“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (10)
b) O Guardar os Mandamentos de Deus[1]
1) Jesus Cristo guarda a Palavra do Pai
Jesus revela conhecer o Pai guardando a Sua Palavra:“Entretanto, vós não o tendes conhecido(ginw/skw); eu, porém, o conheço. Se eu disser que não o conheço, serei como vós: mentiroso; mas eu o conheço e guardo (thre/w) a sua palavra” (Jo 8.55). O conhecimento de Deus se manifesta em nossa obediência (guardar) à Palavra.
2) A prática da Palavra revela a nossa comunhão amorosa e perseverante com Deus, seguindo o exemplo de Jesus Cristo
Jesus Cristo demonstra que o guardar os Seus mandamentos é uma prova de amor e de discipulado. Ele relaciona a obediência ao amor. Diz que o amor se revela em obediência. O Filho obedece ao Pai permanecendo no Seu amor: “Se guardardes(thre/w) os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; assim como também eu tenho guardado(thre/w) os mandamentos de meu Pai e no seu amor permaneço”(Jo 15.10).
Ainda no contexto de sua despedida, o Senhor fala aos discípulos:
Se me amais, guardareis (thre/w)os meus mandamentos. (…) Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda (thre/w), esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me manifestarei a ele. Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo? Respondeu Jesus: Se alguém me ama, guardará (thre/w) a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada. Quem não me ama não guarda (thre/w) as minhas palavras; e a palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai, que me enviou. (Jo 14.15,21-24).[2]
A genuína fé é conduzida pela Palavra à obediência. “A fé, quando é conduzida à obediência a Deus, mantém nossas mentes fixas em sua palavra”.[3] Este guardar envolve o homem todo: estamos comprometidos em crer/pensar (meditar) na Palavra, experimentá-la e praticá-la.
Guardar a Palavra é transformá-la na palavra final de nossa mente, emoção e vontade. Guardamos a Palavra quando Ela se torna o padrão de nosso pensar, sentir e agir. Como nos diz Lloyd-Jones (1899-1981): guardar é obedecer.
Vocês não guardarão realmente a Palavra se não a obedecerem. É uma palavra que não pode ser guardada só em seu intelecto; também tem que ser colocada em seu coração e em sua vontade. O homem que guarda a Palavra de Deus é o homem cuja personalidade a está guardando, o homem que medita e se regozija nela e cujo coração se inflama por ela, e assim ele a obedece.[4]
3) São bem-aventurados aqueles que guardam até o fim as palavras reveladas por Deus
No Apocalipse lemos: “Bem-aventurados aqueles que leem e aqueles que ouvem as palavras da profecia e guardam (thre/w) as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo” (Ap 1.3/Ap 3.3,8,10; 22.7,9).
Ao jovem que pergunta a Jesus, “Mestre, que farei eu de bom, para alcançar a vida eterna?”, tem a resposta: “Se queres, porém, entrar na vida, guarda (thre/w) os mandamentos”(Mt 19.16,17).
Paulo no ocaso de sua vida, diz que guardou (conservou) a fé: “Combati o bom combate, completei a carreira, guardei (thre/w) a fé”(2Tm 4.7). Durante o seu combate e carreira, que agora se aproximavam do final, ele preservou e fortaleceu a sua fé. O bom combate da fé só é completado se perseverarmos até o final na fé: “Aqui está a perseverança dos santos, os que guardam (thre/w) os mandamentos de Deus e a fé em Jesus” (Ap 14.12).
4) Deus tem uma herança reservada para os seus
Pedro conforta a Igreja perseguida com a certeza de que Deus, Deus mesmo tem preservado (guardado) para os Seus uma herança maravilhosa que ultrapassa em muito a nossa capacidade de exaustiva percepção (Ef 3.20):
Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança incorruptível, sem mácula, imarcescível, reservada (thre/w) nos céus para vós outros. (1Pe 1.3-4).
c) A Igreja e sua Missão
Após a ressurreição de Jesus Cristo, Ele confia esta missão à Igreja:
Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar (thre/w) todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século. (Mt 28.19-20).
Portanto, a Igreja ensina ao mundo a Palavra e demonstra em sua vida o como, por inteira graça, é possível guardar os mandamentos de Deus. Percebam então, ainda que de passagem, a função “ensinadora” da Igreja. Ela tem a responsabilidade de ensinar aos crentes, aqui chamados de discípulos, a guardar, ou seja, obedecer aos ensinamentos de Cristo.
Portanto, a Igreja é constituída por aqueles que receberam a Palavra e a guardam (praticam). Os novos discípulos por aprenderem gradativamente esta Palavra se tornarão também mestres evangelistas que anunciarão e ensinarão a outros e outros.
No ato contínuo de guardar a Palavra revelamos o nosso amor a Deus que se materializa em obediência confiante. No guardar a Palavra de Deus como fonte e filtro de todas as nossas decisões, evidenciamos a nossa comunhão com o Deus que nos ama, fala e nos preserva. Guardar a Palavra significa preservar nossa mente, nosso coração e, consequentemente, os nossos atos, do pecado:“Guardo [}apfc (çãphan)[5] = “esconder”, “ocultar”, “entesourar”, “armazenar”][6] no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti” (Sl 119.11).[7]
Maringá, 04 de fevereiro de 2020.
Rev. Hermisten Maia
Pereira da Costa
[1]Na LXX thre/w aparece em especial no Livro de Provérbios. Vejam-se, por exemplo: Pv 3.1,21; 4.23; 19.16; 23.26.
[2]Vejam-se também: 1Tm 6.14; 1Jo 2.3,4,5; 3.22,24; 5.2-3; Ap 3.8, 10; 12.17; 14.12; 22.7,9.
[3]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 1999, v. 2, (Sl 38.10), p. 184.
[4] D.M. Lloyd-Jones, Seguros mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 2), p. 89.
[5] Na LXX o verbo usado é kru/tw, que tem o sentido de “esconder”, “ocultar”.
[6] Vejam-se: Sl 37.31;119.2,57,69; Pv 2.10-12. O verbo “guardar” tem o sentido de guardar com atenção, levando-a em consideração no seu agir (Veja-se no sentido negativo: Sl 10.8; 56.6; Pv 1.11,18); esconder algo considerado precioso ou importante a ponto de arriscar a sua própria vida para poder ocultar (Ex 2.2-3; Js 2.4) – Deus também nos “esconde”, nos “protege” dos inimigos (Sl 27.5; 31.19, 20; 83.3) –; ou algo precioso para alguém (Ct 7.13), tendo em vista sempre algum propósito. Portanto, guardar a Palavra no coração significa considerá-la em todo o nosso ser, sendo ela a norteadora do nosso sentir, pensar, falar e agir; o lugar da Palavra deve ser sempre no cerne essencial do homem. A Palavra é guardada em nosso coração quando está presente continuamente, não meramente como um preceito exterior, mas, sim, como um poder interno motivador, que se opõe ao nosso pensar e agir egoístas. A santidade inicia-se no coração, imbuída de um espírito agradecido, tendo como motivação final agradar a Deus.
[7] “A mente que entesoura as Escrituras tem seu gosto e juízo educados por Deus”(Derek Kidner, Salmos 73-150: introdução e comentário,São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1981, (Sl 119.11), p. 437).