A Pessoa e Obra do Espírito Santo (448)
6.4.12.1.4. A Sabedoria do Espírito na cotidianidade do povo de Deus (Continuação)
A realidade se mostra a nós com contornos próprios delineados não simplesmente pelo que ela é, mas, também, pelos nossos olhos que a enxergam e pinçam fragmentos desta realidade conferindo-lhes novas configurações com cores mais ou menos vivas, atribuindo-lhes valores muitas vezes bastante distintos dos reais.
Desta forma, a avaliação cristã de todas as coisas deverá ser crítica e construtiva. A cosmovisão do ser pensante, por mais apaixonante e intensa que seja,[1] não pode estar acima de uma avaliação. O seu produto não é simplesmente produto de seu gênio autônomo, desejado, porém, inexistente. Aliás, inclino-me a crer que o seu gênio é profundamente modelado pelo “clima” ou “atmosfera” de sua época, pelas cores com as quais a realidade é pintada e os acordes que dão o tom aos valores hodiernos, ainda que isso não determine uma única forma de apreensão e expressão, como sublinha Wölfflin (1864-1945).[2] Aliás, nem um de nós pode ser separado da história e da sua história.[3]
Contudo, uma tentação para todos nós é sacrificar princípios que consideramos absolutos, os relativizando a fim de sermos aceitos pelos nossos pares, ou, nos considerar atualizados. Os viúvos intelectuais de hoje, foram, em geral, casados com a moda de ontem. É extremamente fácil e perigoso nos deixarmos seduzir pelos nossos próprios pensamentos a respeito do pensamento vigente e aparentemente definitivo. O nosso amanhã poderá refletir tragicamente o nosso consórcio intelectual e moral de hoje.[4]
O nosso desafio é ser cristãos em todos os desafios que se apresentam em nossa cultura. Portanto, não estamos propondo uma alienação da cultura, nem, simplesmente, uma identificação cultural irresponsável, imaginando que a força da igreja esteja em sua semelhança e não na sua diferença genética e, portanto, naturalmente sobrenatural. Fomos gerados de novo para uma nova vida caracterizada por uma nova esperança, fundamentada na historicidade da ressurreição de Cristo, que perpassa e confere sentido à nossa existência hoje (1Pe 1.3,13,21; 3.15/1Tm 4.10).[5]
Acreditamos que podemos conhecer a verdade – ainda que não exaustivamente ‒ porque nenhuma cosmovisão está acima de uma avaliação bíblica.
Os bereanos se constituem em exemplo de uma avaliação criteriosa do que ouviram, primariamente, com atenção e interesse, independente de quem lhes ensinava, conforme narra Lucas: “Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando (a)nakri/zw) (“fazer uma pesquisa cuidadosa”, um “exame criterioso”, “inquirir”) as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim”(At 17.11).
O nosso desejo de servir a Deus não nos deve tornar presas fáceis de qualquer ensinamento ou doutrina. Precisamos cientificar-nos se aquilo que é-nos transmitido procede ou não de Deus. Para este exame, temos as Escrituras Sagradas como fonte de todo conhecimento revelado a respeito de Deus e do que Ele deseja de nós.
O não investigar (Sl 10.4) é um mal em si mesmo. Um bom princípio é examinar o que se nos apresenta como realidade dentro de suas multifárias percepções,[6] não nos deixando seduzir e guiar por nossas inclinações ou pelas tendências massificantes.
São Paulo, 30 de março de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]“Cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração que pode ser expresso como uma estória ou num conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos movemos e existimos” (James W. Sire, Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito. Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 179). “A essência de uma cosmovisão reside profundamente nos recônditos interiores do eu humano”(Ibidem.,p. 180).“Cosmovisões são uma questão do coração”(Ibidem., p. 181).“Se havemos de ter uma cosmovisão cristã, buscaremos eliminar as contradições em nossa cosmovisão”(Ibidem., p. 193).“Vivemos a nossa cosmovisão ou ela não é a nossa cosmovisão” (Ibidem., p. 195).
[2] Heinrich Wölfflin, Conceitos Fundamentais da História da Arte, 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, (2ª tiragem) 2006, p. 331ss. No campo da história, tempos percepções semelhantes. Destaco dois autores: Jacob Burckhardt (1818-1897) – um dos maiores historiadores do século XIX – referindo-se à sua obra magna sobre o Renascimento (1855), admitiu que: “….os mesmos estudos realizados para este trabalho poderiam, nas mãos de outrem, facilmente experimentar não apenas utilização e tratamento totalmente distintos, como também ensejar conclusões substancialmente diversas” (Jacob Burckhardt, A Cultura do Renascimento na Itália: Um Ensaio,São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 21). Do mesmo modo, um historiador contemporâneo, Delumeau: “Identificar um caminho não implica achá-lo sempre belo, como não implica que não haja outro possível” (Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento,Lisboa: Editorial Estampa, 1984, v. 1, p. 21).
[3]“Por mais que lutemos arduamente para evitar os preconceitos associados à cor, credo, classe ou sexo, não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista particular. O relativismo cultural obviamente se aplica, tanto à própria escrita da história, quanto a seus chamados objetos. Nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra” (Peter Burke, Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro: in: Peter Burke, org. A Escrita da História: novas perspectivas, São Paulo: UNESP., 1992, p. 15.).
[4] Vejam-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 59; W. G. Tullian Tchividjian, Fora de Moda, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 31.
[5]“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos” (1Pe 1.3). “Por isso, cingindo o vosso entendimento, sede sóbrios e esperai inteiramente na graça que vos está sendo trazida na revelação de Jesus Cristo” (1Pe 1.13). “Que, por meio dele (Jesus Cristo), tendes fé em Deus, o qual o ressuscitou dentre os mortos e lhe deu glória, de sorte que a vossa fé e esperança estejam em Deus” (1Pe 1.21). “Antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós” (1Pe 3.15). “Ora, é para esse fim que labutamos e nos esforçamos sobremodo, porquanto temos posto a nossa esperança no Deus vivo, Salvador de todos os homens, especialmente dos fiéis” (1Tm 4.10).
[6] “A prova de que as coisas são apenas valores é óbvia; pegue-se uma coisa qualquer, transmita-lhe diferente sistema de valoração, e se terá outras tantas coisas diferentes em lugar de apenas uma. Compare-se o que é a terra para um lavrador e para um astrônomo: para o lavrador é suficiente pisar a rubra pele do planeta e arranhá-la com o arado; sua terra é um caminho, uns sulcos e umas messes. O astrônomo necessita determinar exatamente o lugar que o globo ocupa em cada instante dentro da enorme suposição do espaço sideral: o ponto de vista da exatidão o obriga a convertê-la em uma abstração matemática, em um caso da gravitação universal. O exemplo poderia continuar indefinidamente.
“Não existe, portanto, essa suposta realidade imutável e única com a qual se pode comparar os conteúdos das obras artísticas; há tantas realidades quanto pontos de vista. O ponto de vista cria o panorama. Há uma realidade de todos os dias formada por um sistema de laxas relações, aproximativas, vagas o suficiente para os usos da vida cotidiana. Há uma realidade científica forjada em um sistema de relações exatas, impostas pela necessidade de exatidão. Ver e tocar as coisas não são, no fim das contas, senão maneiras de pensá-las” (Ortega y Gasset, Adão no Paraíso: In: Juan Escárnez Sánchez, Ortega y Gasset, Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, p. 127).