A Pessoa e Obra do Espírito Santo (262)
A Igreja como herdeira de Deus
No Salmo 17 Davi afirma que os homens mundanos tem valores e expectativas apenas terrenas as quais, enchem os seus olhos de tal forma que não conseguem enxergar nada além de cifras e bens: “Homens mundanos, cujo quinhão (חלק) (chêleq) [1] é desta vida e cujo ventre tu enches dos teus tesouros; os quais se fartam ([b;f’) (saba`)[2]de filhos e o que lhes sobra deixam aos seus pequeninos” (Sl 17.14).
No Salmo 16, temos um contraste. Vejamos:
O período em que Davi fugia da perseguição sanguinária de Saul, foi muito profícuo. Ele pôde amadurecer em todos os sentidos e, é desta fase da sua vida que temos alguns salmos magistrais.
O Salmo 16, de sua autoria (At 2.25; At 13.35-37), possivelmente foi escrito nesta época. Davi está então longe de seus familiares, sem terra, é um foragido em seu próprio país, odiado por muitos, convivendo com homens que, pelo que parece, pouco conheciam a Deus.
Nesse difícil e insólito contexto, o salmista confessa com alegria ao seu próprio Senhor, tê-lo como herança, “recompensa”[3] e quinhão:[4]
2 Digo ao SENHOR: Tu és o meu Senhor; outro bem não possuo, senão a ti somente. (…) 5 O SENHOR é a porção (hn”m’) (manah)[5] da minha herança (חלק) (chêleq) e o meu cálice; tu és o arrimo da minha sorte. 6 Caem-me as divisas em lugares amenos, é mui linda a minha herança (hl’x]n:) (nachalah)[6] (Sl 16,2,5,6).
Davi, que de certa forma fora desterrado, declara ter Deus por herança. No deserto, quando poupa pela segunda vez a vida de Saul, diz a este: “…. Eles me expulsaram hoje para que eu não tenha parte na herança do Senhor, como que dizendo: Vai, serve a outros deuses”(1Sm 26.19).
Esta experiência não foi apenas de Davi. Como os levitas não herdariam nenhuma porção da Terra Prometida, sendo isso aparentemente injusto, Deus mostra que além de lhes prover o sustento (Nm 18.20-32/Ez 44.28-31), se declara a sua herança: “Pelo que Levi não tem parte nem herança com seus irmãos; o SENHOR é a sua herança (hl’x]n:) (nachalah), como o SENHOR, teu Deus, lhe tem prometido” (Dt 10.9).
Sem dúvida nada é maior do que esse privilégio transcendente e concreto; infinito e pessoal: O Deus presente. Aquele que é “a realidade final”[7] de todas as coisas.
“O Deus que se deixa conhecer pelo nome é o Espírito absoluto que habita no mundo invisível que define e delimita o destino humano”,[8] é aquele que se relaciona conosco, é a nossa majestosa herança. Deus é o maior bem que podemos ter quer aqui, quer na eternidade.[9]
De modo semelhante, o salmista Asafe exclama: “Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em Quem me compraza na terra (…). Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança (חלק) (chêleq) para sempre” (Sl 73.25,26).
Essa certeza conduz o profeta a esperar confiantemente nele: “A minha porção (חלק) (chêleq) é o SENHOR, diz a minha alma; portanto, esperarei nele” (Lm 3.24).
No Antigo Testamento o povo de Israel é chamado de herança de Deus (Dt 9.29; [10]Dt 4.20; Ex 34.9; Sl 78.71; 94.5,14; 106.40), bem como a Terra Prometida (Sl 79.1).
MacArthur, partindo de 1Jo 3.2 e 1Co 2.9, emprega uma figura bastante ilustrativa:
Somos como um príncipe ainda criança, que é novo demais e imaturo para compreender os privilégios especiais relativos à sua posição ou à herança que o aguarda. Consequentemente, ele pode até lutar por desejos fúteis e ter acessos de raiva por coisas sem valor, as quais não passam de pálidas comparações com todas as riquezas que ele possui e que um dia receberá, ao assumir o trono de seu pai. À medida que ele cresce, seus pais precisam treiná-lo e discipliná-lo de forma a aprender o comportamento digno de alguém de sua linhagem. Através de todo esse processo de treinamento e amadurecimento, ele começa a compreender o valor e as implicações de sua herança.[11]
Somos ricos em Deus. A nossa herança está guardada e é incomensurável. Não há como computá-la apenas com padrões de medidas materiais; ela excede a toda forma de mensuração.
Por isso, em meio a nossa aparente fraqueza e pobreza, podemos e devemos bendizer a Deus nesta certeza. O Senhor que nos guarda, nos dará graciosamente a nossa herança, a qual ninguém poderá nos tirar.
Pedro consola os seus leitores a bendizer a Deus e a se alegrarem nessa certeza:
3 Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, 4 para uma herança (klhronomi/a) incorruptível (a)/fqartoj = imortal),[12] sem mácula (a)mi/atoj = puro, incontaminado),[13] imarcescível (a)ma/rantoj),[14] reservada nos céus para vós outros 5 que sois guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para revelar-se no último tempo. 6 Nisso exultais, embora, no presente, por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provações, 7 para que, uma vez confirmado o valor da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo, redunde em louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo; 8 a quem, não havendo visto, amais; no qual, não vendo agora, mas crendo, exultais com alegria indizível e cheia de glória, 9 obtendo o fim da vossa fé: a salvação da vossa alma” (1Pe 1.3-9).
A igreja como herança de Deus
A Palavra de modo surpreendente nos mostra que aqueles que têm a Deus por herança são herança de Deus. Dito de outro modo, Deus tem a sua Igreja como o seu povo peculiar e especial. Ninguém pode nos abater ou destruir. Somos o povo escolhido de Deus; a sua herança eterna, conquistada por Cristo Jesus. Deus nos preserva para si mesmo.
Por isso, o clamor de Davi: “Salva o teu povo, e abençoa a tua herança (hl’x]n:) (nachalah); apascenta-os, exalta-os para sempre”(Sl 28.9). Do mesmo modo, o salmista: “O Senhor não há de rejeitar o seu povo, nem desamparar a sua herança (hl’x]n:) (nachalah)” (Sl 94.14).
Portanto, o salmista pode declarar de forma confiante: “Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor, e o povo que ele escolheu para a sua herança (hl’x]n:) (nachalah)”(Sl 33.12).[15]
Deus nos predestinou para si mesmo, a fim de que nos tornássemos seus filhos, “para louvor da glória de sua graça que ele nos concedeu gratuitamente no Amado, no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça”(Ef 1.6-7). Isso é magnífico.
Nós em nossa pequenez e pecadores que somos, por graça, somos tomados por Deus como sua herança para sempre. Deus se alegra em ter a igreja como sua propriedade santificada para sempre.Esta verdade escapa à nossa compreensão e imaginação. Somente podemos aprender isso por meio da Palavra de Deus. Somos herdeiros de Deus e, o mais fascinante de tudo: somos herança de Deus.
Maringá, 12 de agosto de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]A palavra “quinhão” (ql,xe) (chêleq) (Sl 17.14; Sl 142.5) é traduzida por porção(Sl 119.57) e herança(Sl 73.26). Veja-se o contraste entre o quinhãodo ímpio e a porçãodo salmista (Sl 16.5).
[2]Dependendo do contexto, a palavra tem o sentido de satisfazer as necessidades físicas e espirituais. Assim, significa satisfação, plenitude, abundância, fartura. (Veja-se: Bruce K. Waltke, Sabar:In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1463-1465). Contrastando consigo mesmo – o verbo “fartar” no verso 14 é o mesmo traduzido por “satisfazer” no 15 – ele revela sua fé para além desta vida, apontando para a glorificação futura: “Eu, porém, na justiça contemplarei a tua face; quando acordar, eu me satisfarei ([b;f’) (saba`)com a tua semelhança”(Sl 17.15).
[3]Ec 2.10.
[4] Sl 145.5.
[5] A palavra era empregada para as porções especiais dos animais sacrificados, que eram separadas para os sacerdotes e levitas (2Cr 31.4; Ne 12.44,47; 13.10).
[6] Herança concedida por Deus ao seu povo (Sl 28.9; 33.12; 47.4; 105.11).
[7]Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo:Cultura Cristã, 2010, p. 272.
[8]Carl F.H. Henry, Deus, revelação e autoridade: 15 teses – parte um, São Paulo: Hagnos, 2017, p. 225.
[9]Veja-se: Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 17 e 25.
[10]“Todavia, são eles o teu povo e a tua herança, que tiraste com a tua grande força e com o braço estendido” (Dt 9.29).
[11]John F. MacArthur Jr., Nossa Suficiência em Cristo, São José dos Campos, SP: Fiel, 1995, p. 33.
[12]Algo que permanece; não se corrompe. “A palavra grega evoca a imagem de uma terra devastada por um exército conquistador. Pedro, então, está dizendo que nossa herança eterna não pode ser pilhada ou saqueada por nossos inimigos espirituais” (John F. MacArthur Jr., Nossa Suficiência em Cristo, São José dos Campos, SP: Fiel, 1995, p. 39). * Rm 1.23; 1Co 9.25; 15.52; 1Tm 1.17; 1Pe 1.4,23; 3.4.
[13] Não pode ser manchada, contaminada ou poluida pelo pecado. *Hb 7.26; 13.4; Tg 1.27; 1Pe 1.4.
[14]Não murcha, não perde a sua beleza. *1Pe 1.4.
[15]Sobre Israel como herança de Deus, Vejam-se: Dt 4.20; 1Sm 10.1; 2Sm 21.14; Sl 33.12; 74.2; 78.62; 94.5,14; 106.40; Is 19.25; 47.6; 63.17; Jr 12.14; Jl 2.17; 3.2. Deus disciplina a sua herança: Jr 12.7-9; Jl 2.17; os filhos como herança do Senhor: Sl 127.3; herança dada por Deus: Sl 135.12; 136.21-22; Jr 3.18; proteção: Is 54.17; 58.14.