A Pessoa e Obra do Espírito Santo (390)
6.4.9.2. Confere dons à igreja (Continuação)
O Espírito é soberano na distribuição dos dons. Eles não podem ser reivindicados (1Co 12.11,18), antes, devem ser recebidos como manifestação da graça de Deus e utilizados para a glória de Deus e o serviço da Igreja.[1] Desta forma, estamos cumprindo o nosso papel conforme o Senhor nos chamou e capacitou a desempenhá-lo em sua Igreja em determinadas circunstâncias, por maior ou menor tempo, conforme a designação do Senhor dentro de seu propósito santo.
A Igreja é a comunidade formada pelo próprio Deus, sendo constituída por pessoas que tiveram e têm, pela graça de Deus, a fé salvadora depositada unicamente em Jesus Cristo.
“No Novo Testamento, ninguém vinha à Igreja simplesmente para ser salvo e feliz, mas para ter o privilégio de servir ao Senhor. Portanto. E nós deveríamos ter diante de nós, o benefício que recebemos de servir e trabalhar na Igreja”, acentua Karl Barth (1886-1968).[2]
De fato, todos os crentes recebem do Senhor talentos para servir nessa igreja. Por sua vez, os dons recebidos têm muito a ver com as habilidades com as quais nascemos, mas que na realidade, foram dadas também por Deus (graça comum). Os nossos dons não são motivo de vanglória, antes de responsabilidade diante de Deus e da Igreja de Cristo.[3]
O que quero enfatizar, é que a raiz da palavra graça, é a mesma da palavra dom, no grego xa/rij, daí podermos falar da Igreja, como uma comunidade carismática, visto ser ela constituída daqueles que receberam a graça da fé e o dom para servir.
No capítulo 4 da Epístola aos Efésios, Paulo trata de modo especial da unidade da Igreja dentro da variedade de funções. Assim, está implícita a figura tão cara ao apóstolo, a da Igreja como Corpo de Cristo, mostrando que o segredo do bom funcionamento do corpo é a utilização de todas as suas partes de forma harmoniosa.
Organicamente, cada membro, por mais insignificante que nos possa parecer, tem um papel importante a desempenhar dentro do equilíbrio do todo. Certamente, existem diferenças de beleza e elegância entre nossos órgãos, todavia, todos são essenciais.
Do mesmo modo, na Igreja de Cristo, ainda que haja diferenças entre nós, e, por vezes, não sejamos considerados pelos homens como dignos de algum valor, o fato é que todos somos essenciais no serviço do Reino: Devemos frisar no entanto, que não somos ontologicamente essenciais; antes, Deus, por graça nos tornou essenciais no seu Reino e, por isso, agora o somos. É Deus mesmo quem supre a Igreja. O poder não estar nela mesma, mas no Senhor e Rei que lhe concede dons para atender às suas necessidades.[4]
Assim, é Deus mesmo e não outro, Quem nos concede talentos para servi-lo (Ef 4.7,11/1Co 12.11,18). Portanto a nossa atitude de consciente e real humildade (1Co 4.7; 1Co 15.10), visto que Deus nos concedeu os talentos para o serviço do Reino: “A manifestação do Espírito é concedida a cada um, visando a um fim proveitoso” (1Co 12.7).
Paulo continua: “Para que não haja divisão no corpo; pelo contrário, cooperem os membros, com igual cuidado (merimna/w = “preocupação”),[5] em favor uns dos outros” (1Co 12.25).
Calvino orienta-nos pastoralmente:
O Senhor nos colocou juntos na Igreja, e destinou cada um ao seu posto, de tal maneira que, sob a única Cabeça, venhamos a nos auxiliar uns aos outros. Lembremo-nos também de que tão diferentes dons nos têm sido concedidos para podermos servir ao Senhor, humilde e despretensiosamente, e aplicar-nos ao avanço da glória daquele que nos tem dado tudo quanto temos.[6]
Deste modo, os dons recebidos, foram-nos concedidos para que os usássemos para a edificação da Igreja, não para a disseminação de discórdias, ou para usar de nossa influência para dividir, denegrir, solapar ou mesmo para a nossa projeção pessoal: Deus não desperdiça os dons “por nada e nem os destina para que sirvam de espetáculo”.[7]
O objetivo é claro: “Com vistas ao aperfeiçoamento (katartismo/j[8] = “preparar”, “equipar para o serviço”) dos santos” (Ef 4.12).
Ainda que de passagem, deve ser acentuado que,“sempre que os homens são chamados por Deus, os dons são necessariamente conectados com os ofícios. Pois Deus não veste homens com máscara ao designá-los apóstolos ou pastores, e, sim, os supre com dons, sem os quais não têm eles como desincumbir-se adequadamente de seu ofício”, comenta Calvino.[9] Estou plenamente convencido desta realidade na vida cristã. Deus nos capacita no cumprimento de nossos deveres de obediência.
Observemos que estes ofícios (Ef 4.11), foram instituídos para o aperfeiçoamento dos santos a fim de que estes cumpram o seu serviço na Igreja; ou seja: o trabalho não é apenas pastoral ou dos Presbíteros Regentes e Diáconos, é também e fundamentalmente comunitário. Toda a Igreja é responsável: Lutero falou do Sacerdócio Universal dos Crentes; pois bem, este texto nos fala do ministério universal dos crentes.
Maringá, 26 de janeiro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Veja-se: Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 207-208.
[2] Karl Barth, The Faith of the Church: A commentary on the Apostle’s Creed according to Calvin’s Catechism,Great Britain: Fontana Books, 1960, p. 116.
[3] Veja-se: João Calvino, Efésios, (Ef 4.7), p. 113.
[4] Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 210.
[5]A palavra tem o sentido de solicitude, preocupação e inquietação. Ela ocorre 18 vezes no NT. O seu uso no Novo Testamento não tem um sentido apenas negativo; Paulo a emprega positivamente como, por exemplo, no texto citado (1Co 12.25). Do mesmo modo, quando se refere a Timóteo: “Porque a ninguém tenho de igual sentimento, que sinceramente cuide (Merimnh/sei) dos vossos interesses” (Fp 2.20) e, também quando descreve as suas lutas em favor da Igreja: “Além das cousas exteriores, há o que pesa sobre mim diariamente, a preocupação (Me/rimna) com todas as Igrejas” (2Co 11.28).
O termo também é usado negativamente: Jesus, o emprega duas vezes neste sentido: “Não andeis ansiosos (merimna=te)pela vossa vida…”(Mt 6.25). A Marta, inquieta com os seus afazeres e diante da aparente inércia de Maria, diz: “Marta! Marta! andas inquieta (Merima=j) e te preocupas com muitas coisas” (Lc 10.41).
Paulo, também trata dessa questão, dizendo aos filipenses: “Não andeis ansiosos (Merimna/w) de cousa alguma….”(Fp 4.6). No entanto, esta exortação pode parecer inócua sem a indicação de um caminho eficaz para a canalização de nossas ansiedades existentes… Paulo então, propõe a solução para o problema: “… Em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graça” (Fp 4.6). A oração oferece-nos um abrigo onde podemos nos ocultar das preocupações mundanas, um lugar onde ficamos a sós com Deus, um refúgio onde renovamos a esperança, onde nossos cuidados com as coisas deste século ficam amortecidas. A oração é o caminho pelo qual iniciamos a caminhada indicada por Pedro; é o meio fornecido por Deus para que possamos combater a ansiedade:“Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade (Me/rimnan), porque Ele tem cuidado de vós” (1Pe 5.7). (Ver: John MacArthur Jr., Abaixo a Ansiedade,São Paulo: Cultura Cristã, 2001, especialmente, p. 27-38).
Quando assim procedemos, experimentamos o resultado indicado por Paulo no texto de Filipenses: “E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e as vossas mentes em Cristo Jesus” (Fp 4.7). A paz é de Deus porque dele procede e, também, porque o modelo da paz temos em Deus, Aquele que não vive em ansiedade. (Veja-se: F.F. Bruce, Filipenses,Florida: Editora Vida, 1992, (Fp 4.7), p. 154).
Comentando o Salmo primeiro, Calvino ressalta: “Era um sinal de inusitada fé quando, golpeado por tão grande consternação, se aventura a fazer francamente sua queixa a Deus e, por assim dizer, derramar sua alma no seio divino. E certamente que este é o único remédio que pode aplacar nossos temores, a saber, lançar sobre ele todas as preocupações que nos atribulam….” (João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999,(Sl 1.1-2), v. 1, p. 80).
[6] João Calvino,Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.7), p. 134.
[7] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 12.7), p. 376.
[8]A ideia da palavra é de preparar de forma adequada e própria (espiritual, intelectual e moral) para a execução de determinada tarefa. O seu sentido é mais funcional do que qualitativo (Cf. R. Schippers, R. Retidão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 4, p. 215). O verbo katarti/zw tem um amplo sentido de restauração: consertar as redes (Mt 4.21; Mc 1.19); boa instrução (Lc 6.40); perfeita união (1Co 1.10); aperfeiçoar/equipar (2Co 13.11; Hb 13.21; 1Pe 5.10; 2Co 13.9 (kata/rtisij); correção (Gl 6.1); reparo (1Ts 3.10), formar (Hb 10.5; 11.3). O termo grego utilizado por Paulo, no campo cirúrgico, era usado para “consertar um osso quebrado”. “Ajustar em conjunto num só corpo” (David M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 172). “A ideia fundamental do termo é de pôr nas condições em que devem estar já uma coisa ou uma pessoa” (William Barclay, Efésios,Buenos Aires: La Aurora, 1973, p.156). Calvino diz que o termo grego “significa literalmente a mútua adaptação (= coaptitionem) de coisas que devem ter simetria e proporção; assim como, no corpo humano, há uma combinação apropriada e regular dos membros; de modo que o termo é também usado para ‘perfeição’. Mas como a intenção de Paulo aqui é expressar um arranjo simétrico e metódico, prefiro o termo constituição (= constitutio). Pois, estritamente falando, o latim indica uma comunidade, ou reino, ou província, como constituída, quando a confusão dá lugar ao estado regular e legítimo” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998,(Ef 4.12), p. 124).
[9] João Calvino, Efésios, (Ef 4.11), p. 119.