A Pessoa e Obra do Espírito Santo (317)
A vontade de Deus e as circunstâncias
A vontade de Deus revelada no apostolado de Paulo não era mera abstração, algo distante e apenas virtual, antes, se materializava no seu sincero esforço por discernir a vontade de Deus em seus propósitos por mais santos que eles lhes parecessem. Ilustremos:
Paulo desejava muito visitar a Igreja de Roma que ele mesmo não conhecera ainda que tivesse muitos irmãos ali congregados. Ele orava já há algum tempo sobre este assunto:
9Porque Deus, a quem sirvo em meu espírito, no evangelho de seu Filho, é minha testemunha de como incessantemente faço menção de vós 10em todas as minhas orações, suplicando que, nalgum tempo, pela vontade (qe/lhma) de Deus, se me ofereça boa ocasião de visitar-vos. (Rm 1.9-10).
Quando Paulo estava em Corinto, acredita ter uma boa oportunidade de visitar Roma. Contudo, antes deve passar pela Judéia para levar as ofertas para os santos dali. Sua trajetória seria arriscada, visto ter muitos inimigos na região. Ele então pede aos crentes romanos:
30 Rogo-vos, pois, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo e também pelo amor do Espírito, que luteis juntamente comigo nas orações a Deus a meu favor, 31 para que eu me veja livre dos rebeldes que vivem na Judéia, e que este meu serviço em Jerusalém seja bem aceito pelos santos; 32 a fim de que, ao visitar-vos, pela vontade (qe/lhma) de Deus, chegue à vossa presença com alegria e possa recrear-me convosco. (Rm 15.30-32).
Ainda que nossos propósitos sejam santos, nem sempre é fácil discernir a vontade de Deus. Paulo cria ter boa ocasião para conhecer os irmãos de Roma, acreditava ter uma mensagem para eles, contudo, deseja saber se esta era a vontade de Deus naquelas circunstâncias. Ele só pôde ter esta certeza depois de preso, quando o próprio Senhor lhe garantiu que assim se sucederia. Todavia, não como Paulo possivelmente desejava ou esperava (At 23.11).[1]
A vocação interna e o testemunho da igreja
Retomando o nosso assunto, destacamos que o diácono deve ser eleito pela Igreja (At 6.5). A eleição é uma evidência de que Deus vocacionou aquele irmão para o respectivo ofício. Por isso, a Igreja deve buscar a orientação de Deus com fé e submissão, certa de que Deus também manifesta a sua vontade por intermédio da assembleia da igreja. A certeza subjetiva (chamado interno) deve vir acompanhada, a seu tempo, de uma manifestação objetiva (chamado externo).
A sensação do chamado, porém, não acompanhada da expressão da igreja, pode ser algo muito perigoso.
Melanchthon (1497-1560) e Lutero (1483-1546) depararam-se explicitamente com esse problema bem no início da Reforma Protestante. Conforme já ilustrei, porém, como mais detalhes, Por volta de 1520, na pequena, porém próspera e culta cidade alemã de Zwickau, surgiu um grupo de homens “iluminados” – chamados por Lutero de “profetas de Zwickau” – que alegava ter revelações especiais vindas diretamente de Deus, entendendo ter sido chamado por Deus para “completar a Reforma”.
A sua religião partia sempre de uma suposta revelação interior do Espírito. Acreditavam que o fim dos tempos estava próximo – os ímpios seriam exterminados – e que por isso, não era necessário estudar teologia visto que o Espírito estaria inspirando os pobres e ignorantes. Assim pensando, esses homens diziam:
De que vale aderir assim tão estritamente à Bíblia? A Bíblia! Sempre a Bíblia! Poderá a Bíblia nos fazer sermão? Será suficiente para a nossa instrução? Se Deus tivesse tencionado ensinar-nos, por meio de um livro, não nos teria mandado do céu, uma Bíblia? Somente pelo Espírito é que poderemos ser iluminados. O próprio Deus fala dentro de nós. Deus em pessoa nos revela aquilo que devemos fazer e aquilo que devemos pregar.[2]
Nícolas Storck, escolheu doze apóstolos e setenta e dois discípulos, declarando que finalmente tinham sido devolvidos à Igreja os profetas e apóstolos. Ele, acompanhado de Marcos Stübner e Marcos Tomás foi a Wittenberg (27/12/1521) – que já enfrentava tumultos liderados por Andreas B. von Carlstadt (c. 1477-1541) e Gabriel Zwilling (c. 1487-1558) – pregar o que considerava ser a verdadeira religião cristã, contribuindo grandemente para a agitação daquela cidade. Stübner, antigo aluno de Wittenberg, justamente por ter melhor preparo, foi comissionado a representá-los. Melanchthon que conversou com Stübner, interveio na questão, ainda que timidamente.
Comentando os problemas suscitados pelos “espiritualistas”, o historiador D’aubigné (1794-1872) conclui: “A Reforma tinha visto surgir do seu próprio seio um inimigo mais tremendo do que papas e imperadores. Ela estava à beira do abismo”.[3] Daí ouvir-se em Wittenberg o clamor pelo auxílio de Lutero. E Lutero, consciente da necessidade de sua volta, abandonou a segurança de Warteburgo retornando à Wittenberg[4] a fim de colocar a cidade em ordem (1522), o que fez, com firmeza e espírito pastoral.[5] Posteriormente, escreveria: “Onde, porém, não se anuncia a Palavra, ali a espiritualidade será deteriorada”.[6]
Mais tarde, o teólogo Turretini (1623-1687), combatendo os fanáticos de seu tempo, falando da vocação de modo geral, enfatizou:
Ora, ainda que não duvidemos de que o sopro interno do Espírito concorra nesta vocação, isso não é suficiente, a menos que haja uma manifestação e confirmação externas, seja por uma manifestação de Deus, pessoalmente, ou por uma declaração da vontade divina, anexa a uma concordância da doutrina proposta com a doutrina revelada por Deus em Sua Palavra, para que não seja confundida com as imposturas dos fanáticos que se vangloriam do sopro e revelações divinos.[7]
Maringá,18 de outubro de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] “Na noite seguinte, o Senhor, pondo-se ao lado dele, disse: Coragem! Pois do modo por que deste testemunho a meu respeito em Jerusalém, assim importa que também o faças em Roma” (At 23.11).
[2]Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século,São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, (s.d.), v. 3, p. 64.
[3]J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 71.
[4]Justificando-se com o príncipe o motivo da sua volta, escreveu-lhe no dia de sua chegada a Wittenberg, 7 de março de 1522: “Não são acaso os Wittemberguenses as minhas ovelhas? Não mas teria confiado Deus? E não deveria eu, se necessário, expor-me à morte por causa delas?” (Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século,v. 3, p. 83).
[5]Lutero, iniciando no dia 09/3/1522, pregou oito dias consecutivos em Wittenberg. Veja-se o seu primeiro sermão In: Martinho Lutero, Pelo evangelho de Cristo: Obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma,Porto Alegre; São Leopoldo, RS.: Concórdia Editora; Editora Sinodal, 1984, p. 153-161.Quanto aos detalhes da sua volta, Vejam-se: J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século,v. 3, p. 72ss.; James Atkinson, Lutero e o Nacimiento del Protestantismo, p. 254ss.
[6] Martinho Lutero, Uma Prédica Para que se Mandem os Filhos à Escola (1530): In:Martinho Lutero: Obras Selecionadas,São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.: Sinodal; Concórdia, 1995, v. 5, p. 334.
[7] François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 268.