“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (138)
c) Louvando a Deus (Continuação)
Espírito e embriaguez
Para que o contraste ficasse bem claro, Paulo não usa para o enchimento do Espírito o verbo “embriagar” – que envolve a diminuição da consciência e dos reflexos, além de ser uma expressão que baratearia por demais a sua mensagem e também, inadequada para se referir à terceira Pessoa da Trindade[1] –, antes nos fala de um enchimento consciente e santamente voluntário. Enquanto a embriaguez produz uma dissolução completa de nosso autocontrole, nos conduzindo à insatisfação, inconveniência e posterior sentimento de culpa; o Espírito produz uma alegria santa que se expressa em salmos, hinos e cânticos espirituais. A expressão do Espírito conduz-nos a emoções santas; a emoção mundana limita toda a sua vida ao corpo, substituindo a alegria do Espírito pela intoxicação alcoólica.[2]
O médico e pastor Lloyd-Jones (1899-1981), comenta:
A bebida não é um estimulante, é um agente de depressão. Deprime antes de tudo os núcleos mais elevados do cérebro. Estes são os primeiros a serem influenciados e afetados pela bebida. Eles controlam tudo que dá ao homem o domínio próprio, a sabedoria, o entendimento, a discriminação, o juízo, o equilíbrio, a capacidade de avaliar tudo; noutras palavras, controlam tudo que faz o homem comportar-se no nível máximo e melhor.[3]
Apanhem algum livro de farmacologia, vejam “álcool”, e sempre verão que ele vem classificado entre os depressivos. Não é um estímulo. “Bem”, vocês dirão, “por que as pessoas tomam álcool em busca de estímulo?” (…) Eis o que o álcool faz: ele abate os centros mais elevados e, assim, os elementos mais primitivos do cérebro vêm à tona e assumem o controle; e o homem se sente melhor, temporariamente. Perde o seu senso de temor, perde sua capacidade de discriminação, perde sua capacidade de avaliação. O álcool simplesmente abate os seus centros mais elevados e libera os elementos instintivos, mais primitivos; mas o homem acredita que está sendo estimulado. O que realmente é verdade a respeito dele é que ele se tornou mais animalesco; seu controle sobre si mesmo diminuiu.[4]
O cristão, ao contrário, busca o sentido da plenitude da sua existência, na plenitude do Espírito. É pelo Espírito que nos tornamos verdadeiros seres humanos no emprego correto e intenso de nossa capacidade. “Sendo assim cheios com o Espírito, os crentes não somente serão esclarecidos e alegrados, mas também darão jubilosa expressão a seu vivificante conhecimento da vontade de Deus”, conclui Hendriksen (1900-1982).[5]
Sob o Espírito não perdemos o controle, antes o ganhamos.[6] O Espírito não nos aliena, antes, nos conduz à percepção mais aprimorada e intensa da Palavra de Cristo que habita ricamente em nós.
A lucidez proporcionada pelo Espírito
No período de 12 de junho de 1559 até meados de abril de 1560 Calvino dedicou-se com afinco a expor o Livro do Profeta Daniel a alunos que estavam sendo treinados para o trabalho missionário, especialmente na França.[7]
Após cada exposição Calvino encerrava a aula com uma oração. Na 13ª exposição, quando falou de modo especial sobre o culto, ora:
Deus Todo-Poderoso, visto que sempre e de maneira desgraçada nos perdemos em nossos pensamentos e, quando tentamos te adorar; não fazemos nada a não ser profanar a pura e verdadeira adoração de tua divindade e somos mais facilmente levados a superstições depravadas, permite, pois, que permaneçamos na obediência pura de Tua Palavra e nunca nos desviemos para lado algum.[8]
O Espírito nos estimula e capacita espiritual e intelectualmente a entender e obedecer a Palavra de Deus. Ele nos ilumina, concedendo discernimento para compreender a mente de Deus expressa em sua Palavra. Este enchimento, portanto, é dinâmico estando associado ao Espírito, à Palavra e à obediência.
Comenta Lloyd-Jones:
O Espírito Santo estimula a mente. Ele é um estímulo direto para o intelecto. Ele realmente desperta as faculdades da pessoa e as desenvolve. Ele não reproduz sobre eles o efeito que o álcool e outras drogas produzem. É o oposto exato disso; é um estímulo verdadeiro.[9]
Não devo comentar aqui a questão do enchimento do Espírito. Já o fiz em outro lugar. Contudo, devemos enfatizar que “O Espírito Santo nos coloca em um relacionamento correto com Deus e as pessoas”.[10] A sequência do texto de Efésios nos mostra os frutos práticos e concretos desse “enchimento”.
Este enchimento nunca será definitivo nesta existência, daí a ordem contínua para todos os crentes, que deve ser uma experiência renovada: Enchei-vos do Espírito! A vida cristã tem algo a dizer sobre qualquer área de nossa existência; o Cristianismo não é uma religião das brechas, mas de todas as facetas da vida.
Uma vida autenticamente cristã produz seus reflexos em todas as áreas da nossa existência e da sociedade. Destaco apenas um dos pontos apresentados por Paulo.
“Louvando de coração ao Senhor, com hinos e cânticos espirituais” (Ef 5.19). O enchimento do Espírito evidencia-se no louvor a Deus com cânticos, os quais expressam a integridade e biblicidade da nossa fé.
Lembremos o contraste feito por Paulo entre a embriaguez dissoluta e a integridade da alegria produzida pelo Espírito, que nos conduz ao conhecimento da vontade de Deus na Palavra. “O conhecimento de Deus não está posto em fria especulação, mas lhe traz consigo o culto”, alerta-nos Calvino.[11]
Portanto, se o conhecimento de Deus nos conduz ao culto, não podemos adorar e servir a um Deus desconhecido.[12] O nosso culto deve estar fundamentado no conhecimento obtido por meio da Palavra.[13] A piedade não pode estar dissociada da fé que confessa que Deus é o autor de todo o bem. Portanto podemos nele descansar sendo conduzidos pela sua Palavra.[14]
A “Palavra de Cristo” deve nos guiar também em nossa adoração (Cl 3.16). O nosso cântico não visa ser simplesmente agradável e, de modo algum, ter um tom de alegria jovial e frívola, antes deve estar repleto de sentimento espiritual, orientado pelo Espírito na Palavra de Cristo.
O culto cristão, portanto, é sempre na liberdade do Espírito e nos limites registrados pelo Espírito na Palavra. (Jo 4.23-24; Fp 3.3). O Espírito que inspirou as Escrituras (2Tm 3.16; 2Pe 1.21) é o mesmo Espírito que nos selou e nos “enche”. Não há contradição no Espírito. Por isso, os limites da nossa experiência espiritual estarão sempre dentro da amplitude da revelação bíblica. O que queremos dizer é que: Toda experiência subjetiva com o Espírito tem a sua objetividade na sua Palavra escrita; ninguém em nome do Espírito pode contrariar a Palavra, que é do Espírito (1Co 12.3).
Portanto, o louvor a Deus deve ser sempre dentro dos princípios da revelação bíblica, praticado com o coração sincero (Am 5.21-23). A verdadeira ortodoxia é bíblica e é corretamente vivida: a vida cristã não pode excluir a doutrina nem esta pode perdurar sem aquela. Conforme acentuou Horton:
A ortodoxia fria é o resultado da absorção da doutrina sem gratidão. O emocionalismo[15] é o resultado da gratidão sem a doutrina. Precisamos tanto da doutrina quanto da resposta. A primeira tendência conduz a uma obsessão pelos dados intelectuais sem expressão no amor, humildade, caridade, boas obras, e adoração genuína. A última é como dizer “obrigado” 142 vezes, sem saber exatamente a razão.[16]
O remédio para ambos equívocos está no apego ao ensino de Jesus Cristo: adorar a Deus no Espírito por intermédio da verdade.
Maringá, 31 de agosto de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Por isso considero inadequada a analogia feita por Horton, chamando a direção do Espírito em nossa vida de “graça embriagante” (Michael Horton, As Doutrinas da Maravilhosa Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 137ss.). Parece-me oportuno recordar a orientação de Calvino emitida em outro contexto: “Se, pois, um dia pretendermos adentrar os eternos conselhos de Deus, pela instrumentalidade de um discurso, que o façamos moderando nossa linguagem e mesmo nossa maneira de pensar, de modo que nossa argumentação seja sóbria e respeite os limites da Palavra de Deus, e cuja conclusão seja repassada e saturada daquela expressão de assombro. Indubitavelmente, não devemos nos sentir constrangidos caso nossa sabedoria não exceda a daquele que uma vez foi arrebatado até ao terceiro céu, donde ouviu e contemplou mistérios que aos homens não lhe fora possível relatar (2Co 12.4). Todavia, ele não encontrou nenhuma outra saída, aqui, senão humilhar-se como o fez” (João Calvino, Romanos, 2. ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.33), p. 426).
[2]Veja-se: William Hendriksen, Exposição de Efésios, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, (Ef. 5.18), p. 297.
[3]D.M. Lloyd-Jones, Vida No Espírito: No Casamento, no Lar e no Trabalho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, (Ef 5.18), p. 12. Em outro contexto, Lloyd-Jones escreveu: “O álcool não é um estimulante, é um depressivo – esta é uma declaração farmacológica, um fato científico. O álcool libera o que há de mais primitivo em você, eliminando seus mais elevados centros de controle. Essa é só uma ilustração, porém é a pura verdade com relação ao pecado em todo o setor e departamento” (D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 93).
[4]D.M. Lloyd-Jones, Vida No Espírito, p. 16.
[5]William Hendriksen, Exposição deEfésios,(Ef. 5.18), p. 299. “Para fazer os corações dos santos rejubilar-se, o favor divino é o único sobejamente suficiente” (João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, v. 2, (Sl 48.2), p. 355).
[6] Cf. John R.W. Stott, A Mensagem de Efésios,São Paulo: ABU Editora, 1986, p. 152.
[7] Conforme informações de T.H.L. Parker. Ver: João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, p. 13 e 17.
[8]João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 195.
[9] D.M. Lloyd-Jones, Vida No Espírito, p. 16.
[10] John R.W. Stott, Batismo e Plenitude do Espírito Santo, 2. ed. Ampli., São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 44.
[11] João Calvino, As Institutas, I.12.1.
[12]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1981, v. 17, (Jo 4.22), p. 159.
[13] John Calvin, Calvin’s Commentaries, v. 17, (Jo 4.22), p. 160-161.
[14]Cf. John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 2/1, (Dt 6.16), p. 422.
[15]“É nosso dever denunciar sempre o emocionalismo, mas que Deus não permita que descartemos a emoção” (D.M. Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 191).
[16]Michael Horton, As Doutrinas da Maravilhosa Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p.87.