Diáconos e Presbíteros: Servos de Deus no Corpo de Cristo (24)
O serviço que prestamos a Deus deve ser visto não como uma fonte de lucro ou projeção, mas como resultado de um chamado irrevogável de Deus. As Escrituras não tratam apenas da questão material, do que fazemos, mas, também, e essencialmente, com qual propósito o fazemos. A integridade de propósito em nossas ações é essencial às Escrituras. O que fazemos deve proceder das Escrituras e com o propósito de glorificar a Deus.
Paulo em seu ministério tinha esta consciência, de ser apóstolo pela vontade de Deus. A sua vontade era decorrente da vontade do seu Senhor.
Por força de ofício, já participei de alguns eventos acadêmicos. Observo que na apresentação do preletor ou conferencista destacam-se os seus títulos mais importantes, cargo que ocupa ou função que exerce. Em geral, acredito, isto predispõe positivamente o auditório a ouvi-lo com atenção considerando-o uma autoridade no assunto. O mesmo fazemos quando nos deparamos com um livro que nos chama a atenção, porém, escrito por um autor desconhecido. Tendemos a examinar quem é o autor, quem o apresenta, sua formação acadêmica, instituição em que trabalha, livros publicados etc.
Paulo inicia a Epístola como de costume, identificando-se e, apresentando o que considera o mais importante para os seus leitores: a fonte de sua autoridade apostólica, a sua vocação por vontade de Deus: “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus por vontade de Deus” (Ef 1.1/Rm 1.1-5; 1Co 1.1; 2Co 1.1; Cl 1.1; 2Tm 1.1).[1] “O apostolado de Paulo era algo para o louvor de Deus, porquanto ele foi transformado de inimigo em servo”, comenta Calvino.[2]
A sua mensagem não era uma nova filosofia resultante de suas reflexões autônomas ou experiência mística ou mesmo de vida, antes, ele falava em nome de Deus, da parte de Deus. Era de fato um enviado de Deus. É preciso ter muita cautela para não confundirmos as nossas reflexões, sem dúvida úteis e necessárias, com a Palavra de Deus. Muito do que pensamos e refletimos pode estar dominado por paixões circunstanciais, cativas de determinadas apreensões que nos impedem de ver as Escrituras em sua abrangência. É preciso pensar e repensar. Contudo, a compreensão correta vem de Deus (2Tm 2.7).[3] Quando o âmago de nossa mensagem brota simplesmente de nossa experiência, sem dúvida, há algo de errado em nosso ensino.[4] Sem dúvida a Palavra é para ser vivenciada e ensinada. Contudo, o fundamento de nosso ensino não pode ser a nossa experiência, mas, a Palavra que é o poder de Deus (Rm 1.16).[5] Paulo anunciava a Palavra.
Continuando a leitura do primeiro capítulo de Efésios, percebemos logo de início um aspecto fundamental do Deus Bendito (Ef 1.3): a sua Soberania. Ele como Senhor da Igreja é quem vocaciona os seus servos, conforme comenta Calvino em lugares diferentes: “A Deus pertence com exclusividade o governo de sua Igreja. Portanto, a vocação não pode ser legítima a menos que proceda dele”.[6] “Sempre foi da vontade de Deus conservar a direção de sua igreja para si próprio, e que sua Palavra devesse ser recebida sem contradição. Ele não deu esse privilégio a criatura alguma”.[7]
A vocação de Deus antecede à nossa convicção e, ao mesmo tempo, o chamado não cai no vazio. Deus mesmo nos confere esta certeza subjetiva de que foi ele quem nos chamou para o seu serviço (Jr 1.5; Gl 1.15; Ef 3.7/Fp 2.13).[8]
Deste modo, “nenhum homem deve tomar essa honra para si próprio, mas deve esperar pela vocação divina, pois Deus é o único que pode legitimar os ministros”.[9] Portanto, insistimos, o que torna uma pessoa capacitada para um ofício, é a vocação de Deus (Hb 5.4).[10] Ele o faz por meio da Palavra: “Porquanto a Igreja não pode ser governada senão pela Palavra”.[11]
A tentativa de falar por si mesmo, sem o chamado divino, significa a presunção de ter sob si o governo da Igreja, o que é uma blasfêmia, pois, tal direção pertence a Deus, o soberano pastor. A presunção de uma autoridade autogerada e autogerida é por si só destrutiva a quem a pressupõe e, pior, à igreja.
Paulo diz que é “apóstolo de Cristo Jesus” (Ef 1.1), a quem ele reconhece como Senhor (ku/rioj) (Ef 1.2).[12] O substantivo a)po/stoloj ocorre 79 vezes no Novo Testamento, sendo costumeiramente usado por Paulo no início de suas cartas, ainda que não exclusivamente.[13] Ele provém do verbo a)poste/llw, que significa “enviar’, “mandar” (Mt 2.16; 11.10; Jo 1.6; At 3.20).[14]
O apostolado pressupõe a graça de Deus. A sua autoridade está justamente no fato de que é Deus quem o constitui. Paulo tinha perfeita consciência disso, levando em consideração, inclusive, que ele fora um perseguidor da igreja (1Co 15.9-10; 1Tm 1.12-15).
Calvino comenta:
Ora, é certo que somos vasos frágeis e sem importância, sim, não valendo mais do que potes quebrados. O que há naqueles a quem Deus ordenou para serem ministros de sua Palavra, senão o tesouro que é inestimavelmente grande em todos os tempos, a despeito da baixeza dos vasos (2Co 4.7)?[15]
É desta forma que Paulo escreve aos Romanos e aos Gálatas:
Jesus Cristo, nosso Senhor, 5 por intermédio de quem viemos a receber graça (xá/rij) e apostolado (a)postolh/) por amor do seu nome, para a obediência por fé, entre todos os gentios. (Rm 1.4-5).
Paulo, apóstolo (a)po/stoloj), não da parte de homens, nem por intermédio de homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o ressuscitou dentre os mortos. (Gl 1.1).
Maringá, 3 de julho de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1]“Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, 2 o qual foi por Deus, outrora, prometido por intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, 3 com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi 4 e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor, 5 por intermédio de quem viemos a receber graça e apostolado por amor do seu nome, para a obediência por fé, entre todos os gentios” (Rm 1.1-5). “Paulo, chamado pela vontade de Deus para ser apóstolo de Jesus Cristo, e o irmão Sóstenes” (1Co 1.1). “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus, e o irmão Timóteo, à igreja de Deus que está em Corinto e a todos os santos em toda a Acaia” (2Co 1.1). “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por vontade de Deus, e o irmão Timóteo” (Cl 1.1). “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, pela vontade de Deus, de conformidade com a promessa da vida que está em Cristo Jesus” (2Tm 1.1).
[2]João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 1.24), p. 45.
[3] “Pondera (noe/w) (= atentar, compreender, pensar, entender) o que acabo de dizer, porque o Senhor (ku/rioj) te dará compreensão (su/nesij) (= entendimento, inteligência, discernimento) em todas as coisas” (2Tm 2.7).
[4] “No reino do misticismo espiritual, alguns têm deixado a autoridade da Palavra de Deus e estabelecido a autoridade da experiência” (Paul N. Benware, A obra do Espírito Santo hoje: In: Mal Couch, ed. ger., Os Fundamentos para o Século XXI: Examinando os principais temas da fé cristã, São Paulo: Hagnos, 2009, p. 402).
[5] “Nunca devemos basear nossas doutrinas na experiência, e sim na verdade” (D.M. Lloyd-Jones, Santificados Mediante a Verdade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (Certeza Espiritual, v. 3), 2006, p. 55).
[6]João Calvino, Gálatas, (Gl 1.1), p. 22.
[7] João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 24.
[8]“Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e, antes que saísses da madre, te consagrei, e te constituí profeta às nações” (Jr 1.5). “Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer e me chamou pela sua graça, aprouve” (Gl 1.15). “Do qual fui constituído ministro conforme o dom da graça de Deus a mim concedida segundo a força operante do seu poder” (Ef 3.7). “Porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13).
[9]João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.1), p. 22.
[10]“Ninguém, pois, toma esta honra (sumo-sacerdócio) para si mesmo, senão quando chamado por Deus, como aconteceu com Arão” (Hb 5.4).
[11] João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.9), p. 313.
[12]A palavra ku/rioj, que em seu emprego grego carrega a compreensão de legalidade e autoridade do senhorio, quando aplicada a Jesus no sentido mais profundo e denso, correspondia não ao grego comum, mas, sim, ao hwhy do Antigo Testamento. É oportuno realçar que muitas das referências feitas a Jesus como Senhor consistem em citações de textos do Antigo Testamento que se referiam a Deus. (Vejam-se: At 2.20-21; Rm 10.13 [Jl 2.31-32]; 2Ts 1.7-10; 1Co 5.5; 2Ts 1.7-10 [Is 66.6] 1Pe 3.15 [Is 8.13]. Por isso, em diversos textos do Novo Testamento a identificação de Cristo com o Pai é tão evidente que, não se tem certeza se o título “Senhor” está sendo empregado para o Pai ou para o Filho (At 1.24; 2.47; 8.39; 9.31; 11.21; 13.10-12; 16.14; 20.19; 21.14; Rm 14.11). Antes da morte de Jesus Cristo os seus discípulos dão prova de reconhecerem o Seu Senhorio. O que por certo contribuiu para isto, foi a própria interpretação feita por Jesus Cristo, do Salmo 110.1 (Mt 22.41-45 e paralelos), embora saibamos que os rabinos também aceitavam o caráter messiânico deste salmo. (Cf. William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, v. 2, (Mt 22.44-45), p. 435; D.A. Carson, Comentario Bíblico del Expositor: Mateo, Mimi: Editorial Vida, 2004, (Mt 22.43-45), p. 529. Veja-se também, H. Bietenhard, Senhor: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 4, p. 427). Todavia, ninguém havia dito que o “Filho de Davi” era também “Senhor de Davi”.
Todavia, o título ku/rioj só foi alcançado plenamente depois da Sua ressurreição e ascensão quando então, não houve mais dúvida quanto a ser Jesus, o Senhor e Cristo. (Vejam-se, entre outros: Oscar Cullman, Cristologia do Novo Testamento, São Paulo: Editora Liber, 2001, p. 268; Ronald S. Wallace, Cristologia: In: E.F. Harrison, ed., Diccionario de Teologia, Michigan: T.E.L.L., 1985, p.133). Por isso Pedro pôde falar ousadamente diante do povo e das autoridades judaicas: “29 Irmãos, seja-me permitido dizer-vos claramente a respeito do patriarca Davi que ele morreu e foi sepultado, e o seu túmulo permanece entre nós até hoje. 30 Sendo, pois, profeta e sabendo que Deus lhe havia jurado que um dos seus descendentes se assentaria no seu trono, 31 prevendo isto, referiu-se à ressurreição de Cristo, que nem foi deixado na morte, nem o seu corpo experimentou corrupção. 32 A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas. 33 Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis. 34 Porque Davi não subiu aos céus, mas ele mesmo declara: Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, 35 até que eu ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés. 36 Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor (ku/rioj) e Cristo” (At 2.29-36. Vejam-se também: 1Co 15.25; Hb 1.3,10,13). Esta convicção dos discípulos de Cristo, os impulsionou a testemunhar com firmeza, que Jesus era o Cristo (At 5.42) e Senhor (At 10.36).
[13]1Co 1.1; 4.9; 9.1,2,5; 12.28,29; 15.7,9; 2Co 1.1; Gl 1.1,17,19; Ef 1.1; 2.20; 3.5; 4.11; Fp 2.25; Cl 1.1; 1Ts 2.7; 1Tm 1.1; 2Tm 1.1; Tt 1.1.
[14]Primariamente, no grego secular, a palavra tinha o sentido de enviar um navio de carga ou uma frota. Somente mais tarde é que a palavra passou a indicar uma pessoa enviada, um emissário. Ver: E. von Eicken, et. al., Apóstolo: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 234-239.
[15]João Calvino, Sermões em Efésios, p. 29. À frente: “Ademais, aqueles que são chamados para proclamar a Palavra de Deus devem se prevenir pelo exemplo de São Paulo, caminhando em modéstia. Porque, quem somos nós quando comparados a ele? Ele nos revela que não foi escolhido por algum recurso ou aptidão, mas porque era da vontade divina que fosse assim. Logo, certifiquemo-nos de que tudo que possuímos é proveniente de Deus e de sua pura graça, e que nada podemos atribuir a nós mesmos, a menos que queiramos despojá-lo de seu direito. E sabemos que semelhante ingratidão é intolerável” (João Calvino, Sermões em Efésios, p. 30).