A Pessoa e Obra do Espírito Santo (352)
6.4.8.3.4. Unidade não existe em detrimento da verdade (Continuação)
Calvino (1509-1564) sustenta que a divergência em questões secundárias não deve servir de pretexto para a divisão da Igreja, além do mais, todos, sem exceção estão envoltos de “alguma nuvenzinha de ignorância”.
São palavras do Apóstolo: “Todos quantos somos perfeitos sintamos o mesmo; se algo entendeis de maneira diferente, também isto vos haverá de revelar o Senhor” [Fp 3.15]. Não está ele, porventura, a suficientemente indicar que o dissentimento acerca destas cousas não assim necessárias não deve ser matéria de separação entre cristãos? Por certo que estará em primeira plana que em todas as cousas estejamos em acordo; mas, uma vez que ninguém há que não esteja envolto de alguma nuvenzinha de ignorância, impõe-se que ou nenhuma igreja deixemos, ou perdoemos o engano nessas cousas que possam ser ignoradas não somente inviolada a suma da religião, mas também aquém da perda da salvação.
Mas, aqui, não quereria eu patrocinar a erros, sequer os mais diminutos, de sorte que julgue devam ser fomentados, com agir com complacência e ser-lhes conivente.[1] Digo, porém, que não devemos por causa de quaisquer dissentimentozinhos abandonar irrefletidamente a Igreja, em que somente se retenha salva e ilibada essa doutrina, mercê da qual se mantém firme a incolumidade da piedade e conservado é o uso dos sacramentos instituído pelo Senhor.[2]
Não vejo, porém, nenhuma razão por que uma igreja, por mais universalmente corrompida, desde que contenha uns poucos membros santos, não deva ser denominada, em honra desse remanescente, de santo povo de Deus.[3]
Contanto que a religião continue pura quanto à doutrina e ao culto, não devemos deixar-nos abalar em demasia ante os erros e pecados que os homens cometem, como se com isso a unidade da Igreja fosse dilacerada. Entretanto, a experiência de todas as épocas nos ensina quão perigosa esta tentação se torna quando vemos a Igreja de Deus, que deve prosseguir isenta de toda e qualquer mancha poluente e resplandecer em incorruptível pureza, nutrindo em seu seio um grande número de hipócritas ímpios ou pessoas perversas. (…) Mas Cristo, em Mateus 25.32, com justa razão alega ser seu, com toda propriedade, o ofício peculiar de separar as ovelhas dos cabritos; e por isso nos admoesta que devemos suportar os maus, e que não está em nosso poder corrigi-los, até que as coisas se tornem amadurecidas e chegue o tempo próprio de purificar a Igreja. Ao mesmo tempo, os fiéis são aqui intimados, cada um em sua própria esfera, a empregar todos os seus esforços para que a Igreja de Deus seja purificada das corrupções que nela ainda persistem.
(…) O sagrado celeiro de Deus não estará perfeitamente purificado antes do último dia, quando Cristo, em sua vinda, lançará fora a palha. Mas Ele já começou a fazer isso através da doutrina do seu Evangelho, que chama crivo de joeirar. Não devemos, pois, de forma alguma ser indiferentes acerca desse assunto; ao contrário, devemos antes mostrar-nos absolutamente sérios, para que todos nós que professamos ser cristãos possamos levar uma vida santa e imaculada. Acima de tudo, porém, o que Deus aqui declara com respeito a toda injustiça deve ficar indelevelmente impresso em nossa memória; ou seja, que Ele os proíbe de entrar em seu santuário, e condena sua ímpia presunção em irreverentemente intrometer-se na sociedade dos santos.[4]
Todavia, ainda quando a Igreja seja remissa em seu dever, não por isso será direito de cada um em particular a si pessoalmente assumir a decisão de separar-se.[5]
Calvino entende que Satanás muitas vezes se vale de nossos bons sentimentos para fazer com que quebremos a unidade da Igreja, supostamente, em busca de uma Igreja ideal. Para este mister, somos capazes até de reunir textos que falam da santidade da Igreja como pretexto para a nossa atitude.[6]
Por isso, devemos atuar com integridade e humildade dentro da igreja local, orando por ela, comprometidos com a preservação da paz, conduzindo-nos em submissão, buscando sempre a orientação de Deus em nosso realizar, entendendo o quão Deus ama a sua igreja e o seu propósito santo para ela.[7]
Por isso, devemos levar em consideração a observação de Piper e Carson: “Separar-se de uma igreja local com um senso de autossuficiência é, a longo prazo, suicídio”.[8]
Maringá, 26 de novembro de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] “Paulo, pois, nos ensina (Ef 5.11) que, quando não reprovamos os maus, essa é uma espécie de comunhão com as obras infrutíferas das trevas. É certamente um modo de agir muito perverso quando certas pessoas, buscando alcançar o favor humano, indiretamente desdenham de Deus; e todos são coniventes em fazer com que seus negócios sejam do agrado dos perversos. Davi, contudo, sente deferência, não tanto pela pessoa do perverso, mas pelas suas obras. O homem que vê o perverso sendo honrado, e pelos aplausos do mundo se torna ainda mais obstinado em sua perversidade, e que de bom grado dá seu consentimento ou aprovação, com isso não estará enaltecendo o vício, em vez da autoridade, e o envolvendo de soberano poder?” (João Calvino,O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 1999, v. 1, (Sl 15.1), p. 293).
[2] João Calvino, As Institutas,IV.1.12. Em outro lugar: “Onde se professava o Cristianismo, se adorava um único Deus, se praticavam os Sacramentos e se exercia algum gênero de ministério, ali permaneciam as marcas da Igreja. Nem sempre encontramos nas igrejas tal pureza como era de se desejar. Ainda a mais pura tem suas máculas, e algumas têm não só umas poucas manchas aqui e ali, mas são quase que completamente deformadas. Não devemos ficar tão desconcertados pelo ensino e vida de alguma sociedade que, se não ficamos satisfeitos com tudo o que se procede ali, então prontamente negamos ser ela uma igreja” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 1.2), p. 25).
[3] João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 50.4), p. 401.
[4] João Calvino,O Livro dos Salmos,v. 1, (Sl 15.1), p. 287-289.
[5] J. Calvino, As Institutas,IV.1.15. Em outro lugar Calvino diz: “Deus só é corretamente servido quando sua lei for obedecida. Não se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistema de religião ao sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de piedade deve ser tomado da Palavra de Deus” (João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 1, (Sl 1.1), p. 53).
[6]Cf. John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996, (Reprinted), v. 15, (Ag 2.1-5), p. 351.
[7] “Os crentes devem se identificar com a igreja e se tornar parte da igreja, dedicando suas orações e esforços à promoção do bem-estar da igreja em todos os aspectos, pois a igreja está no centro dos propósitos de Deus” (Joel R. Beeke; Mark Jones, orgs. Teologia Puritana: Doutrina para a vida, São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 1202).
[8]John Piper; D.A Carson, O Pastor Mestre e O Mestre Pastor, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 42.