A Pessoa e Obra do Espírito Santo (26)
6.1.5. O Espírito, a Reforma, a autoridade e a interpretação bíblica
“Ainda que a Reforma e a Renascença tivessem coincidido na História e também tratado dos mesmos problemas básicos, as suas respostas foram completamente diferentes”, interpreta Schaeffer (1912-1984).[1] Enquanto os humanistas partiam de uma perspectiva secular, o protestantismo tinha uma perspectiva e caráter religiosos.[2] Os reformadores vão enfatizar o estudo da Palavra, visto que este fora ofuscado pela preocupação filosófica: a razão havia tomado o lugar da revelação.
Na Reforma, o ponto de partida não é o homem. Ele não é considerado “a medida de todas as coisas”; antes, a sua dignidade consiste em ter sido criado à imagem de Deus.[3] Portanto, a dissociação entre a Renascença e a Reforma teria de ser como foi: inevitável.[4]
A Reforma foi um fenômeno originariamente religioso[5] e teológico[6] de profundas implicações na história e na sociedade, fundamentado no problema da interpretação bíblica.
A concepção da Reforma como um movimento originariamente religioso não implica na compreensão de que ela esteve restrita a apenas esta esfera da realidade; pelo contrário, entendemos que a Reforma foi um movimento de grande alcance cultural,[7] institucional, social e político na história da Europa[8] e, posteriormente em todo o Ocidente.
A amplitude da influência da Reforma em diversos setores da vida estava implícita em sua própria constituição: Era impossível alguém abraçar sinceramente a Reforma apenas no campo da religião e continuar em tudo o mais a ser um homem de uma ética medieval, com a sua perspectiva da realidade e prática intocáveis.
A Reforma em sua própria constituição era extremamente revolucionária: “A Reforma ocupou, e deve continuar a ocupar, um legítimo e significativo lugar na história das ideias”.[9] Reconhecendo o aspecto religioso como força motriz da Reforma e de sua influência, continua McGrath: “A relevância história da Reforma não é apenas inseparável das visões religiosas dos principais reformadores, mas também, em grande parte, consequência das mesmas”.[10]
Não deixa de ser significativo o testemunho de dois estudiosos católicos, Abbagnano (1901-1990) e Visalberghi (1919-2007), quando afirmam que, contribuição fundamental à formação da mentalidade moderna foi a reforma religiosa de Lutero e Calvino”.[11]
Maringá, 21 de outubro de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Francis A. Schaeffer, Como Viveremos? São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003,p. 49. Veja-se: Robert W. Pazmiño, Temas Fundamentais da Educação Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 146-151.
[2] Cf. Quirinus Breen, John Calvin: A Study in French Humanism, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1931, p. vii.
[3]O homem deve ser respeitado, amado e ajudado porque é a imagem de Deus (Ver: João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 37-38). Por mais indigno que seja, devemos considerar: “A imagem de Deus nele é digna de dispormos a nós mesmos e nossas posses a ele” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 38). “Não temos de pensar continuamente nas maldades do homem, mas, antes, darmos conta de que ele é portador da imagem de Deus” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 38). “Deus, ao criar o homem, deu uma demonstração de sua graça infinita e mais que amor paternal para com ele, o que deve oportunamente extasiar-nos com real espanto; e embora, mediante a queda do homem, essa feliz condição tenha ficado quase que totalmente em ruína, não obstante ainda há nele alguns vestígios da liberalidade divina então demonstrada para com ele, o que é suficiente para encher-nos de pasmo” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.7-9), p. 173-174). “A Escritura nos ajuda com um excelente argumento, ensinando-nos a não pensar no valor real do homem, mas só em sua criação, feita conforme a imagem de Deus. A ele devemos toda honra e o amor de nosso ser” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 37). Ver também: João Calvino, As Institutas, I.15.3-4; III.7.6; Francis A. Schaeffer, A Morte da razão, São Paulo: ABU; FIEL, 1974, p. 20ss.; André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, p. 47. É digna de nota a observação do filósofo católico Émile Bréhier (1876-1952): “A Reforma opõe-se tanto à teologia escolástica, quanto ao humanismo. Nega a teologia escolástica, porque nega, com Ockham, que nossas faculdades racionais possam conduzir-nos da natureza ao seio de Deus. Renega o humanismo, menos por seus erros do que por seus perigos, posto que as forças naturais não podem comunicar qualquer sentido religioso” (É. Bréhier, História da Filosofia, São Paulo: Mestre Jou, 1977-1978, I/3, p. 209).
[4] Ernst Cassirer, A Filosofia do Iluminismo, p. 196.
[5] Vejam-se: André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 43, 67; André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 49-51; David S. Schaff, Nossa Crença e a de Nossos Pais, 2. ed. São Paulo: Imprensa Metodista, 1964, p. 66; Felipe Fernández-Armesto; Derek Wilson, Reforma: O Cristianismo e o Mundo 1500-2000, Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 11; Timothy George, Teologia dos Reformadores, p. 20. O filósofo católico Mondin (1926-2015), disse: “A Reforma protestante foi um acontecimento essencialmente religioso, mas causou ao mesmo tempo profundas transformações políticas, sociais, econômicas e culturais” (B. Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo: Paulinas, 1981, v. 2, p. 27). Em outro lugar reafirma: “Como dissemos no início do capítulo, a Reforma protestante foi antes e acima de tudo um acontecimento religioso. Em consequência disso, ela deve ser estudada e julgada segundo critérios religiosos, mais precisamente, segundo os critérios da fé cristã, cujo espírito original a Reforma se propunha restabelecer” (B. Mondin, Curso de Filosofia, v. 2, p. 41). O antigo professor de História Eclesiástica da Universidade de Yale, Bainton (1894-1984), diz que “A Reforma foi acima de tudo um reavivamento da religião” (Roland H. Bainton, The Reformation of the Sixteenth Century, Boston, Massachusetts: Beacon Press, 1985 (Enlarged Editon), p. 3). Ver também: Fernand Braudel, Gramática das Civilizações, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 324). “Se as reformas de Calvino desempenharam um papel central na história do Ocidente, elas o fizeram não por serem princípios de organização que moldaram desenvolvimentos políticos e econômicos, e sim por causa de suas exigências de que os crentes e as congregações conformassem, individualmente, sua vida à Palavra de Deus” (D.G. Hart, O Reformador da Fé e da vida. In: Burk Parsons, ed., João Calvino: Amor à devoção, doutrina e glória de Deus, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2010, p. 77). De modo especial a respeito do Calvinismo, veja-se: Philip Benedict, Christ’s Churches Purely Reformed: A Social History of Calvinism, New Haven: Yale University Press, 2002, p. 543. É pertinente a observação de McGrath, quanto ao equilíbrio necessário neste ponto. Veja-se: Alister E. McGrath, A Revolução Protestante, Brasília, DF.: Editora Palavra, 2012, p. 15-16.
[6]Partilho da ideia de Tom Nettles, de que “Tentativas de Reforma através do tratamento de dimensões morais, espirituais e eclesiológicas, ignorando a teológica, sempre falharam” (Tom Nettles, Um Caminho Melhor: Crescimento de Igreja através de reavivamento e reforma: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 134).
[7] Veja-se: Alain Peyrefitte, A Sociedade de Confiança: Ensaio sobre as origens e a natureza do desenvolvimento, Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
[8] Aliás, este é o pressuposto fundamental do historiador Alister McGrath. (Veja-se: Alister E. McGrath, The Intellectual Origins of The European Reformation, Cambridge, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1995 (reprinted), p. 4).
[9] Alister E. McGrath, The Intellectual Origins of The European Reformation, p. 4.
[10]Alister McGrath, Origens Intelectuais da Reforma, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 13.
[11] N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía, Novena reimpresión, México: Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 253.