A riqueza da fecunda graça de Deus e a frutuosidade de uma fé obediente e perseverante (30)
O Espírito ora conosco e por nós. Ele, juntamente com Cristo, em esferas diferentes, intercede por nós: “Cristo intercede por nós no céu, e o Espírito Santo na terra. Cristo nosso Santo Cabeça, estando ausente de nós, intercede fora de nós; o Espírito Santo nosso Consolador intercede em nosso próprio coração quando Ele o santifica como Seu templo”, contrasta Kuyper (1837-1920).[1]
A intercessão de Cristo respalda-se nos Seus merecimentos, obtendo para os Seus eleitos, os frutos da Sua Obra expiatória (Rm 8.34; Hb 7.25; 1Jo 2.1).[2]
Creio ser necessário enfatizar que a intercessão de Cristo não minimiza o nosso pecado nem atenua a nossa responsabilidade. O Pai sabe que somos pecadores contumazes. O Filho nos conhece bem. O Espírito que opera em nós vivencia a nossa teimosia e capacidade quase invencível em fazer o mal e perseverar nele. Por isso, não há tons amenos na intercessão do Filho a nosso favor. Porém, há a dignidade daquele que nos representa junto ao Pai. Ele cumpriu todas as demandas da Lei em nosso lugar. Nos vestiu com a capa de sua santa justiça e nos apresenta imaculados diante da majestade do Pai. A intercessão de Cristo é uma antecipação do que teremos na glorificação futura. A Igreja será uma expressão alegre da majestosa obra da Trindade revelada no Filho (Jd 24-25).
O Espírito, por sua vez, intercede por nós considerando as nossas necessidades vitais e costumeiramente imperceptíveis aos nossos próprios olhos.
Calvino observou que na oração, “a língua nem sempre é necessária, mas a oração verdadeira não pode carecer de inteligência e de afeto de ânimo”,[3] a saber: “O primeiro, que sintamos nossa pobreza e miséria, e que este sentimento gere dor e angústia em nossos ânimos. O segundo, que estejamos inflamados com um veemente e verdadeiro desejo de alcançar misericórdia de Deus, e que este desejo acenda em nós o ardor de orar”.[4]
Spener (1635-1705), falando sobre a oração, segue uma linha semelhante:
Não é suficiente que se ore exteriormente, com a boca, pois a oração verdadeira e mais necessária acontece no nosso ser interior, podendo expressar-se em palavras ou permanecer na alma, mas, de qualquer maneira, lá acha e encontra Deus.[5]
O Espírito, que procede do Pai e do Filho, é Quem nos guia em nossas orações, fazendo-nos orar corretamente ao Pai. De fato, Deus propiciou para nós todos os elementos fundamentais para a nossa santificação (2Pe 1.3). A ação do Espírito aponta nesta direção, indicando também, que as nossas orações são “imperfeitas, imaturas, e insuficientes”, por isso Ele nos auxilia, nos ensinando a orar como convém.
Paulo fala que nós, os crentes em Cristo, recebemos o Espírito de ousada confiança em Deus, que nos leva, na certeza de nossa filiação divina, a clamar “Aba, Pai”. ”Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos Aba, Pai” (Rm 8.15). O fato de Paulo usar a mesma expressão de Cristo para nós “significa que, quando Jesus deu a Oração Dominical aos Seus discípulos, também lhes deu autoridade para segui-Lo em se dirigirem a Deus como ‘abbã’, dando-lhes, assim, uma participação na Sua condição de Filho”.[6] Somente pelo Espírito poderemos nos dirigir a Deus desta forma, como uma criança que se lança sem reservas nos braços do seu Pai amoroso.
Quando oramos sabemos que estamos falando com o nosso Pai. Desta forma, a oração é uma prerrogativa dos que estão em Cristo. Somente os que estão em Cristo pela fé, têm a Deus como o seu legítimo Pai (Jo 1.12; Rm 8.14-17; Gl 4.6; 1Jo 3.1-2). De onde se segue que esta oração (Pai Nosso), apesar de não mencionar explicitamente o nome de Cristo, é feita no Seu nome, visto que somos filhos de Deus – e é nesta condição que nos dirigimos a Deus – por intermédio de Cristo Jesus (Gl 3.26).[7] Portanto, quando oramos o Pai Nosso sinceramente, na realidade estamos orando no nome de Jesus Cristo, pois, foi Ele mesmo quem nos ensinou a fazê-lo. Assim, devemos, pelo Espírito – nosso intercessor – no nome de Jesus – nosso Mediador – orar “Pai nosso que estás no céu….”.
O Espírito que em nós habita e nos leva à oração testemunha em nós que somos filhos de Deus. “O próprio Espírito testifica (summarture/w) com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8.16); O Pai Nosso é a “Oração dos Filhos”.[8] Valendo-me de expressões de Bonhoeffer (1906-1945), podemos dizer que o Pai Nosso é um “resumo” de todas as orações das Escrituras,[9] tornando-se um “gabarito”, por meio do qual devemos analisar a integridade bíblica de nossa oração.[10]
O problema, dentro do contexto vivido por Jesus, é que muitos dos judeus, na realidade, ofereciam as suas orações aos homens, mesmo usando o nome de Deus. Usar o nome de Deus não é garantia de estarmos nos dirigindo a Ele. Do mesmo modo, podemos estar tão preocupados com a forma de nossas orações que nos esquecemos do Pai; é a Ele que a nossa oração é destinada; portanto, cabe a Ele, que vê em secreto, julgá-la. A nossa oração não necessita de publicidade para que Deus a ouça; Ele vê em secreto e nos recompensa conforme o que vê (Mt 6.6).
No Antigo Testamento, por intermédio de Isaías, Deus recrimina os judeus dizendo que eles sacrificavam simplesmente porque gostavam de fazê-lo, não porque quisessem agradá-Lo. O ritual é que era prazeroso, não a satisfação de Deus:
Como estes escolheram os seus próprios caminhos, e a sua alma se deleita nas suas abominações, assim eu lhes escolherei o infortúnio e farei vir sobre eles o que eles temem; porque clamei e ninguém respondeu, falei, e não escutaram; mas fizeram o que era mau perante mim, e escolheram aquilo em que eu não tinha prazer (Is 66.3-4).
Bonhoeffer (1906-1945) comenta:
Uma criança aprende a falar porque seu pai fala com ela. Ela aprende a falar a língua paterna. Assim também nós aprendemos a falar com Deus, porque Deus falou e fala conosco. Pela palavra do Pai no céu seus filhos aprendem a comunicar-se com Ele. Ao repetir as próprias palavras de Deus, começamos a orar a Ele. Não oramos com a linguagem errada e confusa de nosso coração, mas pela palavra clara e pura que Deus falou a nós por meio de Jesus Cristo, devemos falar com Deus, e Ele nos ouvirá.[11]
Orar é exercitar a nossa confiança no Deus da Providência, sabendo que nada nos faltará, porque Ele é o nosso Pai. A oração tem sempre uma conotação de submissão confiante. Portanto, orar ao Pai, como temos enfatizado, significa sintonizar a nossa vontade com a dEle; sabendo que Ele é santo e a Sua vontade também o é (Mt 6.9,10).
A presença e direção do Espírito na vida do povo de Deus é uma realidade. Desconsiderar este fato significa desprezar o registro bíblico e o testemunho do Espírito em nós (Rm 8.16). “A vida cristã é companheirismo com o Pai e com o Filho, Jesus Cristo, por meio do Espírito Santo”.[12]
O Espírito em nós é uma fonte de consolo e estímulo à perseverança e obediência devida a Deus. Consideremos este fato – à luz da Palavra e da nossa experiência – em todos os nossos caminhos, e o Espírito mesmo nos iluminará.
São Paulo, 18 de março de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
*Este post faz parte de uma série. Acesse aqui a série completa
[1] Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, Chaattanooga: AMG. Publishers, 1995, p. 670.
[2] “Não temos como medir esta intercessão pelo nosso critério carnal, pois não podemos pensar do Intercessor como humilde suplicante diante do Pai, com os joelhos genuflexos e com as mãos estendidas. Cristo contudo, com razão intercede por nós, visto que comparece continuamente diante do Pai, como morto e ressurreto, que assume a posição de eterno intercessor, defendendo-nos com eficácia e vívida oração para reconciliar-nos com o Pai e levá-lo a ouvir-nos com prontidão” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.34), p. 304).
[3]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 240. Para uma interpretação alternativa do texto de Romanos 8.26-27, consulte Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 916-917, que associa a passagem a “suspiros e gemidos inarticulados que nós mesmos emitimos em oração, que então o Espírito Santo transforma em intercessão efetiva diante do trono divino” (p. 916).
[4]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 243.
[5]Ph. J. Spener, Mudança para o Futuro: Pia Desideria, São Paulo; Curitiba. PR.: Encontrão Editora; Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, SP.: 1996, p. 119.
[6] O. Hofius, Pai: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, p. 383.
[7] Veja-se: João Calvino, As Institutas, III.20.36.
[8] Conforme expressão de Lloyd-Jones (1899-1981) (D.M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: FIEL., 1984, p. 358). Veja-se a relação feita por Calvino entre a oração e a convicção de nossa filiação divina (João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.16), p. 279-280).
[9]“Todas as orações da Bíblia estão resumidas no Pai Nosso. A sua amplitude infinita abrange-as todas. No entanto, o Pai Nosso não torna as orações da Bíblia supérfluas, mas elas são a riqueza inesgotável do Pai Nosso e o Pai Nosso é sua coroa e síntese” (Dietrich Bonhoeffer, Orando com os salmos, Curitiba, PR.: Editora Encontrão, 1995, p. 15).
[10]“O Pai Nosso se torna o gabarito pelo qual conferimos se estamos orando em nome de Jesus ou em nosso próprio nome” (Dietrich Bonhoeffer, Orando com os salmos, Curitiba, PR.: Editora Encontrão, 1995, p. 15).
[11]Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, Curitiba, PR.: Encontrão Editora, 1995, p. 12-13.
[12]D.M. Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 1), p. 98.