A Pessoa e Obra do Espírito Santo (21)
6.1.2.4. Harmonia de propósito
O Novo Testamento está latente no Antigo e o Antigo encontra-se patente o no Novo. – Agostinho (354-430).[1]
Por intermédio de Isaías, Deus fala da efetividade de seu propósito que se cumpre por meio de sua Palavra:
Porque, assim como descem a chuva e a neve dos céus, e para lá não tornam, sem que primeiro reguem a terra e a fecundem e a façam brotar, para dar semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca; não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz, e prosperará naquilo que a designei. (Is 55.10,11).
O Deus soberano que livremente se revelou e inspirou os escritores sagrados para registrar a sua revelação, providencialmente, faz com que a sua Palavra escrita alcance o Seu objetivo, o seu propósito. Mas, o que é que Deus pretende? Qual o seu propósito?
Retornemos um pouco na história bíblica. Com o pecado de nossos primeiros pais (Gn 3.6), a morte passou a ser o selo de toda a criação. Contudo, Deus fez a sua promessa (Gn 3.15), evidenciando, assim, que proporcionaria historicamente o caminho da salvação, de restauração do homem caído.
A Bíblia só se tornou necessária devido à Queda, ao pecado do homem, pois, antes do pecado, havia uma maravilhosa harmonia em toda a criação (Gn 1.31) e Deus falava diretamente com o homem (Gn 3.8-13). Todavia, com o pecado, houve um transtorno na vida humana, com alcance físico, moral e espiritual (Gn 3.16,19. Leia também: Gn 4.1-11; 6.5) e a natureza também sofreu os efeitos devastadores da desobediência do homem (Gn 3.17,18).
Ao longo da História, Deus separou e preparou homens para que registrassem de forma exata e infalível os seus desígnios, e foi a Palavra de Deus escrita, dentre outras coisas, “o corretivo às ideias disformes que pode dar-nos a natureza em seu estado caído”, destaca Meeter (1886-1963).[2]
De fato, a tradição oral se fosse simplesmente preservada por seres humanos, além dos lapsos naturais que ocorrem com o passar do tempo, e, considerando que somos pecadores, adulteraria de modo propositado totalmente a informação e mensagem.[3]
Por isso, só se considera adequada salvadoramente, revelação de Deus contida na Bíblia. Ainda que os sinais da majestade de Deus se encontrem espalhados em toda Criação,[4] somente por intermédio das Escrituras o homem pode ter um conhecimento de Deus livre de superstições. Contudo, os dois livros: A Natureza e a Escritura, por serem sobrenaturalmente produzidos por Deus, trazem a mesma mensagem visto que procedem do mesmo Autor.[5] A Revelação Natural (Geral) é tão infalível quanto a Especial. E mais, a revelação Especial (Sobrenatural ou Soteriológica) pressupõe a Geral e, confere sentido a ela e a suplementa de forma soteriológica.[6] Portanto, para o crente, toda a revelação é sobrenatural porque provém de Deus, testemunha e aponta para o seu Criador.
Em 19 de junho de 1555, Calvino pregando sobre Dt 5.11, disse:
Observemos os céus e a Terra: vemos Deus em todo lugar. Pois o que é a Terra senão uma imagem viva (como diz Paulo) na qual Deus se declara? Apesar de ser invisível em sua essência, ele se mostra nessa, para que o adoremos. Mas nas Sagradas Escrituras existe uma imagem da qual Deus se declara de modo muito mais familiar a nós do que nos céus ou na Terra. Apesar de iluminarem a Terra, nem o sol nem a lua demonstram a majestade do mesmo modo que a Lei, os Profetas e o Evangelho.[7]
A Bíblia é o registro da Palavra e dos atos salvadores de Deus na história. Ela traz o registro das promessas de Deus e da sua respectiva execução, a fim de nos conduzir de volta a Deus, encontrando, desta forma, a esperança que emana do próprio Deus (1Co 15.4). O apóstolo Pedro escreveu dizendo que Deus nos regenerou para uma viva esperança em Cristo (1Pe 1.3); Paulo também escreveu com a mesma convicção, afirmando ser “Cristo Jesus, nossa esperança” (1Tm 1.1) e em outros de seus escritos, Paulo demonstra que os homens sem Cristo estão sem esperança, sendo corroídos pela desesperança que gera o desespero (Ef 2.12; 1Ts 4.13).
“O evangelho de Jesus Cristo não é algo que nos é oferecido para debate ou discussão, e sim para nossa aceitação e fé. Não busca nossa aprovação, mas exige nossa obediência. Não convida discussão, ao contrário, comanda diligência”, exorta Lloyd-Jones.[8]
No seu Evangelho, Deus não se propõe a satisfazer a nossa curiosidade. Ele almeja conduzir-nos a Ele mesmo em adoração e gratidão, a fim de recebermos dele a esperança inconfundível da vida eterna (Rm 5.5; 2Ts 2.16; Tt 1.2).
O propósito harmonioso de Deus é a sua própria Glória (Is 43.7; Rm 11.36; Ef 1.3,6,11,12). Nas palavras de Packer (1926-2020), Deus “é o fim de todas as suas obras. Ele não existe para o nosso interesse, mas nós para o interesse dele. É sua natureza e prerrogativa agradar-se a si mesmo e seu beneplácito revelado é fazer-se grande aos nossos olhos (Sl 46.10). O alvo predominante de Deus é glorificar-se a si mesmo”.[9]
Não esqueçamos, entretanto, que a justiça, bondade, misericórdia e o amor (dentre outras perfeições de Deus), permeiam toda a sua obra (Sl 9.8; 33.5; 89.1; Lm 3.22; Jo 3.16; Rm 5.8; Ef 2.7). Deus nos conduz a Ele para que, na contemplação da sua Majestade, recebamos a salvação preparada por Ele mesmo, executada por Jesus Cristo e aplicada pelo Espírito Santo. A salvação do seu povo e a sua consequente felicidade, estão subordinadas à Glória de Deus (Rm 11.36; 1Co 8.6; Cl 1.16; Ef 1.3-6,11,12).
Paulo, escreve:
O mistério que estivera oculto dos séculos e das gerações; agora, todavia, se manifestou aos seus santos; aos quais Deus quis dar a conhecer qual seja a riqueza da glória deste mistério entre os gentios, isto é, Cristo em vós, a esperança da glória; o qual nós anunciamos, advertindo a todo homem e ensinando a todo homem em toda a sabedoria, a fim de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo. (Cl 1.26-28).[10]
A Glória do Pai só se torna visível a nós quando, pela fé, contemplamos o resplendor da Glória de Cristo: O Deus encarnado (Hb 1.3). “Um dos maiores benefícios para um crente neste mundo e no porvir é considerar a glória de Cristo”, escreveu corretamente o puritano John Owen (1616-1683).[11]
Maringá, 15 de outubro de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Santo Agostinho, Questionum in Heptateuchum. 2.73. (https://www.augustinus.it/latino/questioni_ettateuco/index2.htm) (Consulta feita em 12.10.2020).
[2] H.H. Meeter, La Iglesia y El Estado, 3. ed. Grand Rapids, Michigan: TELL., [s.d.], p. 28.
[3] Cf. Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 110.
[4] Vejam-se: J. Calvino, As Institutas, 1.6.4; João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 3.15), p. 98; Confissão de Westminster, I.1.
[5] “Se o conhecimento de Deus foi revelado por ele mesmo em sua palavra, ele não pode conter elementos contraditórios ou estar em conflito com aquilo que se sabe de Deus a partir da natureza e da história. Os pensamentos de Deus não podem se opor uns aos outros e, assim, necessariamente formam uma unidade orgânica” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 44).
[6] Cf. B.B. Warfield, A Inspiração e autoridade da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 60ss.
[7]I. Calvini: In: Herman J. Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0. Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 26, col. 281. Do mesmo modo: João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 300-301; João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.21), p. 63; John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 1, p. 64. Vejam-se também as definições de Warfield e Berkhof (B.B. Warfield, The Biblical Idea of Revelation: In: The Inspiration of the Bible, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (The Work’s of Benjamin B. Warfield), 2000 (Reprinted), v. 1, p. 6; L. Berkhof, Teologia sistemática, Campinas, SP: Luz para o Caminho, 1990, p. 39).
[8] D.M. Lloyd-Jones, Sermões Evangelísticos, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1989, p. 30.
[9]J.I. Packer, O Plano de Deus,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (s.d.), p. 14-15.
[10]Leia as perguntas 1 e 2 do Catecismo Menor de Westminster.
[11]John Owen, A Glória de Cristo,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1989, p. 13.