A Pessoa e Obra do Espírito Santo (252)
6.4. A Igreja do Trino Deus
Não existe uma Eclesiologia desligada da Cristologia, no sentido de uma mística de Cristo ou da Igreja, pois em Cristo o Deus da Antiga Aliança, o qual fundou a Nova Aliança, fala, e a assembleia neotestamentária de Deus em Cristo nada mais é do que o cumprimento perfeito da assembleia veterotestamentária de Deus. O mesmo Deus falou e fala a Israel com a palavra da promessa e aos cristãos com a palavra do cumprimento desta promessa” – Karl L. Schmidt (1891-1956).[1]
O propósito da igreja como instituição consiste em reunir os eleitos, edificar o corpo de Cristo, aperfeiçoar os santos e, assim, glorificar a Deus (Ef 4.11). Deus, certamente, também, poderia ter conduzido seu povo à salvação sem os meios da igreja ou do ofício, da palavra ou dos sacramentos, mas foi do seu agrado reunir seus eleitos por meio do ministério de seres humanos. O propósito da igreja é a salvação dos eleitos. Os ofícios da igreja são necessários em virtude dessa hipótese (necessitate hypothetica). – Herman Bavinck (1854-1921).[2]
Introdução: Cristologia & Eclesiologia
A Cristologia consiste na compreensão da Igreja a respeito da Pessoa e Obra de Cristo. Na Eclesiologia, deparamo-nos com o estudo concernente ao Corpo de Cristo, do qual somos parte integrante. Na Teologia Reformada, esta compreensão – Cristológica e Eclesiológica – é buscada na Palavra de Deus, em submissão ao Espírito, considerando também, as contribuições formuladas pela igreja ao longo da história. Nesta consideração histórica, devemos ter em mente que: a) somente as Escrituras são infalíveis, não as interpretações das Escrituras, quer pretéritas, quer presentes;[3] b) o Espírito age na igreja e por intermédio dela, na interpretação da Verdade revelada, conduzindo-a à verdade (Jo 14.26; 16.13-15/2Pe 1.3-15). Por isso, de nenhum modo podemos desconsiderar gratuitamente as contribuições históricas, sem corrermos o risco de anular o que o Espírito tem feito por intermédio dos seus servos. Portanto, c) A fé nunca pode estar dissociada desta pesquisa.[4]
Em outro lugar[5] tratamos da questão da evangelização, abordando uma definição comumente usada, que consiste em dizer que “Evangelizar é pregar a Cristo”. Dissemos então, que acreditamos que nenhum evangélico discordaria desta proposição. A questão, que ainda nos parece fundamental, é saber, de que Cristo estamos falando: do Cristo revelado nas Escrituras, Divino, Eterno, Senhor, Soberano, igual em poder, honra e glória, ao Pai e ao Espírito Santo?, ou um Cristo, criado pela “fantasia” dos cristãos primitivos, destituído de sua Glória, sendo o “produto da fé” dos discípulos?
Se queremos pregar a Cristo, devemos “definir” quem é o Cristo que anunciamos ou, em nossa perspectiva, aceitar a definição bíblica de Cristo. A questão de quem é o Cristo que cremos e pregamos permanece. Conforme já estudamos, esta tem sido ao longo da História uma das indagações mais relevantes para a nossa fé.
A concepção Reformada não consiste num esforço para atribuir a Cristo valores que julgamos serem próprios Dele. Antes ela se ampara no reconhecimento e na aceitação incondicional de suas reivindicações.
Assim, aquilo que dizemos de Cristo, permanecerá ou não, conforme seja fiel à proclamação do Verbo de Deus. Por isso, a vivacidade da Cristologia Reformada e, por que não, da sua proclamação, estará sempre em sua fidelidade à Cristologia do Cristo.
Cristo por Ele mesmo. Este é o anelo de toda Cristologia Reformada, e portanto, o fundamento de toda a nossa proclamação. Deste modo, devemos indagar sempre a respeito de nossas convicções e testemunho, avaliando-os por meio daquele que verdadeira e compreensivelmente diz quem é.
Neste afã, devemos estar atentos ao fato de que Cristo por Ele mesmo, envolve o limite do que foi revelado e o desafio do que nos foi concedido. Não podemos ultrapassar o revelado, contudo, não podemos nos contentar com menos do que nos foi dado.[6]
Procurar a Cristologia do Cristo equivale a buscar compreender em submissão ao Espírito tudo o que foi revelado para nós (Dt 29.29b/Rm 15.4). Por certo, este conhecimento não estará restrito ao Cristo Salvador, mas além disto nos fala do Cristo Deus-Homem; do Cristo Eterno e Glorioso.
Aliás, só podemos falar do Cristo Salvador, se Ele de fato for – como é –, o Deus encarnado, visto que a nossa redenção não foi levada a efeito pelo Logos divino, nem pelo “Jesus humano”, mas por Jesus Cristo: Deus-Homem.[7]
Fazer esta separação significa dilacerar, esquartejar o Corpo de Cristo e, consequentemente a Cabeça. Não podemos separar o que Deus prazerosamente uniu desde a eternidade.
A visão correta a respeito da Igreja passa, necessariamente, pela correta compreensão de quem é o Cristo, o Filho de Deus. Sem Cristo a igreja está morta. Todos os nervos, veias e músculos estão conectados à cabeça, que lhes comanda. Não há vida real fora do cérebro. Do mesmo modo, na Igreja, não há vida fora de Cristo. Não há independência. Tratar da igreja à revelia de Cristo é fazer uma autópsia de um corpo morto. A nossa união não é mecânica, nem artificial, antes, é orgânica e vital. Somos unidos e guiados pelo mesmo Espírito, em um só corpo, cuja cabeça é Cristo.[8]
Todas as bênçãos, todos os privilégios da vida cristã, emanam do fato de que estamos unidos a Cristo. Jesus Cristo não é uma peça decorativa, ou simbólica, antes, dele provém toda glória, poder e autoridade. A criação foi estabelecida nele e para ele.
16 pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. 17 Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. 18Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as coisas ter a primazia. (Cl 1.16-18).
A visão correta a respeito da Igreja passa, necessariamente, pela correta compreensão de quem é o Cristo, o Filho de Deus.
Por isso, uma Cristologia defeituosa, anencéfala – justamente por não corresponder à plenitude da revelação bíblica – gera necessariamente uma eclesiologia distante das Escrituras, tão adequável a manipulações e interesses estranhos a elas. E, ao mesmo tempo, produz uma visão míope da realidade e de nosso papel na sociedade como povo de Deus.
Considerar a Igreja fora de Cristo é um exercício de necropsia não de teologia.
Maringá, 01 de agosto de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Karl L. Schmidt, Igreja: In: Gerhard Kittel, ed. A Igreja no Novo Testamento, São Paulo: ASTE, 1965, p. 30.
[2]Herman Bavinck, Dogmática Reformada − Espírito Santo, Igreja e nova criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 382.
[3] O que Tillich (1886-1965) diz a respeito da “Teologia” também se aplica à Cristologia e à Eclesiologia: “A tarefa da teologia é mediação, mediação entre o critério eterno da verdade manifesto na figura de Jesus, o Cristo, e as experiências mutáveis dos indivíduos e dos grupos, suas variadas questões e suas categorias de percepção da realidade. Quando se rejeita a tarefa mediadora da teologia, rejeita-se a própria teologia; pois o termo ‘teo-logia’ pressupõe, em si, uma mediação, a saber, entre o mistério, que é theos, e a compreensão, que é logos” (Paul Tillich, A Era Protestante, São Paulo: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1992, p. 15).
[4] Como bem observou o teólogo luterano Braaten, “A Cristologia não é uma disciplina científica que possa ser perseguida apropriadamente à parte do discipulado da fé. (…) Ninguém pode chamar Jesus de o Cristo puramente como resultado de pesquisa científica histórica” (C.E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã,São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1990, v. 1, p. 462).
[5] Hermisten M.P. Costa, Breve Teologia da Evangelização,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996.
[6]Vejam-se: João Calvino, As Institutas, I.13.21; III.21.4; João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8.1), p. 38; João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Edições Paracletos, 1995 (2Co 12.4), p. 242-243; João Calvino, Exposição de Romanos,São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 9.14), p. 330; João Calvino, Romanos, 2. ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.33), p. 426-427.
[7] Veja-se: J. Calvino, As Institutas,São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985, II.14.3.
[8] “É-nos suficiente saber que Cristo e seu povo são realmente um. São tão verdadeiramente um como a cabeça e os membros do mesmo corpo, e pela mesma razão; são envolvidos e animados pelo mesmo Espírito. Não se trata meramente de uma união de sentimentos, ideias e interesses. Esta é só a consequência da união vital na qual as Escrituras põem tanta ênfase” (Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2001, p. 1004).