A Pessoa e Obra do Espírito Santo (244)
5) Os santos verão a Deus
Nas Bem-aventuranças, o Senhor nos ensina: “Bem-aventurados os limpos (kaqaro/j)(= puros) de coração, porque verão a Deus” (Mt 5.8). O desejo de ver a Deus deve ser da mesma intensidade do desejo de sermos puros, ter um coração íntegro, sem ambiguidades de interesses e de palavras.
No entanto, nessa bem-aventurança nos confronta com uma aparente antinomia. Ao mesmo tempo, em Provérbios, lemos a indagação inspirada: “Quem pode dizer: Purifiquei o meu coração, limpo (LXX: kaqaro/j) estou do meu pecado?” (Pv 20.9).
Os limpos verão a Deus, contudo, ninguém pode se declarar limpo de seu pecado. Assim sendo, esta bem-aventurança é utópica. Utópica? Sim e não. Associando-se com o conjunto das bem-aventuranças, esta também nos humilha evidenciando a nossa pequenez espiritual.
Não podemos nos declarar limpos de nossos pecados, contudo, podemos ter os nossos pecados declarados perdoados por causa da misericórdia de Deus. Constatamos, então, a necessidade de humildade diante de Deus, de chorar pelos nossos pecados e clamar por sua misericórdia. Analisemos a questão partindo dos atos salvadores e santificadores da Trindade.
O fundamento de nossa integridade não pode depender simplesmente de nossas intuições, antes, da Palavra de Deus. A nossa sinceridade não pode se autorreferendar como critério avaliativo de verdade, se justificando a si mesma. Como Hendriksen (1900-1982) nos lembra, “os de coração limpo” no Salmo 73.1, estão entre aqueles que com sinceridade são guiados pelo Conselho de Deus (Sl 73.24) e que “a fé sem hipocrisia” (1Tm 1.5) adere à “sã doutrina” (1Tm 1.24).[1]
Os puros verão a Deus. Nesta bem-aventurança Jesus não está se referindo a uma simples pureza física ou ritual, antes à pureza de coração, do centro vital de nossa existência, o homem essencial, o centro de nossa personalidade, de onde partem nossos conceitos, nossos sentimentos e nossa vontade. Daí o salmista dizer: “Guardo ([}apfc) (çãphan) no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti” (Sl 119.11. Vejam-se: Sl 37.31;119.2,57,69; Pv 2.10-12).[2]
O verbo guardar (= “esconder”, “ocultar”, “entesourar”, “armazenar”), tem o sentido de guardar com atenção, levando-a em consideração no seu agir. Portanto, guardar a Palavra no coração significa considerá-la em todo o nosso ser, sendo ela a norteadora do nosso sentir, pensar, falar e agir; o lugar da Palavra deve ser sempre no cerne essencial do homem. A Palavra é guardada em nosso coração quando está presente continuamente, não meramente como um preceito exterior, mas, sim, como um poder interno motivador, que se opõe ao nosso pensar e agir egoístas.[3] A santidade inicia-se no coração, imbuída de um espírito agradecido, tendo como motivação final agradar a Deus.[4]
No Novo Testamento, Paulo recomenda à Igreja de Colossos:“Habite ricamente em vós a palavra de Cristo; instrui-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos e hinos e cânticos espirituais, com gratidão em vossos corações” (Cl 3.16).
Quanto a uma perspectiva puramente ritualística criada, adaptada e incrementada pela tradição, Jesus Cristo mostra que a nossa pureza deve ser primeira e primordialmente interior; nosso coração, pensamentos e intenções. As nossas palavras refletem o que de fato somos, pensamos e sentimos. Não estamos com um “eu dividido”,[5] tentando servir a Deus e, ao mesmo tempo mantermos uma atitude “politicamente correta”. O fato é que a pureza de coração só se torna possível a um coração justificado e santificado por Deus.[6]
É importante que se diga que nesta bem-aventurança não há exclusão, nem satisfação apenas do aspecto exterior, antes, associação a partir de um coração sincero ancorado na Palavra. Os fariseus em sua miopia espiritual não percebiam isso.
Por isso o ensino público de Jesus: “Não é o que entra pela boca o que contamina (koino/w) (tornar impuro) o homem, mas o que sai da boca, isto, sim, contamina (koino/w) o homem” (Mt 15.11).
Detalha:
17 Não compreendeis que tudo o que entra pela boca desce para o ventre e, depois, é lançado em lugar escuso? 18 Mas o que sai da boca vem do coração, e é isso que contamina (koino/w) o homem. 19 Porque do coração (kardi/a) procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias. 20 São estas as coisas que contaminam (koino/w) o homem; mas o comer sem lavar as mãos não o contamina (koino/w). (Mt 15.17-20).
Em outro lugar: “25 Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque limpais (kaqari/zw) o exterior do copo e do prato, mas estes, por dentro, estão cheios de rapina e intemperança! 26 Fariseu cego, limpa (kaqari/zw) primeiro o interior do copo, para que também o seu exterior fique limpo (kaqaro/j)!” (Mt 23.25-26).
O salmista Davi, ora então a Deus: “Ensina-me, Senhor o teu caminho, e andarei na tua verdade; dispõe-me o coração para só temer o teu nome”(Sl 86.11).
Aquele que entrega o seu coração a Deus (Pv 4.23; 23.26), entregou na realidade não apenas um “órgão” ou parte do seu ser, mas toda a sua vida. Quem assim procede, é continuamente ensinado por Deus, Aquele que é o seu senhor; senhor do seu coração.
Deus nos limpa pela Palavra. A pureza da Igreja reside no fato de pertencer a Cristo e, ao mesmo tempo, infere-se que a preservação ética desta pureza deve estar associada ao apego a esta mesma palavra purificadora: “Vós já estais limpos (kaqaro/j) pela palavra que vos tenho falado” (Jo 15.3).
Quando pecamos, nos arrependemos e confessamos os nossos pecados a Deus, podemos ter a certeza de Seu perdão amparado na obra remidora de Cristo: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar (kaqari/zw) de toda injustiça” (1Jo 1.9).
O caminho da visão de Deus é o da santificação: “Segui a paz com todos e a santificação (a(giasmo/j), sem a qual ninguém verá (o(ra/w) o Senhor” (Hb 12.14). Devemos suplicar a Deus que crie em nós um coração puro: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro (LXX: kaqaro/j) e renova dentro de mim um espírito inabalável” (Sl 51.10).
Sem pretender ser exaustivo ou conclusivo, entendo que o ver a Deus tem dois sentidos básicos:
a) Com o coração purificado pela Palavra temos maior sensibilidade e discernimento para ver na Criação e em nossa vida, o agir de Deus, a ação de Jesus Cristo o Seu Filho, a Sua direção, cuidado e proteção. Aquilo que pode parecer banal ao homem natural, para nós, há, ainda que muitas vezes por meios naturais, a manifestação sobrenatural do cuidado, da preservação e, até mesmo, da disciplina de Deus (Hb 12.6-7).
Nós só vemos o que somos capazes de ver.[7] Antes disso, o arco-íris era apenas um amontoado de cores; uma sinfonia, o som de vários instrumentos. Agora, como o salmista Davi, podemos dizer: “Ó SENHOR, Senhor nosso, quão magnífico em toda a terra é o teu nome! Pois expuseste nos céus a tua majestade” (Sl 8.1). “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos” (Sl 19.1).
b) Ao mesmo tempo, esta bem-aventurança aponta para o futuro, de forma mais plena, quando nós nos encontraremos com o Senhor. Agora vemos a Deus pela fé; na eternidade, o veremos face a face. Deste modo, por meio de Cristo veremos a Deus. Aqui, como estudamos, ainda temos a influência do pecado que obscurece os nossos olhos; na eternidade já não mais teremos este tipo de impedimento, contudo, continuaremos sendo criaturas. Nesta condição poderemos ter uma visão perfeita dentro da grandeza e limitação do que nos for revelado. Ou seja: não conheceremos tudo ‒ Deus é infinito e inesgotável ‒, no entanto, o que pudermos conhecer, o conheceremos com toda intensidade e legitimidade, sem a contaminação do pecado (1Jo 3.2).
Quando Cristo concluir a sua obra, consumando a aplicação de nossa salvação por meio do Seu Espírito, poderá então concretizar o motivo pelo qual orou antes de Se entregar em sacrifício pelo seu povo:
24 Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que vejam (qewre/w) (percebam, considerem, contemplem, experimentem) a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo. 25 Pai justo, o mundo não te conheceu; eu, porém, te conheci, e também estes compreenderam que tu me enviaste. 26 Eu lhes fiz conhecer o teu nome e ainda o farei conhecer, a fim de que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles esteja. (Jo 17.24-26).
Nas palavras de Cristo temos o consolo de uma esperança que nos alimenta enquanto aguardamos o pleno cumprimento de sua promessa:
No tempo do cumprimento daquilo que há de vir, Deus restaurará aquela comunhão com os homens que foi rompida pelo pecado. Não se coloca à disposição do homem, e não Se entrega às garras do homem, mas, sim, abre o caminho da comunhão Consigo. Agora, ainda aguardamos pela fé, mas a comunidade que vigia sabe que são ‘Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus’ (Mt 5.8).[8]
Algumas conclusões
1) A nossa reconciliação com Deus por meio de Cristo tem também esse propósito: “….vos reconciliou no corpo da sua carne, mediante a sua morte, para apresentar-vos perante ele santos, inculpáveis (a)/mwmoj) e irrepreensíveis” (Cl 1.22).
Jesus Cristo conhece os nossos corações, as nossas motivações e intenções. Tudo deve ser feito na presença de Deus, sob o critério de Cristo. Portanto, o que de fato importa, não é o que somos aos olhos dos homens, mas, perante Deus, Aquele que sabe perfeitamente como somos.
Paulo diz que a avaliação de nossa santidade e vida irrepreensível, será feita por Cristo. Devemos ser santos e irrepreensíveis perante ele, “aos olhos de Deus”, como diz Calvino[9] ou, na “presença dele” (katenw/pion[10] au)tou=) (Ef 1.4/Cl 1.22).
2) Devemos nos aproximar de Deus com o desejo de ser purificado por Ele mesmo; somente Ele pode fazer isso e nos conduzir ao céu: “Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós outros. Purificai (kaqari/zw) as mãos, pecadores; e vós que sois de ânimo dobre, limpai (a(gni/zw) o coração” (Tg 4.8). Se desejamos de fato ver a Deus devemos lutar para nos conservar puros (1Jo 3.3).
3) Deus nos criou em Cristo para as boas obras (Ef 2.10). Devemos nos purificar a fim de nos tornarmos em instrumentos dóceis nas mãos de Deus na concretização de Seu propósito: “Assim, pois, se alguém a si mesmo se purificar (e)kkaiqai/rw)[11] destes erros, será utensílio para honra, santificado e útil ao seu possuidor, estando preparado para toda boa obra” (2Tm 2.21).
4) O nosso novo nascimento por meio da Palavra deve nos conduzir à purificação de nossos corações: “22Tendo purificado (a(gni/zw) a vossa alma, pela vossa obediência à verdade, tendo em vista o amor fraternal não fingido, amai-vos, de coração, uns aos outros ardentemente, 23 pois fostes regenerados não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente” (1Pe 1.22-23).
MacArthur aplica: “Aquele cujo coração é purificado por Jesus Cristo vê frequentemente a glória de Deus. (…) A pureza de coração purifica os olhos da alma para que Deus seja visível”.[12]
5) Pedro exorta a igreja a ser achada assim pelo Senhor quando Este regressar em glória: “Por essa razão, pois, amados, esperando estas coisas, empenhai-vos (prosdoka/w) por serdes achados por ele em paz, sem mácula (a)/spiloj) e irrepreensíveis (a)mw/mhtoj)” (2Pe 3.14).
Maringá, 19 de julho de 2021. Rev. Hermisten Maia Pereira da
[1] William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, v. 1, (Mt 5.8), p. 387.
[2] Sobre a importância do conceito de coração na antropologia bíblica, veja-se: Hermisten M.P. da Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001.
[3] Cf. C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (s.d.), Vol. 5, (Sl 119.11), p. 246. Veja-se também, Albert Barnes, Notes on the Old Testament Explanatory and Practical, 10ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1973, (Psalms, Vol. III), (Sl 119.11), p. 181b.
[4] Veja-se: J.I. Packer, O que é santidade e por que ela é importante?: In: Bruce H. Wilkinson, ed. ger. Vitória sobre a Tentação, p. 31-32.
[5]Devo esta expressão a Tasker. Veja-se: R.V.G. Tasker, Mateus: introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1980, p. 50.
[6] Cf. R.C.H. Lenski, Commentary on the New Testament: The Interpretation of St. Matthew’s Gospel, [s. cidade]:Hendrickson Publishers, 1998, (Mt 5.8), p. 192.
[7] Hendriksen e especialmente Barclay desenvolvem este conceito com variações estimulantes. Vejam-se: William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, v. 1, (Mt 5.8), p. 387-388; William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, v. 1, (Mt 5.8), p. 116-117.
[8] K. Dahn, Ver: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 4, p. 705.
[9]João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, (Hb 10.7), p. 259.
[10] katenw/pion, “na presença de” (*Ef 1.4; Cl 1.22).
[11] *1Co 5.7; 2Tm 2.21.
[12] John MacArthur Jr., O Caminho da Felicidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 148.