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A riqueza da fecunda graça de Deus e a frutuosidade de uma fé obediente e perseverante (37) (Final) - Hermisten Maia

A riqueza da fecunda graça de Deus e a frutuosidade de uma fé obediente e perseverante (37) (Final)

Considerações finais

 

Enquanto o Senhor não os abrir, os olhos de nosso coração são cegos. – João Calvino.[1]

 

Reconheço e declaro que a fé é propriamente, toda ela, obra do Espírito Santo, por cuja iluminação conhecemos a Deus e os imensos tesouros da Sua bondade; e mais, sem a Sua luz o nosso entendimento seria tão cego que nós não poderíamos ver coisa alguma, e tão desprovido de sensibilidade que não poderíamos perceber e acolher bem as realidades espirituais. – João Calvino.[2]

 

Nessas considerações finais desejo recapitular alguns pontos.

 

Como vimos, a fé é a boa obra do Espírito Santo operada em nós (Jo 6.29). Esta fé pressupõe a nossa condição de pecadores,[3] necessitados de salvação, e, também, a livre graça de Deus.

 

A fé é a nossa declaração de que Deus efetuou de forma poderosa e eficaz o nosso novo nascimento. Passamos a ter vida. A fé é, portanto, o nosso primeiro ato após a nossa ressurreição espiritual.[4] “A fé salvadora, desde o início, dirige os olhos de nossa mente e de nosso coração para longe de nós mesmos e na direção da graça de Deus em Cristo”.[5]

 

Assim sendo, denominamos de fé salvífica aquele dom da graça de Deus, por meio do qual somos habilitados a receber a Jesus Cristo como nosso único e suficiente Salvador e, a crer em todas as promessas do Deus Triúno, conforme estão registradas nas Escrituras.

 

A fé salvífica é produto da graça de Deus que age por meio da sua Palavra registrada na Bíblia (At 3.16; At 14.27; 18.27; Rm 10.17; Ef 2.8; 6.23; Fp 1.29; Hb 12.2; Tg 1.18; 1Pe 1.23; 1Jo 5.1-5).[6]

 

Como temos demonstrado ao longo desses textos, essa fé se materializa em nossas ações que, durante toda a nossa vida vão sendo moldadas pela Palavra.

 

Calvino escreve com propriedade enfatizando a ação primeira de Deus em nos regenerar para que possamos crer:

 

Somos reconhecidos como filhos de Deus, não por conta de nossa própria natureza, nem por nossa própria iniciativa, mas porque o Senhor nos gerou voluntariamente (Tg 1.18), ou seja, com base em seu amor imerecido. Daqui se deduz, primeiramente, que a fé não provém de nossa própria ação, senão que é fruto da regeneração  espiritual. Pois o Evangelista afirma que ninguém pode crer, a não ser que seja gerado por Deus. Daqui se depreende que a fé é um dom celestial. Além do mais, a fé não é um mero e frio conhecimento, porquanto ninguém pode crer se porventura não for renovado pelo Espírito de Deus.[7]

 

A genuína fé, identificada como salvadora, não é uma crença qualquer, cujo teor seja indefinido, tendo como virtude apenas o fato de poder crer, uma espécie de fé na fé. Ao contrário disso, tem como conteúdo, a Jesus Cristo como Senhor e Salvador. Fé é o abandono de toda confiança em obra produzida por nós mesmos como fundamento de nossa justificação e salvação. Ela também está convencida intelectualmente de sua veracidade e incontestabilidade (Hb 11.1). Como vimos, além deste elemento intelectual, consiste em uma rendição incondicional ao seu Senhor, em quem descansa de forma amorosa e confiante.[8]

 

A fé que não parte de um conhecimento verdadeiro e, por isso mesmo, não é vivencial, não é a verdadeira fé bíblica. A fé é persuadida pelo conhecimento que a possibilitou crer.[9] “A fé salvadora é um conhecimento seguro que produz segurança e certeza. Conhecimento e segurança caminham juntos”.[10]

 

Quando a nossa fé é autocentrada tendemos a nos frustrar ou a praticar uma autocomiseração espiritual visto que nos frustramos com as promessas que não foram feitas, contudo, foram por nós idealizadas. Neste caso, ainda com o foco equivocado nos inclinamos a achar que Deus falhou ou, que a nossa fé não foi suficiente. Este é o caminho de uma busca de fé meritória que, sendo seguido, nos distanciaria cada vez mais das Escrituras.

 

A fé não pode ser geradora de promessas divinas, antes, propulsora de uma vida que se harmonize com a promessa que procede de Deus.

 

Quando Paulo e Barnabé chegam à igreja de Antioquia, fazem um relato sumário de seu trabalho. Eles desejam compartilhar com todos os atos de Deus em sua missão entre os gentios.

 

Registra Lucas: Ali chegados, reunida a igreja, relataram quantas coisas fizera Deus com eles e como abrira aos gentios a porta da fé(At 14.27). Enfatizam o poder soberano e operante de Deus em seu ministério e, como Deus operou eficazmente chamando os seus pela fé. É por meio da Palavra que Deus nos gerou espiritualmente, tornando-nos seus filhos.

 

Deus providencia os meios para que os seus eleitos ouçam o Evangelho e, ao mesmo tempo, os chama poderosamente, aplicando a Palavra aos seus corações.

 

Calvino resume este ensinamento:

 

O reino do céu deveras se nos abre pela pregação externa do evangelho, mas ninguém entra nele a menos que Deus lhe estenda sua mão; ninguém se aproxima a menos que seja interiormente atraído pelo Espírito. Portanto, Paulo e Barnabé mostram, pelos resultados, que sua vocação era aprovada e ratificada por Deus, porquanto a fé dos gentios era precisamente como se um selo fosse impresso pela mão de Deus, a fim de a confirmar.[11]

 

Deus é quem abre o nosso coração e mente para que possamos entender salvadoramente a mensagem do Evangelho. Ilustremos isso com alguns episódios narrados por Lucas.

 

Após a ressurreição de Cristo os discípulos ainda não entendiam adequadamente as Escrituras em relação ao Messias, Jesus Cristo. Com dois deles, no caminho de Emaús, o Senhor abriu-lhes os olhos para que a compreendessem e cressem por meio da exposição das Escrituras. Foi esta a percepção deles.

 

Narra Lucas:

 

E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu; então, se lhes abriram (dianoi/gw)[12] os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles. E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha (dianoi/gw) as Escrituras? (Lc 24.30-32).

 

Agora, com os demais discípulos, Jesus mostra como as Escrituras se cumpriram em seu ministério, vida, morte e ressurreição. Lucas resume: “Então, lhes abriu (dianoi/gw) o entendimento (nou=j) para compreenderem (suni/hmi) as Escrituras” (Lc 24.45).

 

De passagem, podemos observar que o caminho para atingir a mente e o coração das pessoas é a exposição da Palavra. O Espírito que opera por meio dela não força as evidências, nem nos obriga a diminuir a nossa capacidade de pensar, antes, nos faz enxergar e crer nas evidências que estão ali diante de nós tão eloquentemente (At 3.16; 16.14;[13] 18.27; Rm 4.16; 1Co 3.5; Fp 1.29).[14]

 

Lucas relata aspectos da rotina evangelística de Paulo:

 

Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou com eles acerca das Escrituras, expondo (dianoi/gw = “explicando”, “interpretando”) e demonstrando ter sido necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos; e este, dizia ele, é o Cristo, Jesus, que eu vos anuncio. (At 17.3).

 

A minha fé se constitui em mão receptora, não criadora ou geradora de algum bem a que venhamos a receber.[15]

 

Sem a graça de Deus jamais creríamos na mensagem do Evangelho, jamais poderíamos entendê-la de forma salvadora, portanto, de modo algum seríamos salvos. Assim sendo, não é demais enfatizar: não há mérito na fé.[16]

 

Por sua vez, esta Palavra uma vez ouvida e entendida, produz frutos em seus receptores. Conforme já nos referimos, Paulo dá graças a Deus pela vida dos colossenses a esse respeito:

 

3 Damos sempre graças a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, quando oramos por vós, 4desde que ouvimos (a)kou/w) da vossa fé em Cristo Jesus e do amor que tendes para com todos os santos; 5por causa da esperança que vos está preservada nos céus, da qual antes ouvistes (proakou/w)[17] pela palavra da verdade do evangelho, 6 que chegou até vós; como também, em todo o mundo, está produzindo fruto e crescendo, tal acontece entre vós, desde o dia em que ouvistes (a)kou/w) e entendestes (e)piginw/skw = conhecer acuradamente, intensamente) a graça de Deus na verdade. (Cl 1.3-6).

 

Somos, portanto, chamados a viver a nossa fé em grata obediência a Deus, onde Ele nos colocar e aonde Ele nos mandar. Peçamos a Deus discernimento e frutifiquemos em nossa fé. A Deus toda Glória. Amém.

 

 

São Paulo, 26 de fevereiro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 

*Este post faz parte de uma série. Acesse aqui a série completa

 


[1]João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.16), p. 41.

[2]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.10), p. 145.

[3] Veja-se o desenvolvimento deste argumento em: Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 408ss.

[4]Cf. John MacArthur, O Evangelho Segundo os Apóstolos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2011, p. 88.

[5] Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 223.

[6] “Pela fé em o nome de Jesus, é que esse mesmo nome fortaleceu a este homem que agora vedes e reconheceis; sim, a fé que vem por meio de Jesus deu a este saúde perfeita na presença de todos vós” (At 3.16). “Querendo ele percorrer a Acaia, animaram-no os irmãos e escreveram aos discípulos para o receberem. Tendo chegado, auxiliou muito aqueles que, mediante a graça, haviam crido(At 18.27). Paz seja com os irmãos e amor com fé, da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo(Ef 6.23). “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele (Fp 1.29). “Olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus” (Hb 12.2). “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido. 2 Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e praticamos os seus mandamentos. 3 Porque este é o amor de Deus: que guardemos os seus mandamentos; ora, os seus mandamentos não são penosos, 4 porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé. 5 Quem é o que vence o mundo, senão aquele que crê ser Jesus o Filho de Deus?” (1Jo 5.1-5).

[7]João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.13), p. 47-48.

[8] Para uma descrição sumária deste ponto, entre outros, vejam-se: R.C. Sproul, O Que é teologia Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 59-60; L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 506-508; Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, São Paulo: Paracletos, 2002, p. 103-104; Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 409-412. Para uma abordagem histórica e crítica, um pouco mais ampla, veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 128-135; 212-215.

[9]Veja-se: Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 412.

[10] Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 99.

[11]John Calvin, Commentary upon the Acts of the Apostles, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 19, (At 14.27), p. 31.

[12] Este verbo tem uma aplicação espiritual, conforme a do texto de Lc 24.31,32,45, e também física (Mc 7.34-35).

[13]Conrad Pellikan (1478-1556), um dos tradutores da Bíblia de Zurique (1529), comentando At 16.4, escreveu: “…. ninguém pode ter fé na Palavra por suas próprias forças, Mas somente pelo dom do Espírito Santo. Portanto, ao ouvir as promessas do evangelho, não tenhamos esperança no poder da carne, mas oremos para que o Senhor abra nossos corações, conceda-nos o dom do Espírito, coloque em nós a fé e nos preencha com a obra da justiça” (Esther Chung Kim; Todd R. Hains, Comentário Bíblico da Reforma – Atos, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 275).

[14] “Pela fé em o nome de Jesus, é que esse mesmo nome fortaleceu a este homem que agora vedes e reconheceis; sim, a fé que vem por meio de Jesus deu a este saúde perfeita na presença de todos vós” (At 3.16). “Certa mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura, temente a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu (dianoigw) o coração para atender às coisas que Paulo dizia (At 16.14). “Querendo ele percorrer a Acaia, animaram-no os irmãos e escreveram aos discípulos para o receberem. Tendo chegado, auxiliou muito aqueles que, mediante a graça, haviam crido(At 18.27). “Essa é a razão por que provém da fé, para que seja segundo a graça, a fim de que seja firme a promessa para toda a descendência, não somente ao que está no regime da lei, mas também ao que é da fé que teve Abraão (porque Abraão é pai de todos nós” (Rm 4.16). “Quem é Apolo? E quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um” (1Co 3.5). “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele (Fp 1.29).

[15]“A fé não é chamada de mão porque trabalha ou merece a justificação de algum modo, e sim porque ela recebe Cristo, abraça-o e se apropria dele mediante a imputação divina. A fé não é uma mão criativa, e sim uma mão receptiva” (Joel R. Beeke, Justificação pela Fé Somente (A Relação da Fé com a Justificação): In: John F. MacArthur, Jr., et. al., A Marca da Vitalidade Espiritual da Igreja: Justificação pela Fé Somente, São Paulo: Editora Cultura Cristã, (2000), p. 56).

[16]“Não existe orgulho na fé. Fé é simplesmente a crença de que nada podemos fazer para nos salvar, mas que confiamos plenamente na graça de Deus” (Peter Jones, Verdades do Evangelho x Mentiras pagãs, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 34).

[17] Esta palavra só ocorre aqui em todo o NT.

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