A Pessoa e Obra do Espírito Santo (263)
Olhos do coração iluminados para enxergar
No Novo Testamento, Paulo ora pelos irmãos de Éfeso:
17Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria (sofi/a) e de revelação (a)poka/luyij) no pleno conhecimento (e)pi/gnwsij)[1] dele,18Iluminados (fwti/zw)[2] os olhos do vosso coração (kardi/a), para saberdes (oi)=da) qual é a esperança do seu chamamento (klh=sij),[3] qual a riqueza da glória da sua herança (klhronomi/a) nos santos (Ef 1.17-18).
Mesmo os crentes efésios conhecendo a Deus, tendo uma dimensão real e maravilhosa de sua majestade, Paulo ora no sentido de que eles tenham seus olhos iluminados, não para adquirir algo externo ou uma visão mística, antes, para enxergar aspectos grandiosos do propósito de Deus em sua vida, muitos dos quais já usufruímos ainda que sem consciência disso. Somos tão ricos em Cristo mas, em nossa miopia e desatenção espiritual não nos damos conta disso.
O apóstolo ora para que Deus ilumine “os olhos do vosso coração (kardi/a)” (18). Biblicamente, o coração denota a personalidade integral do homem[4] – envolvendo geralmente a emoção, o pensamento e a vontade.
O coração, que na linguagem veterotestamentária é usado de forma efetiva referindo-se ao homem todo, traz consigo o sentido de responsabilidade, visto que somente o homem age conscientemente.[5] Por isso, Deus exige de seus servos integridade de coração. Somos responsáveis diante de Deus por nossas palavras e atos. O coração aponta para “o homem essencial”.[6]
De fato, o coração é a sede essencial de nossa existência enquanto seres que pensam, sentem e agem. O que ocorre nele é determinante de nosso pensar e agir. Deus se agrada de atos que sejam a expressão de um coração totalmente devotado a Ele.[7]
O salmista Davi expressa o seu contentamento: “Agrada-me fazer a Tua vontade, ó Deus meu; dentro em meu coração está a Tua lei” (Sl 40.8). Salomão exorta: “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4.23).
Deus fala por meio de Isaías:“Ouvi-me, vós que conheceis a justiça, vós, povo, em cujo coração está a minha lei” (Is 51.7).
Na primeira carta que Calvino escreveu depois de ter se fixado em Genebra (1536), alegra-se com o avanço da Reforma e a consequente diminuição da superstição e idolatria. Então diz: “Deus permita que os ídolos sejam erradicados também do coração”.[8]
Deus deseja o nosso coração, ou seja: a inteireza de nosso ser: “Dá-me filho meu, o teu coração, e os teus olhos se agradem dos meus caminhos” (Pv 23.26).
Bavinck (1854-1921) escreveu de modo sensível:
Assim como o coração no sentido físico é o ponto de origem e de força propulsora da circulação do sangue, assim também, espiritual e eticamente ele é a fonte da mais elevada vida do homem, a sede de sua autoconsciência, de seu relacionamento com Deus, de sua subserviência à Sua lei, enfim, de toda a sua natureza moral e espiritual. Portanto, toda a sua vida racional e volitiva tem seu ponto de origem no coração e é governada por ele.[9]
Deste modo, a oração de Paulo é no sentido de que Deus conceda aos efésios um entendimento lúcido e claro de seus privilégios em Cristo, conhecimento este que, longe de ser meramente intelectual, dominasse as suas emoções e modelasse a sua vontade de forma santa em direção a Deus.
Portanto, como igreja, não necessitamos de novas revelações, precisamos sim, ter os olhos abertos pela graça para que, com sabedoria e submissão, nos aprofundemos nestas verdades já reveladas; nas bênçãos que continuamente recebemos de Deus ainda que não as percebamos por uma insensibilidade pecaminosa e desleixo ou, simplesmente, porque as banalizemos (Ef 1.3). Por isso Paulo ora a Deus. Somente Deus, pelo Espírito, pode operar em nós esta capacitação espiritual.
O pecado que obscureceu os nossos olhos também nos tornou avessos a Deus. Somente por Deus poderemos ter um coração esclarecido para as verdades espirituais. Necessitamos, portanto, da regeneração de nossos corações para vermos a Deus em suas manifestações tão contundentes em sua revelação e em nossa vida.
Entretanto, é fundamental destacar, que não podemos simplesmente nos acostumar com a consciência dos privilégios que temos na vida cristã, precisamos nos aprofundar neles hoje, agora, neste estado de existência.
Paulo, então, já de início desperta a nossa atenção para o fato de que fomos chamados por Deus. A fé é a nossa resposta propiciada pelo próprio Deus para que atendamos ao Seu chamado eterno que se efetua na história e se concretizará na vida eterna: “Iluminados (fwti/zw) os olhos do vosso coração (kardi/a), para saberdes (oi)=da) qual é a esperança do seu chamamento (klh=sij), qual a riqueza da glória da sua herança (klhronomi/a) nos santos” (Ef 1.18).
Maringá, 12 de agosto de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] E))pi/gnwsij = “conhecimento intenso”, “conhecimento correto”. *Rm 1.28; 3.20; 10.2; Ef 1.17; 4.13; Fp 1.9; Cl 1.9,10; 2.2; 3.10; 1Tm 2.4; 2Tm 2.25; 3.7; Tt 1.1; Fm 6; Hb 10.26; 2Pe 1.2,3,8; 2.20.
[2] foti/zw * Lc 11.36; Jo 1.9; 1Co 4.5; Ef 1.18; 3.9; 2Tm 1.10; Hb 6.4; 10.32; Ap 18.1; 21.23; 22.5.
[3] *Rm 11.29; 1Co 1.26; 7.20; Ef 1.18; 4.1,4; Fp 3.14; 2Ts 1.11; 2Tm 1.9; Hb 3.1; 2Pe 1.10.
[4] G. Ernest Wright (1907-1974) salienta que na doutrina de Israel sobre o homem, “o EU, ou a identidade, não está associado a qualquer faculdade particular, ou órgão do ser humano, quer seja sua natureza psíquica, seu espírito ou sua razão. O EU é a criatura total. Pensa-se no homem com ser volitivo e ativo. Se algum termo especial, mais que outro, sugere a ideia pessoal é a palavra ‘coração’, mas o ‘coração’ não é parte ou faculdade do homem” (G.E. Wright, A Doutrina Bíblica do Homem na Sociedade, São Paulo: ASTE., 1966, p. 137). Trato deste assunto com mais detalhes em meu livro, O Pai Nosso: Temas teológicos analisados a partir da oração ensinada por Jesus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001.
[5]Walter Eichrodt, Teologia del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1975, v. 2, p. 150.
[6] Conforme expressão de Vorländer. (H. Vorländer, Homem: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 2, p. 376). “O ‘coração do homem’ representa, portanto, o mais íntimo centro que é de importância vital; aquilo que é básico, central, substantivo, e de inescrutável essência” (J.M. Lower, Heart:In:Merril C. Tenney, gen. ed.The Zondervan Pictorial Encyclopaedia of the Bible, 5. ed. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1982, v. 3, p. 58). Spykman segue linha semelhante: “O coração representa o centro unificador de toda a existência do homem, o ponto de concentração espiritual de todo nosso ser, o aspecto interior reflexivo que estabelece a direção a todas as relações de nossa vida. É a vertente de todos nossos desejos, pensamentos, sentimentos, de nosso agir, e de qualquer outra expressão da vida. É a fonte principal da qual flui todo movimento do intelecto do homem, de suas emoções, e de sua vontade, como também toda outra ‘faculdade’ ou modo de nossa existência. Em resumo, o coração é o mini-eu. O que tem meu coração me tem a mim, porém totalmente” (Gordon J. Spykman, Teología Reformacional: Un Nuevo Paradigma para Hacer la Dogmática, Jenison, Michigan: The Evangelical Literature League, 1994, p. 242).
[7]Veja-se: John Piper, Pense – A Vida da Mente e o Amor de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 126.
[8]Carta escrita ao seu amigo Francis Daniel no dia 13 de outubro de 1536. In: João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 30.
[9]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 19.