A Pessoa e Obra do Espírito Santo (217)
3. Santificação como processo inacabado (Continuação)
O que nos distingue da nossa antiga condição, além da consciência de que somos pecadores, é que não mais temos prazer no pecado. Podemos até dizer que o pecado é um acidente de percurso na vida dos regenerados.
Calvino, escreve:
Todavia, que ninguém se engane nem se vanglorie do seu mal, ao ouvir que o pecado habita sempre em nós. Isso não é dito para que os pecadores durmam sossegados em seus pecados, mas unicamente com este propósito: que aqueles que, aborrecidos, tentados e espicaçados por sua carne, não fiquem desolados, não se desanimem e não percam a esperança; antes, que vejam que continuam no caminho certo e que tiveram bom proveito ao sentirem que a sua concupiscência vai diminuindo pouco a pouco, dia após dia, até chegarem à meta almejada, a saber, a eliminação derradeira e final da sua carne, alcançando a perfeição quando esta vida mortal tiver fim.[1]
Isso indica a necessidade de o convertido adquirir novos hábitos pela prática da verdade em amor (Ef 4.15).[2] A graça de Deus é educadora (Tt 2.11-15), operando por intermédio das Escrituras, nos corrigindo e educando na justiça para o nosso aperfeiçoamento (2Tm 3.16,17). Alguns destes hábitos santamente desenvolvidos, são: leitura e meditação na Palavra, oração, participação dos cultos, esforço no anúncio do Evangelho e ajuda aos irmãos na fé.
“A santificação é um processo contínuo pelo qual Deus, por sua misericórdia, muda os hábitos e o comportamento do crente, levando-o a praticar obras piedosas”, resume Booth.[3] Todavia, continuaremos sendo pecadores até o fim dessa existência.
O nosso crescimento externo deve ser caracterizado pelo aprofundamento e solidificação de nossas raízes. Altura exige profundidade e solidez. Por isso, o nosso crescimento profissional, social, econômico, cultural, etc., deve vir acompanhado necessariamente de um alimento mais sólido.
Esse alimento deve ser buscado não na mera superfície, porque assim procedendo correríamos o risco de, subalimentados, perdermos a oportunidade de mantermos uma vida espiritual real e verdadeira.
Árvores mais altas necessitam de raízes mais profundas e vigorosas. A nossa projeção em geral vem acompanhada de tentações mais sofisticadas e sutis, às quais se configuram de maneira diferente.
Curiosamente, a nossa palavra humildade, provém do latim, humus e seu adjetivo humilis, que designava tudo que está perto do solo e, por derivação, algo ou alguém de pouca estatura. Portanto, nosso crescimento espiritual tem que ser para baixo. “O que temos que perceber é que só crescemos em direção a Cristo quando diminuímos (humildade, do latim humilis, que significa ‘baixo’). Os cristãos, podemos dizer, crescem mais quando ficam pequenos”, aplica Packer.[4]
Possivelmente, se a nossa logística e arsenal espiritual, não estiverem em constante sincronia com a Palavra, estarão desatualizados para uma batalha na qual já entramos vencidos porque nem sequer a percebemos como tal. A ignorância a respeito de nosso inimigo e de seu arsenal bélico de tentações, pode nos conduzir em uma ingênua e fatal indolência espiritual. Não brincamos com o pecado, nem fazemos pouco caso das tentações. O nosso coração em sua volúpia pode se tornar em um péssimo conselheiro a serviço do pecado.
“Éramos pecadores quando iniciamos a carreira cristã, e pecadores seremos enquanto estivermos prosseguindo no caminho. Somos renovados, perdoados, justificados, e, no entanto, pecadores até o último instante”, escreve Ryle (1816-1900).[5]
Antes, o pecado comandava o nosso pensar e agir, agora ele ainda nos influencia, todavia não mais reina. Calvino pontua em lugares diferentes: “O pecado deixa apenas de reinar, não, contudo de neles habitar”.[6] Em outro lugar: “Ainda que o pecado não reine, ele continua a habitar em nós e a morte é ainda poderosa”.[7]
Murray (1898-1974) ilustra bem este ponto:
Há uma total diferença entre o pecado sobrevivente e o pecado reinante, o regenerado em conflito com o pecado e o não-regenerado tolerante para com o pecado. Uma coisa é o pecado viver em nós; outra bem diferente é vivermos em pecado. Uma coisa é o inimigo ocupar a capital; outra bem diferente é suas milícias derrotadas molestarem os soldados do reino.[8]
Ao mesmo tempo, aprendemos que somos chamados ao crescimento em nossa caminhada de forma progressiva. Estamos sujeitos ao pecado, é verdade. Ele é ainda uma realidade presente. Por isso, como disse Lloyd-Jones: “Jamais poderemos ter feriado espiritual”.[9] A luta é contínua e sem tréguas. Deste modo, todos nós devemos estar comprometidos em crescer em nossa fé para que tenhamos maior sensibilidade espiritual para com os feitos de Deus.
Ao povo da Aliança que se desviara do caminho do Senhor, Este lhe diz: “Aprendei (למד)(lâmad) [10] a fazer o bem” (Is 1.17).[11] A santificação é justamente isto; um santo aprendizado guiado pelo Espírito, tendo como constituição normativa e legislativa do nosso pensar, agir e sentir, a Palavra de Deus. Portanto, a santificação envolve uma nova “alfabetização” espiritual guiada pela Palavra de Deus.[12]
Berkhof (1873-1957) usa uma figura para ilustrar a nossa nova condição:
Uma criança recém-nascida é, salvo exceções, perfeita em suas partes, mas não está no grau de desenvolvimento ao qual foi destinada. Justamente assim, o novo homem é perfeito em suas partes, mas, na presente vida, continua imperfeito no grau de desenvolvimento espiritual.[13]
O crente é chamado a uma caminhada constante. Os cristãos do Novo Testamento eram reconhecidos como aqueles que eram do Caminho. Saulo, antes de convertido, pediu cartas ao sumo sacerdote “a fim de que, caso achasse alguns que eram do Caminho, assim homens como mulheres, os levasse presos para Jerusalém” (At 9.2). Lucas relata que Priscila e Áquila, após ouvirem uma pregação de Apolo, o chamaram e, “com mais exatidão, lhe expuseram o caminho de Deus” (At 18.26).
O cristianismo é fundamentalmente um caminho de vida, alicerçado na prática do Evangelho, conforme ensinado por Jesus Cristo. As Escrituras nunca nos apresentam atalhos circunstanciais, obscuros com pavimentação incerta.
Na realidade, o nosso mundo pode apresentar um cenário de sombras e desolação, no entanto, Jesus Cristo, o nosso único caminho, ilumina a nossa trilha de peregrinação a caminho de nossa morada eterna.
A santificação é, portanto, um desafio a perseguirmos este caminho, nos empenhando por fazer a vontade de Deus. Por isso, a santificação nos fala de caminharmos sempre em direção ao alvo proposto por Deus, com os nossos corações humildes, desejosos de agradar a Deus, de fazer a Sua vontade com o sentimento adequado.
A vida cristã não é a de um transeunte em férias, sem compromissos, sem agenda definida. Ela se compatibiliza mais propriamente à figura do peregrino, sempre buscando o melhor caminho para chegar ao seu destino. O cristão está comprometido com o propósito de seu Senhor (Ef 1.4). Todo o seu coração deve estar voltado para isso. Temo contudo, que a fé cristã, por vezes, com uma pauta acessória que lhe tem sido agregada, com tantos novos caminhos aparentemente tão bem pavimentados e, por isso, convidativos, tem perdido esse caminho. É possível que com o tempo ele seja até mesmo apagado da memória cristã em meio às condições climáticas adversas – ventos, chuvas, mover da terra e o cair das folhas –, porém, necessárias.
Não permitamos que por simples modismos, intuições e má vontade, nos afastemos de caminhar por trilhas já percorridas pelos nossos pais na fé com grande proveito. Por outro lado, que isso não nos sirva de desculpa para não vivenciarmos a nossa fé em busca de maior santidade de forma rica e piedosa em nossa época, deixando de recorrer ao que Deus nos tem mostrado progressivamente.
É urgentemente necessário transitar meditativamente pelo caminho da santidade a fim de que a sua trilha não seja perdida nem esquecida e as nossas pegadas sejam ampliadas por outras e outras[14]
O antigo professor de Princeton, Patton (1843-1932), ressalta que,
A santificação é uma mudança gradual de caráter; é um despojo do homem velho, “que se corrompe pelas concupiscências do engano”, e um revestimento do “novo homem que, segundo Deus, é criado em verdadeira justiça e santidade”. Na regeneração, o filho de Deus torna-se “uma nova criatura”, e isto se manifesta mais e mais, à proporção que a santificação vai progredindo. O filho de Deus é objeto de novos sentimentos, novos prazeres, novos motivos e novas aspirações. “As coisas velhas são passadas”.[15]
Maringá, 18 de junho de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.11), p. 166. Do mesmo modo, ver: Juan Calvino, El Carácter de Job, Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 1), p. 32.
[2] “Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo” (Ef 4.15).
[3]A. Booth, Somente pela Graça,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1986, p. 44-45.
[4] J.I. Packer, A Redescoberta da santidade, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 96.
[5] J.C. Ryle, Santidade, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1987,p. 56.
[6]João Calvino, As Institutas, III.3.11.
[7]João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.20), p. 44.
[8]J. Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 162.
[9]D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 352. “Uma vez que os crentes todos os dias se envolvem em muitos erros, de nada lhes aproveitará já terem tomado a vereda da justiça, a menos que a mesma graça que os manteve em sua companhia os conduza à última fase de sua vida” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.1), p. 42).
[10]A ideia básica da palavra é a de aprender, ensinar, treinar, educar, acostumar-se a; familiarizar-se com. Deus nos ensina para que cumpramos a sua Palavra: “Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino (למד)(lâmad), para os cumprirdes, para que vivais, e entreis, e possuais a terra que o SENHOR, Deus de vossos pais, vos dá” (Dt 4.1). (Do mesmo modo: Dt 4.5,14; 5.1,31; 6.1).
Como mestre perfeito, Deus usava inclusive do recurso musical para ensinar a Lei ao povo: “Escrevei para vós outros este cântico e ensinai-o (למד)(lâmad) aos filhos de Israel; ponde-o na sua boca, para que este cântico me seja por testemunha contra os filhos de Israel. (…) Assim, Moisés, naquele mesmo dia, escreveu este cântico e o ensinou (למד)(lâmad)aos filhos de Israel” (Dt 31.19,22/Dt 32.1-47). (Cf. Walter C. Kaiser, Lâmad: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 791; D. Müller, Discípulo: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 662; A.W. Morton, Educação nos Tempos Bíblicos: In: Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 2, p. 261; E.H. Merrill, dml: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 800-802; Hermisten M.P. Costa, Introdução à Educação Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010).
[11] Em outro lugar o salmista suplica: “Faze-me, SENHOR, conhecer os teus caminhos, ensina-me (למד)(lâmad) as tuas veredas” (Sl 25.4).Conforme já indicamos, a ideia básica de (למד)(lâmad) é a de treinar e educar, acostumar-se a; familiarizar-se com; aprender.
[12] “Se formos vigilantes contra Satanás em um ponto da muralha de nosso viver, ele tentará rompê-la em outro ponto, esperando por um momento quando nos sentirmos seguros e felizes, e quando, provavelmente, nossas defesas estarão fracas. Assim prosseguem os seus ataques, o dia inteiro e todos os dias” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus,São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 83).
[13]Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 541.
[14] Devo a Packer o despertar para a figura da santificação e suas trilhas. Ele fala em termos de bosque com muita propriedade. Veja-se: J.I. Packer, A Redescoberta da santidade, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 10-11.
[15] Francisco L. Patton, Compendio de Doutrina e a Egreja, Lisboa: Typ. A Vapor de Eduardo Rosa, 1909, p. 97.