A Pessoa e Obra do Espírito Santo (224)
Dupla intercessão
O Espírito ora conosco e por nós. Ele, juntamente com Cristo, em esferas diferentes, intercede por nós: “Cristo intercede por nós, no céu, e o Espírito Santo na Terra. Cristo nosso Cabeça Santo, estando ausente de nós, intercede fora de nós; o Espírito Santo, nosso Consolador intercede em nosso próprio coração, que Ele escolheu como seu templo”, contrasta Kuyper (1837-1920).[1]
“A intercessão de Cristo é uma contínua aplicação de sua morte para nossa salvação”, resume Calvino.[2]
Ela respalda-se nos seus merecimentos, obtendo para os seus eleitos, os frutos da sua obra expiatória (Rm 8.34; Hb 7.25; 1Jo 2.1).[3]
A sua intercessão, exclusivamente pelos seus discípulos,[4] faz parte de seu ministério sacerdotal, levando sobre si um jugo totalmente desigual e incompreensível a nós, como escreveu meu estimado mestre, Salum: “O Senhor Jesus Cristo, no tribunal divino, intercede pelos seus eleitos e carrega sobre si o peso de uma troca estranha, porém, gloriosa, incompreensível à nossa mente pecaminosa, mas acolhida com júbilo mediante fé (Mt 11.28-30)”.[5]
O Espírito intercede por nós considerando as nossas necessidades vitais e costumeiramente imperceptíveis aos nossos próprios olhos.
Calvino observou que na oração, “a língua nem sempre é necessária, mas a oração verdadeira não pode carecer de inteligência e de afeto de ânimo”,[6] a saber:
O primeiro, que sintamos nossa pobreza e miséria, e que este sentimento gere dor e angústia em nossos ânimos. O segundo, que estejamos inflamados com um veemente e verdadeiro desejo de alcançar misericórdia de Deus, e que este desejo acenda em nós o ardor de orar.[7]
Depois de falar sobre a necessidade de termos grande zelo pelo nome de Deus – zelo este que fez com que o salmista pedisse o castigo de Deus contra os seus inimigos que profanaram o templo, destruíram Jerusalém e mataram seus filhos de forma cruel –, Calvino acrescenta: “Se este sentimento reinasse em nossos corações, o mesmo facilmente moderaria o desgoverno de nossa carne; e se a sabedoria do Espírito lhe fosse acrescida, nossas orações estariam em estrita concordância com os justos juízos de Deus”.[8]
Spener (1635-1705), escrevendo sobre a oração, segue uma linha semelhante: “Não é suficiente que se ore exteriormente, com a boca, pois a oração verdadeira e mais necessária acontece no nosso ser interior, podendo expressar-se em palavras ou permanecer na alma, mas, de qualquer maneira, lá acha e encontra Deus”.[9]
Conforme já estudamos, Paulo diz que nós, os crentes em Cristo, recebemos o Espírito de ousada confiança em Deus, que nos leva, na certeza de nossa filiação divina, a clamar “Aba, Pai”. ”Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos Aba, Pai” (Rm 8.15).[10]
O fato de Paulo usar a mesma expressão de Cristo para nós “significa que, quando Jesus deu a Oração Dominical aos seus discípulos, também lhes deu autoridade para segui-lo em se dirigirem a Deus como ‘abbã’, dando-lhes, assim, uma participação na sua condição de Filho”, comenta Hofius.[11] Somente pelo Espírito poderemos nos dirigir a Deus desta forma, como uma criança que se lança sem reservas nos braços do seu Pai amoroso.
Quando oramos sabemos que estamos falando com o nosso Pai. Desta forma, a oração é uma prerrogativa dos que estão em Cristo. Somente os que estão em Cristo pela fé, têm a Deus como o seu legítimo Pai (Jo 1.12; Rm 8.14-17; Gl 4.6; 1Jo 3.1-2). De onde se segue que a oração do Pai Nosso, apesar de não mencionar explicitamente o nome de Cristo, é feita no Seu nome, visto que somos filhos de Deus – e é nesta condição que nos dirigimos a Deus – por intermédio de Cristo Jesus (Gl 3.26).[12]
Portanto, quando oramos o Pai Nosso sinceramente, na realidade estamos orando no nome de Jesus Cristo, pois, foi Ele mesmo quem nos ensinou a fazê-lo. Assim, devemos, pelo Espírito – nosso intercessor –, no nome de Jesus – nosso Mediador –, orar: “Pai nosso que estás nos céus….”.
Maringá, 25 de junho de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 634.
[2]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981, v. 22, (1Jo 2.1), p. 171.
[3] “Não temos como medir esta intercessão pelo nosso critério carnal, pois não podemos pensar do Intercessor como humilde suplicante diante do Pai, com os joelhos genuflexos e com as mãos estendidas. Cristo contudo, com razão intercede por nós, visto que comparece continuamente diante do Pai, como morto e ressurreto, que assume a posição de eterno intercessor, defendendo-nos com eficácia e vívida oração para reconciliar-nos com o Pai e levá-lo a ouvir-nos com prontidão” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.34), p. 304).
[4]Berkhof (1873-1957) demonstrando a Expiação Limitada de Cristo, enfatizou esse ponto: “A obra sacrificial de Cristo e sua obra intercessória são simplesmente dois aspectos diferentes de sua obra expiatória e, portanto, o alcance de uma não pode ser mais amplo que o da outra. Ora, Cristo limita mui definidamente a sua obra intercessória, quando diz: ‘Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus’ (Jo 17.9). Por que limitaria ele a sua oração intercessória se, de fato, pagou o preço por todos?” (Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 396).
[5]Oadi Salum, Teologia Sistemática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 400.
[6]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 240. Para uma interpretação alternativa do texto de Romanos 8.26-27, consulte Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática,São Paulo: Vida Nova, p. 916-917, que associa a passagem a “suspiros e gemidos inarticulados que nós mesmos emitimos em oração, que então o Espírito Santo transforma em intercessão efetiva diante do trono divino” (p. 916).
[7]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 243.
[8]João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Edições Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 79.12), p. 260.
[9]Ph. J. Spener,Mudança para o Futuro: Pia Desideria,São Paulo; Curitiba, PR.: Encontrão Editora; Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, SP.: 1996, p. 119.
[10] Veja-se: Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 618.
[11] O. Hofius, Pai: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, p. 383.
[12] Veja-se: João Calvino, As Institutas,III.20.36.