A Pessoa e Obra do Espírito Santo (420)
H) Igreja como instituição, propriedade e governo divino
7De Mileto, mandou a Éfeso chamar os presbíteros da igreja. (…) 28 Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue. (…) 32Agora, pois, encomendo-vos ao Senhor e à palavra da sua graça, que tem poder para vos edificar e dar herança entre todos os que são santificados” (At 20.17,28,32).
A igreja é de Deus. Foi Ele quem a formou, a preserva, vocaciona seus servos para servirem na igreja e fornece o que é necessário para o desempenho de suas funções.[1]
I) Dimensão pastoral-apologética
“29 Eu sei que, depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos vorazes, que não pouparão o rebanho. 30 E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens falando coisas pervertidas para arrastar os discípulos atrás deles. 31 Portanto, vigiai, lembrando-vos de que, por três anos, noite e dia, não cessei de admoestar, com lágrimas, a cada um” (At 20.29-31).
Paulo, dentro de sua esfera de poder e limites, equipou os oficiais para cuidarem da igreja os alertando perseverantemente quanto à necessidade de pastorearem e defenderem o rebanho contra as investidas dos hereges que tentariam corromper a igreja.
Um perigo que poderia parecer inexistente, é o surgimento de lobos vorazes que estariam disfarçados de pastores. Contudo, Paulo não estava “imaginando coisas”. Ele sabia dos perigos iminentes. Os pastores deveriam estar preparados para isso. Eles precisariam nutrir sistemática e continuamente suas ovelhas com o ensino consistente da Palavra. Quando estamos firmados na Palavra é mais difícil sermos conduzidos de forma enganosa por todo vento de doutrinas estranhas.
Basicamente o pastor tem que alimentar o seu rebanho e defendê-lo dos lobos ferozes. O pastor deve estar comprometido com a segurança de seu rebanho. O rebanho, por sua vez, necessita da direção e cuidado de seu pastor [2]
Aqui temos o binômio pastoral-apologética que, é importante que se diga, se imbrica no âmbito do trabalho do ministro do Evangelho.[3]
Calvino é preciso em sua constatação:
O pastor necessita de duas vozes: uma para ajuntar as ovelhas, e outra para espantar os lobos ladrões. A Escritura o mune com os meios de fazer ambas as coisas, e aquele que tem sido corretamente instruído nela será capaz tanto de governar os que são suscetíveis ao aprendizado quanto a refutar os inimigos da verdade. […] O bispo é realmente sábio quando retém a fé genuína; e faz um correto uso de seu conhecimento quando o aplica à edificação do povo.[4]
A pregação, como a exposição do texto bíblico à luz dos ensinamentos das Escrituras, aplicando-a às necessidades de seus ouvintes, deveria caminhar de mãos dadas com a apologética. Como diz Schaeffer (1912-1984): “O lado positivo da apologética é a comunicação do evangelho à geração presente de modo que possam entender”.[5]
O propósito da pregação cristã não pode ser simplesmente debater por debater, ou vencer o seu adversário.[6] Talvez haja aqui algo sutilmente ardiloso e diabólico.[7] Toda pregação visa conduzir o homem em adoração a Cristo, o Deus-Encarnado. Sabemos de nossas limitações aqui. Podemos e devemos pregar a Palavra em sua inteireza, com fidelidade, sinceridade e real interesse. Contudo, como temos enfatizado, a conversão é obra do Espírito de Deus. Faremos bem em nos ater à nossa esfera confiada por graça a nós (1Co 9.16; Ef 3.8).
Calvino, com a lucidez que lhe é própria, já nos advertiu em mais de um lugar:
Gostaria que isso fosse levado em conta por aqueles que estão sempre com a língua bem afiada, procurando polemizar em cada questão e sofismar em torno de uma única palavra ou sílaba. Mas eles são impulsionados pela ambição, a qual, como sei de experiência pessoal com alguns deles, às vezes é uma doença quase fatal. O que o apóstolo diz acerca da subversão daqueles que ouvem é plenamente comprovado pela observação diária. É natural que em meio às contendas percamos nossa apreensão da verdade, e Satanás faz mal uso das controvérsias como pretexto para subverter e destruir nossa fé.[8]
A ambição é sempre contenciosa e nos conduz às polêmicas, de modo que aqueles que desejam aparecer estão sempre prontos a desembainhar a espada a pretexto de qualquer tema.[9]
O orgulho ou autoglorificação é a causa e ponto de partida de todas as controvérsias, quando cada um, reivindicando para si além de sua capacidade, está ávido em ter outros sob seu poder.[10]
Olhando por outro prisma, Calvino como pastor que era, revela aspectos de sua sensibilidade ministerial: “um bom pastor deve estar sempre alerta para que seu silêncio não propicie a invasão de doutrinas ímpias e danosas, e ainda propicie aos perversos uma irrefreada oportunidade de difundi-las”.[11]
Portanto, devemos nos preparar para apresentar, quando necessário, uma defesa de nossa fé. Devemos saber em quem, e por que cremos. A Palavra de Deus é o fundamento de nossa fé e da apresentação do Evangelho. A instrução de Paulo é fundamental: “Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Ef 6.17).
Não podemos ir para guerra desarmados, ou com armas inadequadas resultantes de nossa autossuficiência ou, da ignorância de quem são nossos adversários, e qual o propósito dessa luta. Portanto, “quando a apologética é biblicamente aplicada, o evangelismo é fortalecido”.[12]
Não podemos defender a causa de Deus sem nos valermos do ensino, correção e disciplina, tendo sempre diante de nós, o propósito de Deus. A apologética contempla também em seus objetivos conduzir o homem, em sua agonia e desespero resultantes de seu afastamento de Deus, à reconciliação com o seu Senhor por meio de Jesus Cristo. Isso ocorre somente pela graça de Deus (2Co 5.18-6.3). Sem a graça todo o nosso labor será em vão. O nosso trabalho não se opõe à oração nem esta exclui aquele.[13]
Schaeffer (1912-1984) é enfático:
A apologética, como eu encaro, não deve ser de forma alguma separada da evangelização. De fato, eu me pergunto se a ‘apologética’ que não leva as pessoas até Cristo como salvador, e depois para o viver sob o senhorio de Cristo, na verdade pode ser considerada apologética cristã.[14]
Antes de qualquer coisa, é importante lembrar que não podemos separar a verdadeira apologética da obra do Espírito Santo, tampouco de um relacionamento vivo com o Senhor, em oração, da parte do cristão. É preciso entender, afinal de contas, que a nossa batalha não é só contra carne e sangue.[15]
A apologética além de defesa da fé, tem também um sentido de proclamação, de testemunho de sua fé e esperança. Paulo, na prisão, diz aos filipenses: “Vos trago no coração, seja nas minhas algemas, seja na defesa (a)pologi/a)[16] e confirmação (bebai/wsij)[17] do evangelho” (Fp 1.7/Fp 1.16).
Pedro escreve aos irmãos das igrejas da Dispersão dizendo que eles deveriam estar “sempre preparados (e)/toimoj)[18] para responder (a)pologi/a) a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós” (1Pe 3.15).
A pregação, portanto, será sempre apologética, como nos instrui Frame:
Apologética e pregação não são duas coisas diferentes. Ambas são tentativas para alcançar os descrentes para Cristo. Pregação é apologética porque objetiva a persuasão. A apologética é pregação porque apresenta o evangelho para a conversão e a santificação. Entretanto, as duas atividades têm diferentes perspectivas ou ênfases. A apologética enfatiza o aspecto da persuasão racional, enquanto a pregação enfatiza a busca de mudanças piedosas na vida das pessoas.[19]
Paulo no final de sua vida não deu um salto no escuro, antes, declarou a sua inabalável confiança no Deus que conhecia, e pelo qual dedicou a sua vida:
Porque sei em quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele Dia (2Tm 1.12).
6 Quanto a mim, estou sendo já oferecido por libação, e o tempo da minha partida é chegado. 7 Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé. 8 Já agora a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda (2Tm 4.6-8).
Paulo não fala de hipóteses ou teorias, afirma, sim, a sua firme certeza na verdade de Deus.
Como nos lembra Edgar, “conhecer a Deus pela fé, portanto, é o alvo da apologética”.[20] E esse genuíno conhecimento que confere sentido à nossa vida e ministério.
Maringá, 26 de fevereiro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Tratamos mais detalhadamente sobre isso no tópico 8.5.1.
[2] Veja-se: Cornelis Van Dam, O Presbítero, São Paulo: Cultura Cristã, 2019, p. 32-36.
[3]“Ainda que a apologética e o evangelismo sejam conceitos diferentes, não podem existir isolados um do outro. (…) Somos chamados a ser apologistas e evangelistas. Confrontar o erro é proclamar a verdade e vice-versa” (Nathan Busenitz, A Palavra da Verdade em um mundo de erro: Fundamentos da apologética Cristã: In: John MacArthur, et. al. Evangelismo: compartilhando o Evangelho com fidelidade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2012, p. 66,67).
[4]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998,(Tt 1.9), p. 314.
[5]F.A. Schaeffer, O Deus que intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 213.
[6] Veja-se: F.F. Bruce, La defesa apostólica del Evangelio, 2. ed. Buenos Aires: Ediciones Certeza, 1977, p. 8-9.
[7]Calvino adverte os pastores quanto a isso: “Essa é a trama de Satanás, ou seja: que, mediante perversa loquacidade de tais homens, ele enreda os bons e fiéis pastores com o fim de distraí-los de sua preocupação pela doutrina. Daí a necessidade de nos precavermos e não permitirmos qualquer envolvimento em argumentos polêmicos; porque, do contrário, jamais nos veremos livres para direcionar nosso labor em prol do rebanho do Senhor, nem os homens amantes de polêmicas nos deixarão de perturbar” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998,(Tt 3.10), p. 357). No século XX, Lloyd-Jones também nos advertiu: “Fazer polêmica pela polêmica é sempre obra do diabo” (D.M. Lloyd-Jones, Santificados Mediante a Verdade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (Certeza Espiritual, v. 3), 2006, p. 55). “O mantra de ‘defender a fé’ pode ser usado facilmente como uma capa para a mentalidade que gosta de batalhas e tem prazer numa luta” (A.T.B. McGowan, Uma teologia evangélica reformada e missional para o século 21. In: Samuel T. Logan Jr., Org. Reformado quer dizer missional, São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 244).
[8]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998,(2Tm 2.14), p. 233.
[9]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998,(1Tm 6.20), p. 186.
[10]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.6), p. 133.
[11] João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998,(Tt 1.11), p. 316.
[12]Nathan Busenitz, A Palavra da Verdade em um mundo de erro: Fundamentos da apologética Cristã: In: John MacArthur, et. al. Evangelismo: compartilhando o Evangelho com fidelidade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2012, p. 63.
[13] Veja-se: F.A. Schaeffer, O Deus que intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 259. “O melhor método apologético tem pouco valor a não ser que atinja em cheio o coração da pessoa. (…) O método apologético sadio e efetivo começa e termina com a adoração a Deus” (William Edgar, Razões do Coração: reconquistando a persuasão cristã, Brasília, DF.: Refúgio, 2000, p. 69).
[14] F.A. Schaeffer, O Deus que intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 261. “Definida de modo amplo, a apologética sempre tem sido uma parte da evangelização” (A.J. Hoover, Apologética: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 99).
[15] F.A. Schaeffer, O Deus que intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 214. Veja-se também: William L. Graig, Fé, Razão e a Necessidade da Apologética: In: Francis J. Beckwith, et. al. eds. Ensaios Apologéticos, São Paulo: Hagnos, 2006, p. 21ss. Da mesma forma afirma Edgar: “Quando fazemos apologia estamos travando uma batalha espiritual” (William Edgar, Razões do Coração: reconquistando a persuasão cristã, Brasília, DF.: Refúgio, 2000, p. 39).
[16]*At 22.1; 25.16; 1Co 9.3; 2Co 7.11; Fp 1.7,16; 2Tm 4.16; 1Pe.3.15. O verbo a)pologe/omai é empregado da mesma forma, sendo utilizado somente por Lucas e Paulo (* Lc 12.11; 21.14; At 19.33; 24.10; 25.8; 26.1,2,24; Rm 2.15; 2Co 12.19. As palavras tinham um emprego jurídico (2Tm 4.16). É célebre a passagem na qual Sócrates (469-399 a.C.), alega não ter apresentado uma apologia (a)pologi/a) em sua defesa diante dos juízes porque o seu demônio se opôs (Veja-se: Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural, 1972, (Os Pensadores, v. 2), IV.8.5, p. 163). Compare a declaração de Sócrates com outra que faz a respeito da influência do demônio em sua vida (Platão, Defesa de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural, 1972, (Os Pensadores, v. 2), 31 c-d, p. 22).
[17]A ideia da palavra é de solidez, indicando um firme fundamento. Ela tem o sentido aqui de apresentar as evidências confirmadoras do Evangelho. Bebai/wsij (*Fp 1.7; Hb 6.16). Ver também: Be/baioj (*Rm 4.16; 2Co 1.7; Hb 2.2; 3.6,14; 6.19; 9.17; 2Pe 1.10,19) e Bebaio/w (*Mc 16.20; Rm 15.8; 1Co 1.6,8; 2Co 1.21; Cl 2.7; Hb 2.3; 13.9).
[18]Tendo o sentido de pronto, apercebido, atento. A igreja deve estar pronta, preparada para toda boa obra (Tt 3.1). A nossa salvação está pronta, preparada para manifestar-se no último dia (1Pe 1.5).
[19]John Frame, Apologética para a Glória de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 21-22.
[20]William Edgar, Razões do Coração: reconquistando a persuasão cristã, Brasília, DF.: Refúgio, 2000, p. 131.