A Pessoa e Obra do Espírito Santo (289)
1) Negativamente considerando (Continuação)
6) Não avarento: (a)fila/rguroj) 1Tm 3.3. Não amante do dinheiro (*Hb 13.5). O amor ao dinheiro (avareza) torna o homem egoísta e tremendamente suscetível a manipulações, cabalas e interesses pessoais; subordinando as necessidades da igreja às suas aspirações pecaminosas.
O desejo incontrolado de possuir torna o homem possuído pelo seu desejo e, sob esse domínio, passa a dirigir todas as coisas sob esta perspectiva, alienando-se de Deus e do seu próximo, olhando a realidade apenas sob o prisma de cifras e lucros. Daí Paulo dizer que “o amor do dinheiro (filarguri/a) é raiz de todos os males” (1Tm 6.10).
Curiosamente, Platão (427-347 a.C.), com discernimento correto, entendia que um dos males de sua época era a corrosão da religião praticada por supostos sacerdotes e profetas – que ele chama de mendigos e adivinhos –, os quais exploravam a credulidade das pessoas, especialmente das ricas. Dentro do quadro descrito, uma das fórmulas usadas por esses líderes religiosos, era fazer as pessoas crerem que poderiam mudar a vontade dos deuses mediante a oferta de sacrifícios ou, por intermédio de determinados encantamentos; os deuses seriam, portanto, limitados e aéticos, sem padrão de moral, sendo guiados pelas seduções humanas:
Mendigos e adivinhos vão às portas dos ricos tentar persuadi-los de que têm o poder, outorgado pelos deuses devido a sacrifícios e encantamentos, de curar por meio de prazeres e festas, com sacrifícios, qualquer crime cometido pelo próprio ou pelos seus antepassados, e, por outro lado, se se quiser fazer mal a um inimigo, mediante pequena despesa, prejudicarão com igual facilidade justo e injusto, persuadindo os deuses a serem seus servidores – dizem eles – graças a tais ou quais inovações e feitiçarias. Para todas estas pretensões, invocam os deuses como testemunhas, uns sobre o vício, garantindo facilidades (…). Outros, para mostrar como os deuses são influenciados pelos homens, invocam o testemunho de Homero, pois também ele disse: “Flexíveis até os deuses o são. Com as suas preces, por meio de sacrifícios, votos aprazíveis, libações, gordura de vítimas, os homens tornam-nos propícios, quando algum saiu do seu caminho e errou” (Ilíada IX.497-501).[1]
O poeta Sófocles (c. 497-c. 406 a.C.) na sua obra Antígona (c. 442 a.C.), escreveu:
Não há planta mais daninha que o dinheiro entre os homens: ele é que subverte o Estado, que arrebata ao lar o chefe de família; ele é que fascina e que perverte os bons e os induz, enfim, à desonestidade. Ele ensina ao homem todas as perfídias e também a não recuar ante a impiedade. Mas os que ambição conduziu ao delito, esses, cedo ou tarde, hão de pagar bem caro.[2]
Paulo mostra que é possível forjar uma aparente piedade – conforme os falsos mestres que, privados da verdade, o faziam pensando em obter lucro (1Tm 6.5)[3] –; contudo, esta carece de poder e da alegria resultantes da convicção de que Deus supre as nossas necessidades. Logo, esses falsos mestres não conhecem o “lucro” da piedade: “De fato, grande fonte de lucro (porismo/j) é a piedade (e)use/beia) com o contentamento (au)ta/rkeia[4] = “suficiência”, “satisfação”). Porque nada temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele. Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes” (1Tm 6.6-8/2Tm 3.5).[5]
Em outro contexto, porém perfeitamente aplicável aqui, Calvino nos adverte quanto ao perigo de transformarmos o nosso trabalho em objeto de avareza justamente pela falta de fé na provisão do Senhor:
O que nos torna mais avarentos do que deveríamos em relação ao nosso dinheiro é o fato de sermos tão precavidos e enxergarmos tão longe quanto possível os supostos perigos que nos podem sobrevir, e assim nos tornamos demasiadamente cautelosos e ansiosos, e passamos a trabalhar tão freneticamente como se devêssemos suprir de vez as necessidades de todo o curso de nossa vida, e afigura-se-nos como grande perda quando uma mínima parcela nos é tirada. Mas aquele que depende da bênção do Senhor tem o seu espírito livre dessas preocupações ridículas, enquanto, ao mesmo tempo, tem suas mãos livres para a prática da beneficência.[6]
Maringá, 13 de setembro de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Platão, A República,364c-e.
[2]Sófocles, A Antígone, 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1968, 295-300, p. 17.
[3] “Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem mania por questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação, difamações, suspeitas malignas, altercações sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro (porismo/j)” (1Tm 6.3-5).
[4] * 2Co 9.8; 1Tm 6.6.
[5]“Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder. Foge também destes” (2Tm 3.1-5).
[6]João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995,(2Co 8.2), p. 167-168. “Portanto, assim são os filhos de Deus libertados da servidão do pecado mediante a regeneração: não que, como se já havendo adquirido plena posse da liberdade, nada mais de perturbação sintam de sua carne; pelo contrário, que lhes permaneçam perpétua causa de luto de onde sejam postos em xeque, mas ainda melhor apreendam sua fraqueza. E nesta matéria entre si acordam todos os escritores de juízo mais são: subsistir no homem regenerado uma acendalha de mal, de onde brotem incessantemente desejos que a pecar o atraiam e excitem. Confessam, ademais, que a tal ponto são, destarte, mantidos enredados os santos por essa enfermidade de concupiscência que não possam obstar que frequentemente sintam comichões e sejam incitados ou à licenciosidade, ou à avareza, ou à ambição, ou a outros vícios” (João Calvino,As Institutas, III.3.10).