, não meramente declarativa. A igreja não se preocupava em simplesmente manter uma comunhão sintomática, repleta de sinais indicativos – beijos, abraços e palavras melosas –, sem consistência concreta. Podemos ilustrar algumas evidências desta unidade:
a) Sensibilidade para com as necessidades dos irmãos
No início da Igreja do Novo Testamento, competia aos apóstolos a responsabilidade de gerenciar os donativos, distribuindo-os conforme a necessidade dos crentes (At 2.45/At 4.37; 5.2). Com o crescimento da Igreja, esta atividade tornou-se por demais pesada para eles. Isso é natural. Conforme o desenvolvimento da Igreja, a situação foi ficando mais complexa, necessitando, portanto, de ajustes dentro dos padrões estabelecidos, para melhor atender aos fiéis no propósito em suas necessidades. Isso serve de alerta: por vezes criamos um sistema sofisticadíssimo com leis e regulamentos, no entanto, não temos pessoas. Ficamos com os regimentos e estrutura para um grupo inexistente. É preciso discernimento e cautela. Aqui, a Igreja crescia e as carências vão se manifestando.
Origem do diaconato
Atos 6 registra uma dificuldade própria da bênção de Deus: a igreja crescia e, havia generosidade da parte dos crentes para ajudar aos necessitados que, como o próprio Senhor dissera, sempre os teríamos (Mc 14.7; Dt 15.11).[1]
Os irmãos mais abastados, sensibilizados com as necessidades dos mais pobres, “vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade” (At 2.45. Leia também: At 4.32,36,37).
O resultado imediato disto foi que “nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes, e depositavam aos pés dos apóstolos; então se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade” (At 4.34,35). Esta ação refletia o profundo vínculo de comunhão e amor existente na comunidade primitiva.
Mas, obviamente, nem tudo era perfeito. Nesse contexto é que se insere o diácono. O ofício de diácono teve a sua origem como resultado de uma necessidade: As viúvas dos helenistas (judeus de fala e cultura grega provenientes da Dispersão), estavam sendo habitualmente[2] “esquecidas na distribuição diária” (At 6.1).
Ao contrário do que já foi suposto, o “esquecimento”[3] ou uma provisão menor para as viúvas gregas,[4] não foi deliberado. A questão era mesmo de excesso de trabalho juntando a isso, a possível situação de severa penúria das viúvas.[5]
Os apóstolos manifestaram grande discernimento. Havia muito que fazer. A Igreja estava fundamentada e perseverava na doutrina dos apóstolos (At 2.42). O crescimento numérico de convertidos era evidente (At 6.1). Eles precisavam continuar ensinando, alimentando o rebanho. Isto era prioritário na sua vocação apostólica.[6] Não poderiam se desviar de sua tarefa principal, com o risco evidente de falharem em ambas as esferas. Portanto, reconhecendo o problema e ao mesmo tempo não tendo como resolver tudo sozinhos, encaminharam à comunidade, de forma direta, a eleição de “sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregariam deste serviço” (At 6.3). Detectando o problema, agiram de forma humilde, rápida e eficaz.[7]
A eleição foi feita. Os apóstolos, então, se dedicaram mais especificamente a outra espécie de diaconia: “à oração e ao ministério (diakoni/a) da Palavra”(At 6.4), ofício para o qual foram especialmente chamados: Pregar a Palavra de Deus buscando sempre em tudo o discernimento em Deus.[8]
Inflação e fome na Judeia
Alguns anos mais tarde, por volta de 46-48 AD., quando houve uma fome, causando como sempre, uma grande inflação,[9] “os discípulos, cada um conforme as suas posses, resolveram enviar socorro aos irmãos que moravam na Judéia; o que eles, com efeito, fizeram enviando-o aos presbíteros, por intermédio de Barnabé e de Saulo” (At 11.29,30).
Posteriormente, Paulo levantou uma coleta entre os também pobres da Macedônia (2Co 8.1-4) e de Corinto, para os cristãos da Judéia (2Co 8 e 9; Rm 15.25,26).
Maringá, 11 de setembro de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] “Porque os pobres sempre os tendes convosco e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem, mas a mim nem sempre me tendes” (Mc. 14.7). “Pois nunca deixará de haver pobres na terra” (Dt 15.11).
[2]O verbo paraqewre/w no imperfeito, sugere a ideia de algo frequente e habitual. Este verbo só ocorre aqui (At 6.1) no Novo Testamento.
[3] Assim pensa Barclay. (William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado,Buenos Aires: La Aurora, 1974, v. 7, p. 60).
[4] Calvino aventa sobre essa possibilidade (John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 18/2, (At 6.1), p. 231).
[5] Vejam-se: I.H. Marshall, Atos: Introdução e Comentário,São Paulo: Mundo Cristão; Vida Nova, 1982, p. 123; John R.W. Stott, A Mensagem de Atos, São Paulo: ABU Editora, 1994, p. 133; Simon Kistemaker, Comentário do Novo Testamento: Atos, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 1, p. 295.
[6]“Portanto, quando os apóstolos põem a pregação do evangelho em primeiro plano, disso inferimos que nenhuma obediência é mais agradável a Deus do que esta. Não obstante, ao mesmo tempo realça-se a dificuldade, quando dizem que não estão aptos para exercerem aqueles dois ofícios. Por certo que de modo algum somos superiores a eles” (John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 18/2, (At 6.2), p. 234).
[7] “É uma marca de prudência e piedade preocupar-se em cercear rapidamente o mal no nascedouro, e não protelar a descoberta de um remédio para o mesmo. Pois depois que toda dissensão e rivalidade tiverem recobrado força, se convertem numa ferida que é difícil de se curar”, interpreta Calvino ((John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries), 1996 (Reprinted), v. 18/2, (At 6.2), p. 231-232).
[8] Stott lamentando a falta de seriedade moderna para com a Palavra, diz que se adotássemos esta mesma agenda apostólica, “…. envolveria para a maioria de nós, uma reestruturação radical do nosso programa e do cronograma, inclusive uma delegação considerável de outras responsabilidades aos líderes leigos, mas expressaria uma convicção verdadeiramente neotestamentária a respeito da natureza essencial do pastorado” (John Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 132).
[9]Veja-se: Joaquim Jeremias, Jerusalém nos Tempos de Jesus,São Paulo: Paulinas, 1983, p. 184ss.