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“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (28) - Hermisten Maia

“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (28)


4.2.4. A necessidade de discernimento

a) A má vontade para com a verdade e a sua manipulação

A verdade por ser o que é, nem sempre nos parece agradável. Começar por um discurso com pressupostos relativistas e terminar dessa forma, pode ser muito tranquilizador e nos dar uma sensação de que estamos além do bem e do mal.

          A Palavra de Deus, como verdade que é,  e, portanto, reveladora, evidencia, com muita frequência os nossos pecados, o que, certamente, num primeiro e superficial plano, não nos proporciona uma percepção e sensação  prazerosas.

          A Palavra, além de aclarar o nosso caminho por meio das diretrizes divinas, trazer consolo em nossas aflições e alívio em nossas angústias, lança luz sobre as áreas mais obscuras de nossa vida, nos mostrando como realmente somos. Por isso, em determinadas ocasiões muitos se recusarão a ouvir a verdade.

          No final de sua vida, Paulo, com a consciência certa de ter concluído fielmente o seu ministério, exorta ao jovem Timóteo:

Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo (kairo/j)[1] em que não suportarão (a)ne/xomai)[2] a sã doutrina (didaskali/a); pelo contrário, cercar-se-ão de mestres, segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade (a)lh/qeia), entregando-se às fábulas (mu=qoj = lenda, mito).[3] (2Tm 4.3-4).

          Satanás, por sua vez, fala o que lhe é próprio; o mundo o ouve. A verdade, no entanto, nem sempre é bem-vinda. Constatamos isso no encontro de Jesus com os judeus:

 Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade (a)lh/qeia), porque nele não há verdade (a)lh/qeia). Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira. Mas, porque eu digo a verdade (a)lh/qeia), não me credes. Quem dentre vós me convence de pecado? Se vos digo a verdade (a)lh/qeia), por que razão não me credes? (Jo 8.44-46).

          Os filhos de Abraão, apenas da carne, queriam matar a Jesus justamente porque Ele dizia a verdade:

Então, lhe responderam: Nosso pai é Abraão. Disse-lhes Jesus: Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão. Mas agora procurais matar-me, a mim que vos tenho falado a verdade (a)lh/qeia) que ouvi de Deus; assim não procedeu Abraão. (Jo 8.39-40).

          O mundo prefere transformar a verdade de Deus em mentira, recebendo o justo castigo por isso:

Pois eles mudaram a verdade (a)lh/qeia) de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém! Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames; porque até as mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à natureza; semelhantemente, os homens também, deixando o contacto natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo, em si mesmos, a merecida punição do seu erro. E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes, cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores, caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais, insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem misericórdia. (Rm 1.25-31).

          Quando a Igreja abandona a sua fidelidade a Deus, seu apego à Palavra e à verdade, ela, gradativamente, deixa de refletir a glória de Deus. Deixa de ser a noiva de Cristo para ser um espelho da sociedade que a seduziu e a inspira. Ela perdeu a sua identidade. Não mais tem uma mensagem profética, antes, um produto que comercializa conforme o interesse de seus clientes, tendo como critério avaliativo, a beleza de suas instalações,[4] estatísticas de crescimento e de arrecadação, nível social de sua membresia e quantidade de frequentadores.[5]

  Maringá, 25 de fevereiro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]A ideia da palavra é de “oportunidade”, “tempo certo”, “tempo favorável” etc. (Vejam-se: Mt 24.45; Mc 12.2; Lc 20.10; Jo 7.6,8; At 24.25; Gl 6.10; Cl 4.5; Hb 11.15). Ela enfatiza mais o conteúdo do tempo.  Este termo que ocorre 85 vezes no NT é mais comumente traduzido por “tempo”, surgindo, então, algumas variantes, indicando a ideia de oportunidade. Assim temos (Almeida Revista e Atualizada): Tempo e tempos: Mt 8.29; 11.25; 12.1; 13.30; 14.1; Lc 21.24; At 3.20; 17.26; “Devidos tempos”: Mt 21.41; “Tempo determinado”: Ap 11.18; “Momento oportuno”: Lc 4.13; “Tempo oportuno”: Hb 9.10; 1Pe 5.6; Oportunidade: Lc 19.44; Gl 6.10; Cl 4.5; Hb 11.15; Devido tempo: Lc 20.10; Presente: Mc 10.30; Lc 18.30; “Circunstâncias oportunas”: 1Pe 1.11; Algum tempo: Lc 8.13; Hora: Lc 8.13; 21.8; Época: Lc 12.56; At 1.7; 1Ts 5.1 (Xro/nwn kai\ tw=n kairw=n); 1Tm 6.15; Hb 9.9; Ocasião: Lc 13.1; 2Ts 2.6; 1Pe 4.17; Estações: At 14.17; Vagar: At 24.25; Avançado: Hb 11.11.

            No texto que estamos analisando, Paulo está dizendo que aquelas pessoas que hoje ouvem a Palavra com interesse e avidez poderão não ouvir em outras épocas ou circunstâncias, daí a nossa responsabilidade de anunciar a Palavra de Deus e o nosso senso de urgência.

[2]A)ne/xomai aparece 15 vezes no Novo Testamento, sendo traduzida por: “Sofrer” (Mt 17.17 = Mc 9.19; Lc 9.41); “atender” (At 18.14); “suportar” (1Co 4.12; 2Co 11.1; Ef 4.2; Cl 3.13; 2Ts 1.4; 2Tm 4.3; Hb 13.22); “tolerar” (2Co 11.4,19,20). Na LXX este verbo não ocorre. No entanto, a)))ne/xw é empregada umas 11 vezes, sendo traduzida por: conter  (Is 42.14; 64.12); carregar (Is 46.4), deter (Is 63.15) e reter (Am 4.7; Ag 1.10). Originalmente, a palavra estava associada à ideia de manter-se ereto, erguido; daí  o sentido de suportar de “cabeça erguida”. 

[3]Calvino, que define fábulas como “…. aqueles contos fúteis e levianos que não têm em si nada de sólido” (João Calvino, As Pastorais, (1Tm 1.4), p. 29), adverte-nos quanto aos perigos da fé que se deixa influenciar por elas:  “[A] fé saudável equivale à fé que não sofreu nenhuma corrupção proveniente de fábulas” (João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320). “Se porventura desejarmos conservar a fé em sua integridade, temos de aprender com toda prudência a refrear nossos sentidos para não nos entregarmos a invencionices estranhas. Pois assim que a pessoa passa a dar atenção às fábulas, ela perde também a integridade de sua fé” (João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320).

[4] Lutero (1483-1546) enfatizou que, “nem trabalho em pedra, nem boa construção, nem ouro, nem prata tornam uma igreja formosa e santa, mas a Palavra de Deus e a sã pregação. Pois onde é recomendada a bondade de Deus e revelada aos homens, e almas são encorajadas para que possam depender de Deus e chamar pelo Senhor em tempos de perigo, aí está verdadeiramente uma santa igreja” (Jaroslav Pelikan, ed. Luther’s Works, Saint Louis: Concordia Publishing House, 1960, v. 2, (Gn 13.4), p. 332). O eminente teólogo puritano John Owen (1616-1683), escreveu: “Quão pouco pensam os homens sobre Deus e seus caminhos, se imaginarem que um pouco de tinta e de verniz fazem uma beleza aceitável!” (William H. Goold, ed. The Works of John Owen, 4. ed. London: The Banner of Truth Trust, 1987, v. 9, p. 78). Veja-se também: João Calvino, As Institutas,Campinas, SP.; São Paulo: Luz para o Caminho; Cultura Cristã, 1985, a Carta ao Rei Francisco I, v. 1, p. 28. É bastante ilustrativo o discurso de Lloyd-Jones por ocasião das comemorações dos 100 anos da Capela de Westminster em 1965. Veja-se: D. M. Lloyd-Jones, Discernindo os tempos, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 238-261.

[5]James White escreveu de modo dramaticamente verdadeiro: “Permitir que a sociedade defina o que a igreja deve ser, a transformou, tirou dela o ideal do Novo Testamento e deu-lhe uma imagem de espelho da sociedade em si. A igreja não é mais a noiva bendita, digna do nosso serviço, lealdade e amor. Ela se tornou uma comerciante – vendendo seus pertences pelo lance mais alto, bajulando homens para entrar em comunhão com ela, implorando aos crentes que participem no seu trabalho. O termo igreja shopping diz tudo. A igreja é uma coisa comercializada para uma ‘audiência-alvo’, embrulhada de acordo com estatísticas de pesquisa e vestida de maneira a atrair o máximo de ‘clientes’ possível. Ela é julgada de acordo com seu tamanho, riqueza, mobiliário, edifícios e taxa de crescimento, da mesma maneira que qualquer corporação ou negócio” (James White, Jesus Reinará: In: John MacArthur, et. al. Avante, Soldados de Cristo: uma reafirmação bíblica da Igreja, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 72).

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