Eu lhes tenho dado a tua Palavra (Jo 17.1-26) (110)
7.2. A Doutrina da Trindade: Mistério Tremendo (Continuação)
Esta doutrina pode decompor-se nas seguintes proposições:[1]
1) Há no Ser divino uma só essência (ou)si/a)(ousía) indivisível
No “Shemá”[2] (“ouve”), a instrução iniciava com a afirmação de que há somente um Deus: “Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Dt 6.4).
No Novo Testamento Paulo instrui aos Efésios: “Há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Ef 4.4-6). (Tg 2.19). (Destaques meus).
A compreensão da Igreja é de que não há diferença na essência de Deus. Deus é um ser absolutamente simples, não composto; é eterno, imutável, sem qualquer variação.[3] A afirmação da Igreja, é de que há apenas uma essência na Trindade partilhada pelas três pessoas,[4] havendo distinção, mas não separação entre elas. A essência “é o fundamento de sua unidade comum, apesar da distinção em suas manifestações exteriores”, explica McGrath.[5]
2) No Ser de Deus há três Pessoas
A Bíblia demonstra haver três pessoas na Triunidade. Entretanto, sabemos que o termo Pessoa é uma expressão imperfeita e, portanto, inadequada para retratar a mensagem bíblica. Naturalmente as expressões são limitadas[6] para descrever o Ser de Deus. O nosso esforço é no sentido de utilizar os termos que melhor exprimem o ensinamento bíblico.[7]
As Escrituras afirmam haver um só Deus, mas, que subsistem em três Pessoas. Calvino (1509-1564) assim define Pessoa: “Designo como pessoa, portanto, uma subsistência na essência de Deus que, enquanto relacionada com as outras, se distingue por uma propriedade incomunicável”.[8] Adiante, acrescenta: “Com efeito, em cada e qualquer das hipóstases a natureza inteira se compreende, com isto, que lhe subjaz, a cada uma, a sua propriedade específica. O Pai está todo no Filho, o Filho todo no Pai….”.[9] (Ver: Mt 3.16-17; 4.1; Jo 1.1-3,18; 3.16; 5.20-22; 14.26; 15.26; 16.13-15).
Berkhof (1873-1957) comentando a primeira distinção feita por Calvino, observa:
Isso é perfeitamente permissível e pode proteger-nos de entendimento errôneo, mas não deve levar-nos a perder de vista o fato de que as autodistinções do Ser Divino implicam um “Eu” e “Tu” no Ser de Deus, que assumem relações pessoais uns para com os outros.[10]
3) A essência de Deus pertence totalmente por igual a cada uma das Três Pessoas
A essência divina não está dividida entre as três pessoas como se fossem modulares e independentes. Deus é plenamente as Três Pessoas com todas as suas perfeições. Isso equivale a dizer que as Três Pessoas da Trindade têm a mesma essência: O Deus Pai é tanto Deus Filho como Deus Espírito Santo. Portanto, não há subordinação de essência (ontológica); não há nenhuma diferença em dignidade pessoal. A única subordinação que podemos falar é a da que se refere à ordem e à relação.[11]
4) A Igreja confessa que a Triunidade é um mistério que transcende a compreensão do homem
A Triunidade “é inteligível em algumas de suas relações e de seus modos de manifestação, mas é ininteligível em sua natureza essencial”, comenta Berkhof.[12] As especulações sobre o assunto no decorrer da história geraram heresias como o triteísmo e o modalismo[13] que ora negava a essência una de Deus, ora negava as distinções pessoais dentro da essência.[14]
É preciso que entendamos que não compete à Igreja explicar o mistério da Trindade; ela, partindo da Escritura, apenas o descreve de forma mais ou menos sistemática, formulando a doutrina de tal forma que evite os erros e as heresias.
Calvino com a cautela costumeira diante do mistério, nos adverte pastoralmente sobre o perigo da especulação indevida:
Aqui, mui certamente, se alguma vez, em qualquer parte, nos recônditos mistérios da Escritura, importa discorrer sobriamente e com muita moderação, aplicada, ademais, muita cautela, para que, seja o pensamento, seja a língua, não avance além do ponto a que se estendam os limites da Palavra de Deus. Pois, como haja a mente humana, que ainda não pode estatuir ao certo de que natureza seja a massa do sol, que, entretanto, diariamente com os olhos se vê, de à sua parca medida reduzir a imensurável essência de Deus? (…) Pelo infelicíssimo resultado de qual temeridade importa-nos ser advertidos, para que tenhamos o cuidado de aplicar-nos a esta questão com docilidade mais do que com sutileza, nem incutamos no espírito ou investigar a Deus em qualquer outra parte que em Sua Sagrada Palavra, ou a Seu respeito pensar qualquer cousa, a não ser que lhe vá à frente a Sua Palavra, ou falar que não o tomado dessa mesma Palavra.
Ora, se a distinção que em uma só é única divindade subsiste de Pai, Filho e Espírito, posto que é difícil de apreender-se, causa a certos espíritos mais dificuldade e problema do que é justo, lembrar-se devem de que as mentes humanas penetram em um labirinto[15] quando cedem à sua curiosidade e, destarte, por mais que não alcancem a altura do mistério, deixem-se reger dos oráculos celestes.[16]
Agostinho (354-430), conclui a sua monumental obra Da Trinitate – que se tornaria decisiva para toda formulação cristológica posterior – com uma humilde e reverente oração: “Senhor, único Deus, Deus Trindade, tudo o que disse de ti nestes livros, de ti vem. Reconheçam-no os teus, e se algo há de meu, perdoa-me e perdoem-me os teus. Amém”.[17]
Maringá, 26 de julho de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Esquema adaptado de Berkhof (Louis Berkhof, Teologia Sistemática,Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990,p. 88-91).
[2]É a primeira palavra que aparece em Dt 6.4, derivada do verbo ((m$)(Shãma’), “ouvir”, envolvendo normalmente a ideia de ouvir com afeição, entender, obedecer (Veja-se: Hermann J. Austel, Shãma’:In: R. Laird Harris, et. al., eds., Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1586).
[3] Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 261-265.
[4] “Pai, Filho e Espírito Santo, cada um possui toda a substância e todos atributos da divindade. A pluralidade de Deus não é, portanto, pluralidade de essência, mas de distinções hipostáticas ou pessoais” (Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Editora Hagnos, 2003, v. 1, p. 492).
[5]Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005,p. 376.
[6]“Tendo criado o homem para ser uma criatura sociável, Deus não só lhe inspirou o desejo e o colocou na necessidade de viver com os de sua espécie, mas outorgou-lhe igualmente a faculdade de falar, faculdade que deveria constituir o grande instrumento e o laço comum desta sociedade. É daí que provêm as palavras, as quais servem para representar, e até para explicar as ideias” (G.W. Leibniz, Novos Ensaios, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 19), 1974, III.1. § 1, p. 167).
[7] Ver: João Calvino, As Institutas, I.13.3; Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Editora Hagnos, 2003, v. 1, p. 491; Albertus Pieters, Fundamentos da Doutrina Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1979, p. 179.
[8]João Calvino, As Institutas, I.13.6.
[9]João Calvino, As Institutas, I.13.19.
[10]Louis Berkhof, Teologia Sistemática,Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990,p. 89. Veja-se também: A. B. Langston, Esboços de Teologia Sistemática, 7. ed. Rio de Janeiro: JUERP., 1983, p. 119ss.
[11] Ver: Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 90; João Calvino, As Institutas, I.13.19.
[12]Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 91.
[13] Termo introduzido por Adolf von Harnack (1851-1930) para descrever as heresias de Noetus, Práxeas e Sabélio (Cf. Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 382).
[14] Como acentua Berkhof, “Os numerosos esforços feitos para explicar o mistério foram especulativos, e não teológicos. Invariavelmente redundaram no desenvolvimento de conceitos triteístas ou modalistas de Deus, na negação ou da unidade da essência divina ou da realidade das distinções pessoais dentre da essência” (Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 91).
[15] Figura semelhante Calvino empregou para falar a respeito da doutrina da Eleição. “Quando os homens quiserem fazer pesquisa sobre a predestinação, é preciso que se lembrem de entrar no santuário da sabedoria divina. Nesta questão, se a pessoa estiver cheia de si e se intrometer com excessiva autoconfiança e ousadia, jamais irá satisfazer a sua curiosidade. Entrará num labirinto do qual nunca achará saída. Porque não é certo que as coisas que Deus quis manter ocultas e das quais Ele não concede pleno conhecimento sejam esquadrinhadas dessa forma pelos homens. Também não é certo sujeitar a sabedoria de Deus ao critério humano e pretender que este penetre a Sua infinidade eterna. Pois Ele quer que a Sua altíssima sabedoria seja mais adorada que compreendida (a fim de que seja admirada pelo que é). Os mistérios da vontade de Deus que Ele achou bom comunicar-nos, Ele nos testificou em Sua Palavra. Ora, Ele achou bom comunicar-nos tudo o que viu que era do nosso interesse e que nos seria proveitoso” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8.1), p. 38). “Aprendamos, pois, a evitar as inquirições concernentes a nosso Senhor, exceto até onde Ele nos revelou através da Escritura. Do contrário, entraremos num labirinto do qual o escape não nos será fácil” (João Calvino, Romanos, 2. ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.33), p. 426-427).
[16]João Calvino, As Institutas, I.13.21.
[17]Santo Agostinho, A Trindade, São Paulo: Paulus, 1994, (Patrística, 7), XV.28, p. 557.