A Pessoa e Obra do Espírito Santo (421)
J) Visão escatológica do Reino: Herança eterna
“25 Agora, eu sei que todos vós, em cujo meio passei pregando o reino, não vereis mais o meu rosto. (…) 32 Agora, pois, encomendo-vos ao Senhor e à palavra da sua graça, que tem poder para vos edificar e dar herança entre todos os que são santificados” (At 20.25,32).
Conforme já tratamos mais detalhadamente, Paulo confia os presbíteros à Palavra da graça de Deus. Por meio da Palavra Deus nos edifica e nos conduz à herança entre os que são santificados. Eles não poderiam perder este alto privilégio, especialmente quando estivessem em dificuldades, lutando pela fé em meio à presença de lobos vorazes – falsos mestres – que, certamente com o apoio de muitas ovelhas ingênuas ou mal-intencionadas, seriam ouvidos, admirados e seguidos. Eles deveriam persistir no ensino da Palavra. Somente por meio dela a igreja seria edificada e conduzida à herança que Deus, o Rei eterno, tem preparado para os santos.
A pregação cristã é sempre escatológica. O Reino tem um sentido presente e futuro. A mensagem cristã é para o aqui e agora e para um além e depois. Moltmann está correto ao afirmar que “o cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só a modo de apêndice; ele é perspectiva e tendência para frente, e por isto mesmo, renovação e transformação do presente”.[1]
A Escatologia de fato está inserida em tudo o que cremos e somos. “O escatológico impregna qualquer presente existencial”.[2] A Escatologia é o elemento norteador de nossa fé. Portanto, a nossa fé tem um sentido escatológico porque ali ela se consumará.
Tiremos a perspectiva escatológica da fé cristã, e nos perguntemos: À luz da eternidade, o que importa esta ou aquela doutrina? E a conclusão será efetivamente: comamos e bebamos que amanhã talvez morreremos!
Por isso mesmo o Reino de Deus é o coração da mensagem de Cristo bem como dos apóstolos. O crente no Antigo Testamento aguardava a chegada do Reino de Deus que estava associada à figura do Filho do Homem, descrita por Daniel (Dn 7.13-14/Mt 16.27,28; 17.12,22; Lc 9.58; Jo 3.13,14). Jesus Cristo, o Filho do Homem, inaugurou o Reino de Deus (Lc 11.20);[3] por isso, o Reino está indissoluvelmente ligado à Sua Pessoa. Jesus Cristo, a Sua mensagem e atos incorporam a presença do Reino que chegara. Orígenes (c. 185-254), corretamente, disse que Jesus Cristo era a “autobasileia”, o reino em pessoa.[4] “A relação entre o Reino de Deus e a revelação messiânica passa a ser uma correlação de força tal que quase se poderia falar de identificação de Jesus Cristo com o Reino de Deus; Ele não apenas proclama, mas é, na Sua pessoa, o Reino que está entre nós”, escreve Blauw[5] Por isso, é que o Novo Testamento nos ensina que pregar o Reino é o mesmo que pregar a Jesus Cristo:
Todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe ou mulher, ou filhos, ou campos, por causa do meu nome, receberá muitas vezes mais, e herdará a vida eterna. (Mt 19.29).
Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos, por amor de mim e por amor do evangelho, que não receba, já no presente. (Mc 10.29-30).
Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou mulher, ou irmãos, ou pais, ou filhos por causa do reino de Deus. (Lc 18.29).
Filipe, que os evangelizava a respeito do reino de Deus e do nome de Jesus Cristo. (At 8.12).
Pregando o reino de Deus, e, com toda a intrepidez, sem impedimento algum, ensinava as cousas referentes ao Senhor Jesus Cristo. (At 28.31). (Grifos meus).
Deste modo – insistimos neste ponto -, evangelizar significa pregar o Reino e Senhorio de Jesus. Por isso, é que “o Reino de Deus é o tema central da pregação de Jesus e, por extensão, da pregação e ensino dos apóstolos”.[6]
Este Evangelho também é chamado de “Palavra da verdade” (Cl 1.5; Ef 1.13); “Evangelho da salvação” (Ef 1.13); “Evangelho das insondáveis riquezas de Cristo” (Ef 3.8); “Evangelho da promessa” (At 13.32); Evangelho da esperança (Cl 1.23); “Evangelho da paz” (Ef 6.15).
Portanto, quando evangelizamos, devemos ter em mente o sentido do que estamos proclamando. Não estamos simplesmente vendendo um produto ou, quem sabe, divulgando uma ideia de forma descompromissada, não; evangelizar é proclamar o Reino de Deus e, o Reino de Deus é o Reinado de Cristo, onde se evidencia o triunfo da Sua majestosa justiça, do Seu governo e da Sua Lei.[7] Deste modo, a pregação da Igreja deverá ser caracterizada sempre pelo senso de urgência, conclamando os homens ao arrependimento e fé em Jesus Cristo, o Rei Eterno. O Reino, ainda que não somente, sempre envolve o choro e a tristeza de pecadores arrependidos que foram alcançados pela graça.[8]
A Igreja não é o Reino; mas, é por meio dela que o Reino se revela e se efetiva; por isso, ambos são inseparáveis.[9]
Olhando a Evangelização ensinada e praticada no Novo Testamento, podemos perceber que ela era muito mais abrangente do que hoje normalmente costumamos pensar. O que tem acontecido é que muitas vezes temos nos esquecido da mensagem; temos corrido tanto, temos falado tanto, temos discutido tanto… que, de repente, descobrimos que a mensagem foi esquecida.[10] Nos distanciamos do seu significado, perdemos a dimensão de sua urgência, relevância propósito e eficácia. Estamos ainda usando o verbo evangelizar, todavia ele já não diz grande coisa, porque as letras “E-V-A-N-G-E-L-H-O”, tem nos dias atuais pouco a ver com o significado bíblico desta palavra. O Evangelho tem sido muitas vezes apenas mais um “slogan cristão”, que as pessoas não conseguem entender o seu significado. A palavra se aplica a qualquer coisa que eu deseje ensinar conforme o meu gosto e projetos pessoais.
S.A. Kierkegaard (1813-1855) conta uma parábola que pode servir como ilustração para o que queremos dizer. Ele conta que um circo se instalou próximo de uma cidadezinha dinamarquesa. Este circo pegou fogo. O proprietário do circo vendo o perigo do fogo se alastrar e atingir a cidade, mandou o palhaço, que já estava vestido a caráter, pedir ajuda naquela cidade a fim de apagar o fogo, falando do perigo iminente. Inútil foi todo o esforço do palhaço para convencer os seus ouvintes. Os aldeões riam e aplaudiam o palhaço entendendo ser esta uma brilhante estratégia para fazê-los participar do espetáculo. Quanto mais o palhaço falava, gritava e chorava, insistindo em seu apelo, mais o povo ria e aplaudia. O fogo se propagou pelo campo seco, atingiu a cidade e esta foi destruída.[11]
De forma semelhante, temos nós muitas vezes apresentado uma mensagem incompreensível aos nossos ouvintes, talvez porque ela também seja incompreensível a nós. As pessoas se acostumaram a nos ouvir brincar tanto com as coisas sagradas, que não conseguem descobrir o sagrado em nossas brincadeiras. Assim, sem nos darmos conta, estamos compactuando com a indiferença de nossos ouvintes, que, de certa forma, estão “cansados” da palavra Evangelho, sem que na realidade, nunca tenham sido ensinados a respeito do Evangelho de Cristo e, pior: nunca o tenham experimentado. Outras vezes a nossa mensagem é compreensível, acessível e agradável, contudo, o seu conteúdo é tão distante do Evangelho bíblico que a sua compreensão e aceitação distanciam ainda mais os seus adeptos da plenitude da revelação bíblica.
O Evangelho é uma mensagem acerca de Deus – da sua Glória e de seus atos salvadores -; acerca do homem – do seu pecado e miséria -; acerca da salvação e da condenação condicionada à submissão ou não a Cristo como Senhor de sua vida.[12] Esta mensagem que envolve uma decisão na história, ultrapassa a história, visto ter valor eterno. Portanto, não podemos brincar com ela, não podemos fazer testes: estamos falando de vida e morte eternas (Jo 3.16-18).[13]
Albert Martin apresenta uma crítica pertinente:
O esforço desnatural de certos pregadores para serem ‘contadores de piadas’, entre a nossa gente, constitui uma tendência que precisa acabar. A transição de um palhaço para um profeta, é uma metamorfose extremamente difícil”.[14]
Paulo anunciou o Evangelho em sua inteireza, com seriedade e responsabilidade, sabendo que o Evangelho é uma mensagem de vida eterna.
Maringá, 26 de fevereiro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Jürgen Moltmann, Teologia da Esperança, São Paulo: Herder, 1971, p. 2.
[2] Carl E. Braaten, Escatologia y Etica, Buenos Aires: La Aurora, [1977], p. 17.
[3]“Se, porém, eu expulso os demônios pelo dedo de Deus, certamente, é chegado o reino de Deus sobre vós” (Lc 11.20).
[4]Orígenes, Comentário de Mateus, 14.7. Apud M. Green, Evangelização na Igreja Primitiva, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 58. Veja-se também: K.L. Schmidt, Basilei/a: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1983 (Reprinted), v. 1, p. 593.
[5] J. Blauw, A Natureza Missionária da Igreja, São Paulo: ASTE., 1966, p. 72.
[6]Anthony A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 59. Ladd diz que “a maior parte da escatologia de Jesus, conforme registrada pelos Sinóticos, tem a ver com os eventos relacionados à vinda do Reino de Deus escatológico” (George E. Ladd, Teologia do Novo Testamento, Rio de Janeiro: JUERP., 1985, p. 184). De semelhante modo, observa Herman Ridderbos, El Pensamiento del Apóstol Pablo, Buenos Aires: La Aurora, 1987, v. 1, p. 39; George E. Ladd, “Reino de Deus, Reino dos Céus”: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 3, p. 1385b; R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 87-90.
[7]Vejam-se: Bruce Milne, Conheça a Verdade, São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, 1987, p. 259; D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Fiel, 1984, p. 348; John R.W. Stott, A Mensagem do Sermão do Monte, 3. ed. São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, 1985, p. 151; A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, p. 63-64; Karl Barth, La Oración, Buenos Aires: La Aurora, 1968, p. 51; George E. Ladd, Reino de Deus: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Grand Rapids, Michigan: T.E.L.L., 1985, p. 448; John R.W. Stott, O Cristão em Uma Sociedade Não Cristã, Niterói, RJ.: VINDE, (1989), p. 43.
[8]“Ninguém chega ao reino de Deus sem se entristecer com o seu próprio pecado” (John MacArthur, O Caminho da Felicidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 71).
[9] Vejam-se: Herman Ridderbos, El Pensamiento del Apóstol Pablo, v. 2, p. 66-67; Gustaf Aulén, A Fé Cristã, São Paulo: ASTE. 1965, p. 214. John R.W. Stott, afirma: “Ser Igreja significa ser a comunidade do Reino, um modelo daquilo que a comunidade humana deve parecer quando submetida ao domínio divino, uma alternativa desafiadora para a sociedade secular” (O Cristão em Uma Sociedade Não Cristã, Niterói, RJ.: VINDE, (1989), p. 43).
[10]Vejam-se as observações pertinentes de Billy Graham, na sua palestra, O Evangelista em um Mundo Agitado. In: J.D. Douglas, ed. O Evangelista e o Mundo Atual, São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 9-10, bem como o comentário de John R.W. Stott, O Perfil do Pregador, São Paulo: Sepal, 1989, p. 145-149.
[11] Esta parábola é contada e aplicada nas obras de Harvey Cox (1929- ) (A Cidade do Homem, 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971, p. 270) e J. Ratzinger (Introdução ao Cristianismo, São Paulo: Herder, 1970, p. 7-8). Todavia a aplicação que ambos fazem é divergente entre si. E a que faço é diferente da de ambos.
[12]Veja-se: J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 41-51.
[13]“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus” (Jo 3.16-18).
[14] Albert N. Martin, O Que há de Errado com a Pregação de Hoje?, São Paulo: Fiel, (s.d.), p. 23. Mais recentemente escreveu Lawson: “Esse tipo de pregação nominal satisfaz aos ouvintes por substituir a exposição bíblica por entretenimento. Substitui a teologia por teatro. Oferece avaliações saudáveis no lugar da sã doutrina. Nesta mudança infeliz, o drama da redenção dá lugar a simples apresentações teatrais. Essa pregação desprezível tem transformado muitos púlpitos em um palco de fim de semana para atores que se mascaram de pregadores” (Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 37).