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A Pessoa e Obra do Espírito Santo (31) - Hermisten Maia

A Pessoa e Obra do Espírito Santo (31)

6.1.5. O Espírito, a Reforma, a autoridade e a interpretação bíblica (continuação)

A Questão hermenêutica

            A questão da interpretação bíblica sempre foi o ponto nevrálgico em toda a história dateologia.[1] Na Reforma deu-se uma mudança de quadro de referência. Por isso, podemos falar deste movimento como tendo um de seus pilares fundamentais a questão hermenêutica.[2] O “eixo hermenêutico” desloca-se da tradição da igreja para a compreensão pessoal da Palavra, contudo, sem desprezar aquela. Há aqui uma mudança de critério de verdade que determina toda a diferença.

            No entanto, conforme acentua Popkin (1923-2005), Lutero inicialmente confrontou a igreja dentro da perspectiva da própria tradição da igreja, somente mais tarde é que ele

Deu um passo crítico que foi negar a regra de fé da Igreja, apresentando um critério de conhecimento religioso totalmente diferente. Foi neste período que ele deixou de ser apenas mais um reformador atacando os abusos e a corrupção de uma burocracia decadente, para tornar-se o líder de uma revolta intelectual que viria a abalar os próprios fundamentos da civilização ocidental.[3]

Acomodação graciosa de Deus

            Considerando a distância qualitativa entre Deus e o homem, Calvino sustenta que Deus em sua graça se acomoda à nossa compreensão, se adaptando de forma condescendente à nossa limitação.[4] Empregando as palavras de Calvino, Deus na sua revelação “se acomodava[5] à nossa capacidade”,[6] balbuciando a sua Palavra a nós como as amas fazem com as crianças.[7]

Deus se vale de analogias, recorrendo a metáforas – comparando-se a um leão, ao urso e ao homem –, visando ser entendido por nós.

Quando o Senhor às vezes se compara a um leão, a um urso, a um homem, ou a outros objetos, isto nada tem a ver com imagens, como imaginam os papistas, senão que, por meio de tais metáforas, ou a benignidade e mercê de Deus, ou sua ira e desprazer, e outras coisas da mesma natureza se expressam. Pois Deus não pode revelar-se a nós de qualquer outra maneira senão por meio de uma comparação com coisas que conhecemos.[8]

Por exemplo, quando Deus se compara a um homem embriagado – “excitado pelo vinho” (Sl 78.65) –, assumindo um caráter totalmente estranho ao seu, Calvino diz que Ele se acomoda “à estupidez do povo”.[9] Ou seja: Deus adapta-se à linguagem humana e “ao nível humano de compreensão”.[10] “…. Deus, acomoda-se ao nosso modo ordinário de falar por causa de nossa ignorância, às vezes também, se me é permitida a expressão, gagueja”.[11]  Resumindo: “Em Cristo, Deus, por assim dizer, tornou-se pequeno, para acomodar-se à nossa compreensão”.[12] “O Senhor Jesus (…) acomoda de algum modo Suas palavras à capacidade deles….”.[13]   

            Portanto, quando lemos as Escrituras, “somos arrebatados mais pela dignidade do conteúdo que pela graça da linguagem”.[14]

            Calvino observa, contudo, que os homens incrédulos sempre procuram uma desculpa para a sua impiedade:

Se Deus, acomodando-se à tacanha capacidade dos homens, fala num estilo humilde e acessível, esse método de ensino é desprezado como simples demais; porém, se ele se manifesta num estilo mais elevado, com vistas a imprimir maior autoridade à sua Palavra, os homens, com o intuito de eximir-se de sua ignorância, dirão que ela é obscura demais. Como esses dois vícios são por demais prevalecentes no mundo, o Espírito Santo assim tempera seu estilo, para que a sublimidade das verdades que ele ensina não fique oculta daqueles que porventura sejam de uma capacidade mais débil, contanto que sejam de uma disposição submissa e dócil e tragam consigo um desejo solícito de ser instruídos.[15]

Maringá, 28 de outubro de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] “Em certo sentido, a história da teologia cristã pode ser entendida como a história da interpretação bíblica” (Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo: Loyola, 2005, p. 15). À frente: “Embora a controvérsia centralizada em Galileu seja quase sempre considerada a luta entre ciência e religião, ou entre libertarismo e autoritarismo, o que estava verdadeiramente em jogo era o sentido a da correta interpretação da Bíblia” (Alister E. McGrath,Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, p. 25).

[2] “Não há exagero em dizer que a Reforma do Século XVI foi, no fundo, uma revolução hermenêutica” (Moisés Silva, Has the Church Misread the Bible?: In: Moisés Silva, ed. ger. Foundations of Contemporary Interpretation (Six Volumes in One), Grand Rapids: Michigan: Zondervan, 1996. [p. 15-90], p. 62).“A Reforma Protestante foi em sua raiz um evento do domínio da hermenêutica” (Edward A. Dowey Jr., Documentos Confessionais como Hermenêutica: In: Donald K. Mckim, ed.,  Grandes Temas da Teologia Reformada, São Paulo: Pendão Real, 1999, p. 13). “A Reforma Protestante foi, em muitos sentidos, um movimento hermenêutico” (Augustus N. Lopes, A Bíblia e Seus Intérpretes, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 159).

[3] Richard H. Popkin, História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000, p. 26.

[4]Cf. Alister E. McGrath, Historical Theology: An Introduction to the History of Christian Thought, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1998, p. 210. A Confissão de Westminster fala também da “condescendência” de Deus em firmar um Pacto com o homem caído (Ver: Confissão de Westminster, VII.1).

[5] Battles  (1915-1979) nos adverte que Calvino nunca empregou a palavra “acomodação” na forma substantivada (accommodatio) nas Institutas e, possivelmente em qualquer de seus escritos. Porém, utilizou os verbos accommodare ou attemperare. (acomodar). (Cf. Ford L. Battles, Interpreting John Calvin,Grand Rapids, MI.: Baker Books, 1996, p. 117).

[6]J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios,(1Co 2.7), p. 82.  “Deus não pode ser compreendido por nós, a menos que se acomode ao nosso padrão” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 11/2, (Ez. 9.3,4), p. 304). “Não podemos compreender plenamente a Deus em toda a sua grandeza, mas que há certos limites dentro dos quais os homens devem manter-se, embora Deus acomode à nossa tacanha capacidade toda declaração que faz de si mesmo. Portanto, somente os estultos é que buscam conhecer a essência de Deus” (João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Edições Paracletos, 1997,(Rm 1.19), p. 64). “O Espírito Santo propositadamente acomoda ao nosso entendimento os modelos de oração registrados na Escritura” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 13.3), p. 265). “Porque se viesse a nós em Sua majestade estaríamos perdidos; porém quando Se nos apresenta por meio de homens se acomoda a nossas debilidades para que possamos conhecer mais convenientemente sua verdade a qual Ele nos propõe” (Juan Calvino, Autoridad y Reverencia que Debemos a la Palabra de Dios: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 17), p. 212).  “Porque, uma vez que em si mesmo seja incompreensível, ele assume, quando quer manifestar-se, aquelas marcas pelas quais possa ser conhecido” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 1/1, (Gn 3.8), p. 161). “Este é aquele arrependimento tão amiúde referido nas Escrituras. Não que Deus seja em si mutável, mas Ele usa a linguagem humana para que sejamos afetados com o mais profundo senso de sua ira” (J. Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 106.23), p. 685]. “O Espírito Santo não teve intenção de ensinar astronomia; e, com o propósito de instruir procurou ser comum às pessoas mais simples e iletradas” (John Calvin, Commentary on the Book of Psalms, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (Calvin’s Commentaries, v. 6/4), 1996 (Reprinted), (Sl 136.7), p. 184]. Veja-se: James Orr, Ciência e Fé Cristã: In: R.A. Torrey, ed. Os Fundamentos, (Edição atualizada por L. Feinberg), São Paulo: Hagnos Editora, 2005, p. 129-139. Ver também: Herman Bavinck, Reformed Dogmatics: Volume 1: Prolegomena, Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2003, p. 214.

[7]Calvino usou deste recurso hermenêutico para explicar assuntos aparentemente contraditórios na Bíblia. Falando sobre os antropomorfismos bíblicos, diz em lugares diferentes: “Pois quem, mesmo que de bem parco entendimento, não percebe que Deus assim conosco fala como que a balbuciar, como as amas costumam fazer com as crianças? Por isso, formas de expressão que tais não exprimem, de maneira clara e precisa, tanto quê Deus seja, quanto Lhe acomodam o conhecimento à paucidade da compreensão nossa. Para que assim se dê, necessário Lhe é descer muito abaixo de Sua excelsitude” (J. Calvino, As Institutas, I.13.1). “A descrição que dele se nos outorga tem de acomodar-se-nos à capacidade, para que seja de nós entendida. Esta é, na verdade, a forma de acomodar-se: que tal se nos represente, não qual é em Si, porém, qual é possível de ser de nós apreendido” (J. Calvino, AsInstitutas, I.17.13). Ver também: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 13.3), p. 265; (Sl 19.4-6), p. 420-421/ v. 2, (Sl 50.14), p. 409; v. 3, (Sl 78.65), p. 241; (Sl 91.4), p. 447; (Sl 93.2), p. 474; (Sl 106.23), p. 685; ***João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.1), p. 30;  (Jo 3.12), p. 127; v. 2, (Jo 14.28), p. 111; (Jo 21.25), p. 327; As Institutas, I.14.3,11; I.16.9; IV.17.11; As Institutas, (1541) III.8. Deste princípio derivado da Retórica (Cf. Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 154ss.) ele tirou um princípio pedagógico: “Um sábio mestre tem a responsabilidade de acomodar-se ao poder de compreensão daqueles a quem ele administra o ensino, de modo a iniciar-se com os princípios rudimentares quando instrui os débeis e ignorantes, não lhes dando algo que porventura seja mais forte do que podem suportar” (J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios,(1Co 3.1), p. 98-99. Ver também: João Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.15), p. 235]. Hooykaas (1906-1994) sustenta que a “teoria da acomodação de Calvino” exerceu poderosa influência sobre os astrônomos protestantes (Ver: R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna,Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1988, p. 160ss.; Alister E. McGrath, Historical Theology: An Introduction to the History of Christian Thought, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1998, p. 210. Em que pese o marxismo do autor, veja-se a obra de Christopher Hill, A Bíblia Inglesa e as Revoluções do Século XVII,Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 43ss).

[8] John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted),  v. 8/1,  (Is 40.18), p.  223

[9]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 3, (Sl 78.65), p. 241.

[10]John H. Gerstner, A Atitude da Igreja Perante a Bíblia: Calvino e os Teólogos de Westminster: In: Norman Geisler, org. A Inerrância Bíblica, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 477. Veja-se também: Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 154ss.

[11] John Calvin, Commentary on the Gospel According to John,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (Calvin’s Commentaries, v. 18), 1996 (Reprinted), (Jo 21.25), p. 299.

[12]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 22,  (1Pe 1.21), p. 54. Parker interpretando Calvino, diz: “…. Os pensamentos e a linguagem de Deus são incompreensíveis ao homem. Mas revelação só é revelação se ela for compreensível. Portanto, os pensamentos e a linguagem de Deus devem tornar-se compreensíveis, e isso acontece quando Deus, para dizer assim, os traduz em pensamentos e linguagem humanos” (T.H.L. Parker, Calvin´s New Testament Commentaries, 2. ed. Louisville, Kentucky: Westminster; John Knox Press, 1993 p. 94). Esse princípio de acomodação fora amplamente usado pelos judeus e Pais da Igreja. Para um estudo mais detalhado desse tema, vejam-se:  Stephen D. Benin, The footprints of God: divine accommodation in Jewish and Christian Thought, Albany: State University of New York Press, 1993; Ford L. Battles, Interpreting John Calvin,Grand Rapids, MI.: Baker Books, 1996, p. 117-137; Edward A. Dowey, Jr., Knowledge ot God in Calvin’s Theology,  New York: Columbia University Press, 1952, p. 3ss.)

[13]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, (III.7). v. 3,  p. 9.

[14]J. Calvino, As Institutas,I.8.1. Calvino, continua: “Ora, e não sem a exímia providência de Deus isto se faz, que sublimes mistérios do reino celeste fossem, em larga medida transmitidos em termos de linguagem apoucada e sem realce, para que houvessem eles de ser adereçados em mais esplendorosa eloquência, os ímpios não alegassem cavilosamente que a só força desta aqui impera.

            “Agora, quando essa não burilada e quase rústica simplicidade provoca maior reverência de si que qualquer eloquência de retóricos oradores, que é de julgar-se, senão que a pujança da verdade da Sagrada Escritura tão sobranceira se estadeia, que não necessite do artifício das palavras?” (J. Calvino, As Institutas,I.8.1).

            No entanto, ele também entendia que “alguns Profetas têm um modo de dizer elegante e polido, até mesmo esplendoroso, assim que a eloquência lhes não cede aos escritores profanos” (J. Calvino, As Institutas,I.8.2).  

[15] João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 78.3), p. 198.

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