A Pessoa e Obra do Espírito Santo (33)
Os ministros são vocacionados por Deus não para pregarem suas opiniões, mas o Evangelho de Cristo. E mais, o Evangelho deve ser anunciado em sua inteireza, sem misturas, adições e cortes. Essas características distinguem essencialmente os ministros verdadeiros dos falsos mestres:
“A verdade do evangelho” deve ser considerada como sendo sua genuína pureza ou, o que vem a ser a mesma coisa, sua pura e sólida doutrina. Pois os falsos apóstolos não aboliam totalmente o evangelho, mas o adulteravam com suas noções pessoais, de modo que ele logo passava a ser falso e mascarado. Isso é sempre assim quando nos apartamos, mesmo em grau mínimo, da simplicidade de Cristo. Quão impudentes, pois, são os papistas ao se vangloriarem de que possuem o evangelho, pois ele não só é corrompido por uma infinidade de invenções, mas também é mais que adulterado por dogmas infindáveis e pervertidos.[1]
Mestre é aquele que aprende ensinando. Começa-se por pregar para si mesmos. Pregando sobre o livro de Jó, disse:
Quando eu subo ao púlpito não é para ensinar os outros somente. Eu não me retiro aparte, visto que eu devo ser um estudante, e a Palavra que procede da minha boca deve servir para mim assim como para você, ou ela será o pior para mim.[2]
Por meio dessa breve revisão de algumas de suas colocações, pode-se entender melhor a importância que Calvino atribui à pregação e à necessidade dela ser uma exposição fiel das Escrituras. A autoridade do ministro é determinada por sua fidelidade ao Espírito que nos deu a sua Palavra,
O conselho que o próprio Calvino emitiu no prefácio à edição francesa da Instituição (1541), permanece para todas as suas obras, também como princípio avaliador de qualquer labor humano: “Importa em tudo quanto exponho recorrer ao testemunho da Escritura, que aduzo para ajuizar da procedência e justeza do que afirmo”. Aqui Calvino revela o seu mais alto apreço pela Escritura. Ela procede de Deus, por isso, somente ela é infalível. Calvino cria nas reivindicações que as Escrituras fazem de si mesmas.
Consequentemente, a autoridade daquilo que ele dizia era relativa. A autoridade do teólogo é decorrente de sua seriedade para com a Palavra e interpretação fidedigna. Somente as Escrituras são absolutas.
Kruger capta bem o espírito dos Reformadores:
Os Reformadores (…) estavam bastante dispostos a confiar nos pais da igreja, nos conselhos da igreja e nos credos e confissões da igreja. Tal embasamento histórico foi encarado não apenas como um meio para manter a ortodoxia, mas também como um meio para manter a humildade. Ao contrário da percepção popular, os Reformadores não se viam como se estivessem trazendo algo novo. Em vez disso, eles entendiam que estavam recuperando algo muito antigo – algo que a igreja tinha acreditado inicialmente, mas que depois havia se torcido e distorcido. Os Reformadores não eram inovadores, mas escavadores.[3]
De forma decorrente, como temos insistido, a autoridade de quem prega, não é derivada do fato de ser pregador, mas de sua fidelidade na transmissão da Palavra. Portanto, não cabe à igreja nem ao ministro forjar nenhuma nova doutrina:
Todavia, entre os apóstolos e seus sucessores, como já disse, existe esta diferença: que aqueles foram infalíveis e autênticos amanuenses do Espírito Santo, e por isso seus escritos devem ser tidos como oráculos de Deus; os outros, porém, não têm outra função, senão que ensinem o que foi dado a conhecer e consignado nas Sagradas Escrituras. Concluímos, pois, não é permitido aos ministros fiéis que forjem algum dogma novo, mas simplesmente que se apeguem à doutrina à qual Deus a todos sujeitou, sem exceção. Ao afirmar tal coisa, meu intuito é mostrar não apenas o que se permite a cada indivíduo, mas também o que se permite a toda a Igreja. (…) Evidentemente, se a fé depende somente da Palavra de Deus, que somente para ela volvamos nossos olhos e nela reclinemos, que lugar fica para a palavra do mundo inteiro? Tampouco se poderá aqui hesitar, quem quer que conheça bem o que é a fé, pois importa que ela esteja sustentada por essa firmeza, mercê da qual subsista inquebrantada e destemida contra Satanás todas as maquinações dos infernos e o mundo todo. Esta firmeza só acharemos na Palavra de Deus. Além disso, é universal a razão que convém ter aqui em vista: que Deus por isso detrai aos homens a faculdade de proferir dogma novo, para que somente ele seja nosso Mestre na doutrina espiritual, como somente verdadeiro [Rm 3.4] é Aquele que não pode mentir, nem enganar. Esta razão diz respeito não menos a toda Igreja que a cada um dos fiéis.[4]
E para que os leitores entendam melhor em que repousa, acima de tudo, esta questão, exporei em poucas palavras que é que nossos adversários pretendem e em quê lhes resistimos. Sua afirmação de que a Igreja não pode errar, a interpretam nestes termos: quando ela é governada pelo Espírito de Deus, pode avançar com segurança sem a Palavra; para onde quer que avance, não pode sentir nem falar senão o que é verdadeiro; daí, se algo além ou fora da Palavra de Deus precisa ser preceituado, tem de ser considerado como se fosse oráculo direto de Deus. Nós admitimos que a Igreja não pode errar nas coisas necessárias para a salvação, porém deve ser entendido no sentido de que a Igreja, ao não fazer caso de toda sua sabedoria, se deixa ensinar pelo Espírito e pela Palavra de Deus. Esta, pois, é a diferença: esses colocam a autoridade da Igreja fora da Palavra de Deus; nós, porém, unimos ambas as coisas inseparavelmente. (…).
Agora é fácil concluir quão extraviados andam nossos adversários, os quais se gabam unicamente do Espírito Santo, para entronizar em seu nome doutrinas estranhas e muitíssimo contrárias à Palavra de Deus, quando o próprio Espírito quer ser associado à Palavra de Deus por um vínculo indivisível. E assim o afirma Cristo ao prometê-lo a sua Igreja, pois ele deseja que ela guarde a sobriedade que lhe tem recomendado, e lhe proibiu que acrescente ou tire qualquer coisa a sua Palavra [Dt 4.2; Ap 22.19, 20]. É este decreto inviolável de Deus e do Espírito Santo que nossos adversários tentam anular, quando imaginam que a Igreja é governada pelo Espírito Santo sem a Palavra.[5]
Entre tantos outros autores, Calvino também nos ensina sobre o mensageiro e a mensagem que ouvimos:
As únicas pessoas que têm o direito de ser ouvidas são aquelas a quem Deus enviou e que falam a palavra de sua boca. Portanto, para qualquer homem exercer autoridade, duas coisas são requeridas: o chamamento [divino] e o desempenho fiel do ofício por parte daquele que foi chamado.[6]
A Segunda Confissão Helvética (1566)[7] declara:
Cremos e confessamos que as Escrituras Canônicas dos santos profetas e apóstolos dos dois Testamentos são a verdadeira Palavra de Deus (…) Portanto, quando a Palavra de Deus é pregada atualmente na igreja por pregadores legitimamente vocacionados, nós cremos que a própria Palavra de Deus é anunciada e recebida pelos fiéis; e que nenhuma outra Palavra de Deus pode ser inventada, nem esperada que venha dos céus: e que hoje o que deve ser considerado é a própria Palavra anunciada e não o ministro que prega, pois, embora este seja mau e pecador, contudo a Palavra de Deus permanece boa e verdadeira. (I.1,4).[8]
Maringá, 29 de outubro de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] João Calvino, Gálatas, (Gl 2.5), p. 52. Dargan (1852-1930) comentando sobre o trabalho de Calvino como exegeta e expositor das Escrituras, diz: “Na pregação de Calvino o método expositivo dos pregadores da Reforma encontrou ênfase. Seus comentários eram frutos de sua pregação e aula, e seus sermões eram comentários ampliados e aplicados. (…) (O seu estilo) mostra-nos como o comentarista obteve o melhor do pregador. Contudo os seus sermões não eram meros comentários. Ali temos uma agilidade de percepção, uma firmeza no posicionamento, um poder de expressão que aliados fazem o pensamento da Escritura marcar e produzir sua impressão sem o auxílio da arte do orador” (Edwin C. Dargan, A History of Preaching, Grand Rapids, Mi.: Baker Book House, 1954, v. 1, p. 449). Para um estudo sobre a pregação de Calvino: método, estilo e mensagem, bem como sua influência sobre os pregadores de fala inglesa, Ver: T.H.L. Parker, The Oracles of God: An Introduction to the Preaching of John Calvin, Cambridge, England: James Clarke; Co. 1947, (2002) Reprinted, 175p.
[2]Sermão 95 Apud Bernard Cottret, Calvin: A Biography, Michigan; Cambridge, U.K.; Edinburgh: Eerdmans; T & T. Clark, 2000, p. 294.
[3] Michael Kruger, Sola Scriptura. Disponível: https://ministeriofiel.com.br/artigos/sola-scriptura/ . Acessado em 29.10.2020.
[4] João Calvino, As Institutas, (2006), IV.8.9.
[5] João Calvino, As Institutas, (2006), IV.8.13.
[6] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 1.1), p. 15.
[7] A Segunda Confissão Helvética, foi primariamente elaborada em latim, em 1562, pelo amigo, discípulo e sucessor de Zuínglio (1484-1531), Henry Bullinger (1504-1575). Em 1564, quando a peste voltou a atacar em Zurique, Bullinger perdeu a esposa e as três filhas. Ele mesmo ficou doente mas foi curado. Neste ínterim ele fez a revisão da Confissão de 1562 e, como uma espécie de testamento espiritual, anexou-a ao seu testamento, para ser entregue ao magistrado da cidade, caso ele viesse a falecer. Esta confissão foi publicada, com algumas alterações – aceitas por Bullinger –, em latim e alemão em 12/03/1566. Ela foi traduzida para vários idiomas (inclusive o Árabe), tendo ampla aceitação em diversos países nos anos seguintes, sendo também adotada na Escócia (1566); na Hungria (1567); na França (1571); na Polônia (1578). Esta Confissão se tornou de grande relevância na união das igrejas calvinistas na Europa.
[8] Segunda Confissão Helvética: In: Joel R. Beeke; Sinclair Ferguson, Harmonia das Confissões Reformadas, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 11-12.