A Pessoa e Obra do Espírito Santo (349)
6.4.8.3.4. Unidade não existe em detrimento da verdade
Seja em virtude da ignorância das Escrituras, seja em virtude de uma distorção das Escrituras para que estas se adaptem aos nossos desejos, perdemos nossas convicções antitéticas acerca do mundo ímpio ao nosso redor. – Joel Beeke; Mark Jones.[1]
A tolerância se tornou a virtude suprema na nossa cultura, de tal forma que a única coisa que não pode ser tolerada é a intolerância (e esqueça o fato de isso ser autorrefutável). – Garrett J. DeWeese; J.P. Moreland.[2]
Um irênico pronunciamento repetido com frequência, especialmente quando há divergências teológicas e denominacionais, é aquele atribuído ao teólogo e educador luterano Petrus Meuderlin (1582-1651), que lidou com a questão do Pietismo[3] dentro do Luteranismo alemão (c. 1627): “Em essenciais unidade; em não-essenciais, liberdade; em todas as coisas, amor”.[4]
Pessoalmente, sempre tive dificuldade com esta frase – ainda que reconheça o seu valor restrito –, por desejar saber quem estabelece o “essencial”. Sim, porque a partir da minha definição, onde delimito o que sustento, tudo o mais passa a ser “não-essencial”. Afinal, a ortodoxia é a minha posição. As demais posições são heterodoxas.[5]
No ambiente teológico, quando não se consegue demonizar o outro por suas posições teológicas, ergo-me como baluarte da verdade e torno o outro alguém que “não soma”, “não agrega”. Sem dúvida, tudo isso para a glória de Deus e o bem da igreja.[6]
Maringá, 15 de novembro de 2021
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Joel Beeke; Mark Jones, Teologia Puritana: Doutrina para a vida, São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 1196.
[2] Garrett J. DeWeese; J.P. Moreland, Filosofia Concisa: uma introdução aos principais temas filosóficos, São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 86.
[3] Sobre o Pietismo, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
[4] Ao que parece, Richard Baxter (1615-1691) foi quem popularizou a frase. Compare as informações em: Philip Schaff,History of the Christian Church,Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 7, § 108, p. 650-653; John R.W. Stott, A Verdade do Evangelho: Um apelo à Unidade, Curitiba, PR.; São Paulo: Encontro; ABU Editora, 2000, p. 133-134; Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 21.
[5]“Ortodoxia” é uma transliteração da palavra grega, o)rqodoci/a, que é composta por duas outras: o)rqo/j, “certo”, “direito” (At 14.10; Hb 12.13) e do/ca, “opinião”, “doutrina”. o)rqodoci/a não aparece nas Escrituras – nem nos escritos seculares ou cristãos até o segundo século. Encontramos apenas o verbo “o)rqodo/cein” em Aristóteles (384-322 a.C.), com o sentido de “reta opinião”. (Aristóteles, Ética a Nicômaco, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, VII.8. 1151a19. p. 368). Platão (427-347 a.C.) nos fala do “reto juízo” (= “mente reta”) (nou=j o)rqo/j). (Fedro, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 3), 1972, 73a. p. 82). Eusébio de Cesaréia, c. 325 AD., usou a palavra “ortodoxia” com alguma frequência, referindo-se a Irineu, Clemente e Orígenes, como aqueles que representavam a “ortodoxia da Igreja” (Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, III.23.2/VI.2.14; VI.36.4; Eusébio também fala da “verdadeira ortodoxia” (HE., III.25.7); “ortodoxia apostólica” (Historia Eclesiastica,III.31.6; 38.5); “ortodoxia da santa fé” (HE., IV.21/V.22); “ortodoxia eclesiástica” (HE., VI.18.1); “autores ortodoxos” (HE., V.27).
No entanto, o sentido nos é dado no Novo Testamento. Paulo escreve: “Quando, porém, vi que não procediam corretamente (o)rqopode/w) segundo a verdade do Evangelho” (Gl 2.14). O Novo Testamento oferece-nos outros textos que insistem no ensino do verdadeiro Evangelho, conforme o estabelecido por Deus em Sua Palavra. (Vejam-se: Rm 16.17;1Co 15.1-11; 2Co 11.2; Gl 1.6-9; 2Tm 2.15; 4.3-4).
Este sentido opõe-se à “heterodoxia”, assim descrita por Paulo: “Quando eu estava de viagem, rumo da Macedônia, te roguei permanecesses ainda em Éfeso para admoestares a certas pessoas a fim de que não ensinem outra doutrina (e(terodidaskale/w)” (1Tm 1.3). “Se alguém ensina outra doutrina (e(terodidaskale/w) e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, e com o ensino segundo a piedade” (1Tm 6.3).
Até onde se sabe, foi Inácio, bispo de Antioquia o primeiro escritor cristão a usar a expressão “heterodoxia” para se referir aos falsos ensinamentos (c. 110 AD). Na Carta aos Magnésios, VIII.1, diz: “Não vos deixeis iludir pelas doutrinas heterodoxas, nem pelos velhos mitos sem utilidade” (In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, 3. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1984, p. 53). Na Carta aos Esmirnenses, VI.2, escreve: “Considerai bem como se opõem ao pensamento de Deus os que se prendem a doutrinas heterodoxas a respeito da graça de Jesus Cristo, vinda a nós” (In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, p. 80. Mais tarde, c. 325, Eusébio de Cesaréia usaria a expressão aludindo aos ensinamentos de Paulo de Samosata (Veja-se: Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiastica,VII.28.2; 29.1; 30.1) e àqueles que se desviaram das Escrituras para ensinos “heterodoxos” (Historia Eclesiastica,VI.12.2). O bispo de Roma Vitor tentando disciplinar as Igrejas da Ásia, alegou que elas eram heterodoxas (Historia Eclesiastica,V.24.9).
A palavra “ortodoxia” parece ter ganho força no sentido eclesiástico, a partir do quarto século, com a elaboração dos “cânones de fé” (Sínodo de Nicéia (325); Constantinopla (381); Calcedônia (451)) e com o reconhecimento do Cânon Bíblico (3º Sínodo de Cartago (397), (Veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2008), quando a Igreja decidia as questões pertinentes à fé conforme os padrões adotados; deste modo, o que se harmonizasse com este padrão era considerado “ortodoxo”, o que era contrário, era “heterodoxo”. Posteriormente, a Igreja Oriental se declarou “Santa Ortodoxa Apostólica”.
A “Ortodoxia”, enquanto sistema de pensamento, seja em que campo for, se baseia nos seguintes pressupostos:
1) O homem pode conhecer a verdade.
2) A verdade é conhecida.
3) O que aquela comunidade ou grupo professa, corresponde à verdade.
Deste modo, ainda que a posição ortodoxa não se considere necessariamente proprietária exclusiva da verdade, crê professá-la em seu sistema; daí a observação abrangente do historiador Trevor-Roper (1914-2003), de que “uma das grandes vantagens da ortodoxia é o ímpeto que imprime à difusão do conhecimento” (Hugh Trevor-Roper, A Formação da Europa Cristã, Lisboa: Editorial Verbo, (s.d.), p. 143).
O termo “Ortodoxia”, normalmente é empregado pelos protestantes para se referir ao sumário das doutrinas defendidas pelos Reformadores e em geral aceitas pelas Igrejas da Reforma. Nesse caso, ser ortodoxo, significa estar de acordo com os princípios da Reforma. Todavia, é necessário verificar em cada contexto o seu emprego.
[6] Com a sua ironia costumeira, Voltaire (1694-1778), em 1764, escrevendo no seu Dicionário Filosófico, sobre a “Inquisição”, diz: “A Inquisição é, como se sabe, uma invenção admirável e absolutamente cristã destinada a tornar o papa e os monges mais poderosos e a tornar todo um reino hipócrita” (François M.A. Voltaire, Dicionário Filosófico, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 23), 1973, p. 228). Rousseau (1712-1778), contemporâneo e adversário de Voltaire, tem, no entanto, insight semelhante: “Em Londres, um drama interessa quando faz odiar os franceses; em Túnis, a bela paixão seria a pirataria; em Messina, uma vingança bem saborosa; em Goa, a honra de queimar alguns judeus” (Jean-Jacques Rousseau, Carta A D’Alembert, Campinas, SP.: Editora da Unicamp, 1993, p. 44).