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Diáconos e Presbíteros: Servos de Deus no Corpo de Cristo (32) - Hermisten Maia

Diáconos e Presbíteros: Servos de Deus no Corpo de Cristo (32)

A vontade de Deus e as circunstâncias

 

A vontade de Deus revelada no apostolado de Paulo não era mera abstração, algo distante e apenas virtual, antes, se materializava no seu sincero esforço por discernir a vontade de Deus em seus propósitos por mais santos que eles lhes parecessem. Ilustremos: Paulo desejava muito visitar a Igreja de Roma que ele mesmo não conhecera ainda que tivesse muitos irmãos ali congregados. Ele orava já há algum tempo sobre este assunto:

 

9Porque Deus, a quem sirvo em meu espírito, no evangelho de seu Filho, é minha testemunha de como incessantemente faço menção de vós  10em todas as minhas orações, suplicando que, nalgum tempo, pela vontade (qe/lhma) de Deus, se me ofereça boa ocasião de visitar-vos. (Rm 1.9-10).

 

Quando Paulo estava em Corinto, acredita ter uma boa oportunidade de visitar Roma. Contudo, antes deve passar pela Judéia para levar as ofertas para os santos dali. Sua trajetória seria arriscada, visto ter muitos inimigos na região. Ele então pede aos crentes romanos:

 

30 Rogo-vos, pois, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo e também pelo amor do Espírito, que luteis juntamente comigo nas orações a Deus a meu favor, 31 para que eu me veja livre dos rebeldes que vivem na Judéia, e que este meu serviço em Jerusalém seja bem aceito pelos santos; 32 a fim de que, ao visitar-vos, pela vontade (qe/lhma) de Deus, chegue à vossa presença com alegria e possa recrear-me convosco. (Rm 15.30-32).

 

Ainda que nossos propósitos sejam santos, nem sempre é fácil discernir a vontade de Deus. Paulo cria ter boa ocasião para conhecer os irmãos de Roma, acreditava ter uma mensagem para eles, contudo, deseja saber se esta era a vontade de Deus naquelas circunstâncias. Ele só pôde ter esta certeza depois de preso, quando o próprio Senhor lhe garantiu que assim se sucederia. Todavia, não como Paulo, possivelmente desejava ou esperava (At 23.11).[1]

 

A vocação interna e o testemunho da igreja

 

Retomando o nosso assunto, destacamos que o diácono deve ser eleito pela Igreja (At 6.5). A eleição é uma evidência de que Deus vocacionou aquele irmão para o respectivo ofício. Por isso, a Igreja deve buscar a orientação de Deus com fé e submissão, certa de que Deus também manifesta a sua vontade por intermédio da assembleia da igreja. A certeza subjetiva (chamado interno) deve vir acompanhada, a seu tempo, de uma manifestação objetiva (chamado externo).

 

A sensação do chamado pode não acompanhada da expressão da igreja pode ser algo muito perigoso.

 

Melanchthon (1497-1560) e Lutero (1483-1546) depararam-se explicitamente com esse problema bem no início da Reforma Protestante. Por volta de 1520, na pequena, porém próspera e culta cidade alemã de Zwickau, surgiu um grupo de homens “iluminados” – chamados por Lutero de “profetas de Zwickau”[2] – que alegava ter revelações especiais vindas diretamente de Deus, entendendo ter sido chamado por Deus para “completar a Reforma”.

 

A sua religião partia sempre de uma suposta revelação interior do Espírito. Acreditavam que o fim dos tempos estava próximo – os ímpios seriam exterminados – e que por isso, não era necessário estudar teologia visto que o Espírito estaria inspirando os pobres e ignorantes.  Assim pensando, esses homens diziam:

 

De que vale aderir assim tão estritamente à Bíblia? A Bíblia! Sempre a Bíblia! Poderá a Bíblia nos fazer sermão? Será suficiente para a nossa instrução? Se Deus tivesse tencionado ensinar-nos, por meio de um livro, não nos teria mandado do céu, uma Bíblia? Somente pelo Espírito é que poderemos ser iluminados. O próprio Deus fala dentro de nós. Deus em pessoa nos revela aquilo que devemos fazer e aquilo que devemos pregar.[3]

 

Certo alfaiate, Nícolas Storck, escolheu doze apóstolos e setenta e dois discípulos, declarando que finalmente tinham sido devolvidos à Igreja os profetas e apóstolos.[4] Ele, acompanhado de Marcos Stübner e Marcos Tomás foi a Wittenberg (27/12/1521) – que já enfrentava tumultos liderados por Andreas B. von Carlstadt (c. 1477-1541) e Gabriel Zwilling (c. 1487-1558) – pregar o que considerava ser a verdadeira religião cristã, contribuindo grandemente para a agitação daquela cidade. Stübner, antigo aluno de Wittenberg, justamente por ter melhor preparo, foi comissionado a representá-los. Melanchthon que conversou com Stubner, interveio na questão, ainda que timidamente. Storck,[5] mais inquieto, logo partiu de Wittenberg; Stubner, no entanto, permaneceu, realizando ali um intenso e eficaz trabalho proselitista – “era um momento crítico na história do cristianismo”.[6]

 

Comentando os problemas suscitados pelos “espiritualistas”, o historiador D’aubigné (1794-1872) conclui: “A Reforma tinha visto surgir do seu próprio seio um inimigo mais tremendo do que papas e imperadores. Ela estava à beira do abismo”.[7] Daí ouvir-se em Wittenberg o clamor pelo auxílio de Lutero. E Lutero, consciente da necessidade de sua volta, abandonou a segurança de Warteburgo retornando à Wittenberg[8] a fim de colocar a cidade em ordem (1522), o que fez, com firmeza e espírito pastoral.[9] Mais tarde, ele escreveria: “Onde, porém, não se anuncia a Palavra, ali a espiritualidade será deteriorada”.[10]

 

Não nos iludamos, essa forma de misticismo ainda está presente na Igreja. Tem sido extremamente perniciosa para o povo de Deus, e acarreta um desvio espiritual e teológico, desloca o “eixo hermenêutico” da Palavra para a experiência mística, nos afastando assim, da Escritura e, consequentemente, do Deus da Palavra.

 

Mais tarde, o teólogo Turretini (1623-1687), combatendo os fanáticos de seu tempo, falando da vocação de modo geral, enfatizou:

 

Ora, ainda que não duvidemos de que o sopro interno do Espírito concorra nesta vocação, isso não é suficiente, a menos que haja uma manifestação e confirmação externas, seja por uma manifestação de Deus, pessoalmente, ou por uma declaração da vontade divina, anexa a uma concordância da doutrina proposta com a doutrina revelada por Deus em Sua Palavra, para que não seja confundida com as imposturas dos fanáticos que se vangloriam do sopro e revelações divinos.[11]

 

Maringá, 7 de julho de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Confira esta série completa aqui

 


[1] Na noite seguinte, o Senhor, pondo-se ao lado dele, disse: Coragem! Pois do modo por que deste testemunho a meu respeito em Jerusalém, assim importa que também o faças em Roma” (At 23.11).

[2]Os principais líderes eram: Nícolas Storck, Marcos Tomás e Marcos Stübner. Tomás Münzer (c. 1490-1525), tornar-se-ia o mais famoso dos que foram influenciados por esse círculo, tendo mais tarde as suas ideias próprias, ainda que fiel aos mesmos princípios. (Veja-se: George H. Williams, La Reforma Radical, México: Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 66ss; Jean Delumeau, O Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 101).

[3]Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, (s.d.), v. 3, p. 64. Mais tarde, Calvino escreveria, possivelmente referindo-se aos “libertinos”, também conhecidos como “espirituais”: “Ora, surgiram, em tempos recentes, certos desvairados que, arrogando-se, com extremada presunção, o magistério do Espírito, fazem pouco caso de toda leitura da Bíblia e se riem da simplicidade daqueles que ainda seguem, como eles próprios a chamam, a letra morta e que mata.

“Eu, porém, gostaria de saber deles que tal é esse Espírito de cuja inspiração se transportam a alturas tão sublimadas que ousem desprezar como pueril e rasteiro o ensino das Escrituras? Ora, se respondem que é o Espírito de Cristo, certeza dessa espécie é absurdamente ridícula, se, na realidade, concedem, segundo penso, que os apóstolos de Cristo e os demais fiéis na Igreja Primitiva não de outro Espírito hão sido iluminados. O fato é que nenhum deles daí aprendeu o menoscabo da Palavra de Deus; ao contrário, cada um foi antes imbuído de maior reverência, como seus escritos o atestam mui luminosamente. (…)

“Não é função do Espírito Que nos foi prometido configurar novas e inauditas revelações ou forjar um novo gênero de doutrina, mediante quê sejamos distraídos do ensino do evangelho já recebido; ao contrário, Sua função é selar-nos na mente aquela própria doutrina que é recomendada por meio do evangelho” (J. Calvino, As Institutas, I.9.1). Veja-se também: As Institutas, I.9.2-3.

McNeill explica que o termo “libertino” foi usado por Calvino para “designar uma seita religiosa que se espalhou na França e na Península Dinamarquesa, a qual, dando ênfase ao Espírito, rejeitava a Lei. Posteriormente, o termo veio a ser aplicado em Genebra, àqueles que se opunham à disciplina, os quais incluíam pessoas que desconsideravam a lei moral e outros, mais motivados politicamente em resistir a Calvino” (John T. McNeill, The History and Character of Calvinism, New York: Oxford University Press, 1954, p. 169).

[4]Cf. J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 64-65; Heinrich W. Erbkam, Münzer: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: Or Dictionary of Biblical, Historical, Doutrinal, and Practical Theology, Chicago: Funk & Wagnalls, Publishers, (revised edition), 1887, v. 2, p. 1596a.

[5]Como resultado das supostas revelações diretas de Deus, Storck e seus companheiros sustentavam que “dentro de cinco a sete anos os turcos invadiriam a Alemanha e destruiriam os sacerdotes e todos os ímpios. Storck via-se como cabeça de uma nova igreja, designada por Deus para completar a Reforma que Martinho Lutero deixara inacabada” (J.D. Weaver, Profetas de Zwickau: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 3, p. 657).

[6] James Atkinson, Lutero e o Nacimiento del Protestantismo, 2. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 254.

[7]J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 71.

[8]Justificando-se com o príncipe o motivo da sua volta, escreveu-lhe no dia de sua chegada a Wittenberg, 7 de março de 1522: “Não são acaso os Wittemberguenses as minhas ovelhas? Não mas teria confiado Deus? E não deveria eu, se necessário, expor-me à morte por causa delas?” (Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 83).

[9]Lutero, iniciando no dia 09/3/1522, pregou oito dias consecutivos em Wittenberg. Veja-se o seu primeiro sermão In: Martinho Lutero, Pelo evangelho de Cristo: Obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma, Porto Alegre; São Leopoldo, RS.: Concórdia Editora; Editora Sinodal, 1984, p. 153-161. Quanto aos detalhes da sua volta, Vejam-se: J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 72ss.; James Atkinson, Lutero e o Nacimiento del Protestantismo, p. 254ss.

[10] Martinho Lutero, Uma Prédica Para que se Mandem os Filhos à Escola (1530): In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.: Sinodal; Concórdia, 1995, v. 5, p. 334.

[11] François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 268.

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