A Pessoa e Obra do Espírito Santo (426)
13) Sábio manejo da Palavra em seu anúncio perseverante
“20 jamais deixando de vos anunciar coisa alguma proveitosa e de vo-la ensinar publicamente e também de casa em casa, (…) 24 Porém em nada considero a vida preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça de Deus. (…) 27 porque jamais deixei de vos anunciar todo o desígnio de Deus. (…) 31 Portanto, vigiai, lembrando-vos de que, por três anos, noite e dia, não cessei de admoestar, com lágrimas, a cada um” (At 20.20,24,27,31).
Começo aqui com uma figura simples e primorosa usada por Kuyper para falar da responsabilidade dos ministros no ensino da Igreja:
Não há dúvida de que a ignorância tem causado muita confusão, mas nós afirmamos que um guia que negligencia o exame das estradas antes de empreender um trabalho de condutor de viajantes é indigno de seu título. Um ministro da Palavra é um guia espiritual, nomeado pelo Senhor Jesus para conduzir os peregrinos que viajam para a Jerusalém celestial através dos Alpes da fé, onde as comunicações comuns da vida terrena cessaram de um ao outro platô da montanha. Dessa forma, ele é indesculpável quando, meramente supondo a localização da cidade celestial, aconselha seus peregrinos a tentarem o caminho que parece ir naquela direção. Em virtude de seu posto, ele deve ter como seu objetivo principal conhecer qual é o caminho mais curto, mais seguro e mais certo e, então, dizer-lhes que esse, e não outro, é o caminho a seguir. Antigamente, quando os vários caminhos ainda não tinham sido examinados, era até certo ponto recomendável tentar todos, mas, agora, visto que o seu caráter enganador é tão bem conhecido, tornou-se imperdoável tentá-los novamente.[1]
Conforme já mencionamos, vemos aqui a responsabilidade dos que ensinam. A palavra é o conteúdo da mensagem do Ministro.
A Timóteo, Paulo recomenda: “Procura (spouda/zw = “esforçar-se com zelo”, “apressar-se”)[2] apresentar-te a Deus aprovado (do/kimoj = “aprovado após exame”), como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem (o)rqotome/w) a palavra da verdade (a)lh/qeia)” (2Tm 2.15).
O sábio manejo da Escritura significa estudá-la, vivenciá-la e proclamá-la conforme o seu propósito. O manejo sábio da Escritura envolve, necessariamente, fidelidade ao Senhor da Escritura.
Em certa ocasião, enquanto me preparava para escrever um texto, minha esposa me interrompe do lado de fora da casa, batendo na janela de meu escritório, pedindo uma tesoura para cortar alguns arbustos. Perguntei-lhe de forma uma tanto incerta se a tesoura servia para isso. A sua resposta foi objetiva e preocupante: “Serve sim. Amolar é muito barato. Amolei nesses dias a tesoura da cozinha que usava para cortar tudo e custou só dois reais”. Pensei: serve, mas não é adequado. Peguei a tesoura dela na cozinha e lhe passei.
Em geral aquilo que usamos – nosso carro, computador, máquina de lavar roupa, chave de fendas, alicate, etc. -, têm a sua especificidade. Quando usamos algo fora de seus objetivos e especificações, é provável que além de não alcançarmos de forma satisfatória o nosso propósito imediato, o estraguemos para o seu propósito específico.
Mesmo a igreja tendo a oportunidade de ler as Escrituras individualmente, aos pastores compete a tarefa de ensinar a Palavra com sistematicidade, simplicidade e profundidade, adequando o ensino ao nível de seu público.
Se quisermos ser considerados mestres cristãos, devemos ser fiéis à verdade bíblica. A infidelidade, ao contrário do que possa parecer em um primeiro momento, não consiste apenas em acrescentar ensinamentos estranhos à Palavra, mas, também, omitir e, talvez de forma mais sutil, nos contentarmos com amenidades, sem expor com clareza, fidelidade e profundidade a Palavra de Deus, não conduzindo o rebanho a um conhecimento mais elevado de Deus.
Como pregadores e mestres, é necessário que não nos contentemos em guiar as pessoas apenas pelo sopé da montanha da glória de Deus; “torne-se um alpinista nos rochedos íngremes da majestade de Deus”, aconselha Piper.[3]
A clareza só é possível se compreendermos adequadamente o texto bíblico. Fidelidade exige o silêncio reverente diante do mistério e a ousadia edificante diante do estudo do revelado. Ambas as atitudes nos previnem da especulação pecaminosa e da ingratidão para com o que Deus nos tem concedido na Escritura. Calvino nos instrui: “As cousas que o Senhor deixou recônditas em secreto não perscrutemos, as que pôs a descoberto não negligenciemos, para que não sejamos condenados ou de excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra”.[4]
Isto não significa que todos nós conseguimos compreender perfeita e exaustivamente a Palavra, mas, aponta para a responsabilidade que temos de, pela graça, crescer no conhecimento de Jesus Cristo que nos advém pela Escritura (2Pe 3.18).[5] O ensino da Palavra é um privilégio altamente responsabilizador. Deus, por graça, tem se valido de seus servos para a transmissão de sua mensagem. Somos embaixadores cuja responsabilidade é sermos integralmente fiéis à mensagem do Rei. Não somos autores da mensagem. Ela não nos pertence. No entanto, somos arautos e embaixadores comissionados pelo Senhor[6] a quem devemos representar com integridade e responsabilidade (Mt 10.5-7,16,40; 2Co 5.20; 1Ts 2.13).[7] A pregação não é apenas uma questão de decisão pessoal, antes, é uma ordem divina.[8]
Com conhecimento de causa, em 1956, Lloyd-Jones (1899-1981) lamentava que “muitíssimas vezes os ministros cristãos não têm sido senão uma espécie de Capelão da Corte, declarando vagas generalidades”.[9]
Sem dúvida, a nossa vocação é outra. Deste modo, aquele que prega deve ter consciência de que o púlpito não é o lugar para se exercitar as opiniões pessoais e subjetivas, mas sim, para pregar a Palavra, anunciando todo o desígnio de Deus, sob a iluminação do Espírito. O Espírito honra exclusivamente a sua Palavra, não a nossa.[10] Se formos fiéis ao texto bíblico, Ele também nos honrará.[11] A linguagem do Espírito é una. A Revelação é múltipla, porém, há uma univocidade orgânica de conteúdo.
Alexander Vinet (1797-1847) definiu bem a pregação, ao dizer ser ela “a explicação da Palavra de Deus, a exposição das verdades cristãs, e a aplicação dessas verdades ao nosso rebanho”.[12] Conforme vimos, Calvino escrevera na mesma linha: “A Escritura é a fonte de toda a sabedoria, e os pastores terão de extrair dela tudo o que eles expõem diante do seu rebanho”.[13]
Lloyd-Jones (1899-1981), numa série de sermões pregados (1963) sobre Isaías 1.1-18, declarou corretamente: “Não estou aqui para ventilar minhas próprias ideias e teorias, porém para expor a Palavra de Deus”.[14] Sem a Palavra, o púlpito torna-se um lugar que no máximo serve como terapia para aliviar as tensões de um auditório cansado e ansioso em busca de refrigério para as suas necessidades mais imediatamente percebidas.[15] Ele pode conseguir o alívio do sintoma, mas não a cura para as suas reais necessidades.
Maringá, 26 de fevereiro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 392.
[2]A ideia da palavra é de fazer todo o possível – de modo intensivo, urgente, diligente e zeloso –, para cumprir a sua tarefa. Denota uma diligência que se esforça por fazer todo o possível para alcançar o seu objetivo.
[3] John Piper, A Supremacia de Deus na Pregação, São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 60.
[4]João Calvino, As Institutas, III.21.4.
[5]“Antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno” (2Pe 3.18).
[6]“Todo arauto que sobe a um púlpito é diretamente responsável àquele que o comissionou ao dever de pregar. Se você agrada a Deus, não importa a quem desagrada. E, se você desagrada a Deus, não importa a quem agrada” (Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 71).
[7] Cf. John Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 142-146.
[8]Veja-se: Iain H. Murray, A Vida de Martyn Lloyd-Jones 1899-1981: Uma biografia, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2014, p. 79-80.
[9]D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 52.
[10] “O Espírito Santo é o poder atuante na Igreja, e o Espírito Santo jamais honrará coisa alguma senão a Sua Palavra. Foi o Espírito Santo quem nos deu esta Palavra. Ele é o seu Autor. Não é dos homens! Tampouco a Bíblia é produto da ‘carne’ e do ‘sangue’. (…) O Espírito não honrará nada, senão Sua Palavra. Portanto, se não crermos e não aceitarmos sua Palavra, ou se de algum modo nos desviarmos dela, não teremos direito de esperar a bênção do Espírito Santo. O Espírito Santo honrará a verdade, e não honrará outra coisa. Seja o que for que fizermos, se não honrarmos esta verdade, Ele não nos honrará” (D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 103).
[11] “Deus honrará aqueles que honram a sua Palavra” (Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 34).
[12] Alexander R. Vinet, Pastoral Theology: or, The Theory of the Evangelical Ministry, 2. ed. New York: Ivison, Blakeman, Taylor & Co. 1874, p. 189.
[13] João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 4.13), p. 123.
[14] D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 67.
[15] A constatação de Carson é de grande gravidade. Talvez devêssemos levá-la a sério, nós, costumeiramente tão ávidos por modismos: “A cultura terapêutica invadiu tanto a igreja que agora alguns seminários têm mais alunos matriculados em programas de aconselhamento que treinando para ser pregadores do Evangelho” (D.A. Carson, O Deus amordaçado: o Cristianismo confronta o pluralismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2013, p. 51).