A Pessoa e Obra do Espírito Santo (207)
3.6. O Exercício da disciplina paternal de Deus
A disciplina divina revela que pecamos, o amor de Deus Pai para com os seus filhos e, também, o seu propósito santo e glorioso para com os seus amados.
Jesus disse: “Eu repreendo (e)le/gxw) e disciplino (paideu/w) a quantos amo. Sê, pois, zeloso, e arrepende-te” (Ap 3.19). “A disciplina é bênção de Deus e um testemunho do Seu amor, como diz a Escritura”, exulta Calvino.[1] A ausência da disciplina de Deus quando pecamos, significaria a nossa não filiação. Observem o que diz o escritor de Hebreus:
5Filho meu, não menosprezes a correção (paidei/a) que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és reprovado (e)le/gxw = “repreendido”, “refutado”); 6 porque o Senhor corrige (paideu/w) a quem ama (a)gapa/w) e açoita (mastigo/w)[2] a todo filho a quem recebe (parade/xomai).[3]7É para disciplina (paidei/a) que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que filho há que o pai não corrige (paideu/w)? 8 Mas, se estais sem correção (paidei/a), de que todos se têm tornado participantes, logo, sois bastardos (*no/qoj = ilegítimo) e não filhos. (Hb 12.5-8).
A educação significa também “disciplina”. Deus muitas vezes usa deste recurso para nos educar, a fim de que sejamos salvos. A disciplina de Deus tem como meta o nosso futuro.[4] Paulo diz: “Mas, quando julgados, somos disciplinados (paideu/w)pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo” (1Co 11.32). (Tratei deste assunto quando falei do arrependimento).
Na educação divina (disciplina), vemos estampada a sua graça que atua de forma pedagógica: “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos (paideu/w)para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosamente” (Tt 2.11-12).
As aflições corretamente compreendidas podem ser instrumentos utilíssimos para a prevenção e correção de nossos desvios espirituais.
O que a Palavra de Deus nos mostra, e por certo temos confirmado isto em nossa experiência, é que buscamos a Deus mais intensamente em meios às aflições: “Estou aflitíssimo (hfnf(), vivifica-me, Senhor, segundo a tua palavra” (Sl 119.107).“Antes de ser afligido (hfnf(), andava errado, mas agora guardo a tua palavra”(Sl 119.67).
O coração contrito – demonstra Moisés – aprende com a disciplina do Senhor e se alegra por Deus tê-lo afligido: “Alegra-nos por tantos dias quantos nos tens afligido (hfnf(), por tantos anos quantos suportamos a adversidade” (Sl 90.15).
O desejo de Deus é a restauração de seus filhos. Neste sentido, Paulo recomenda ao jovem Timóteo como deveria agir com aqueles que se opunham à mensagem do Evangelho:
Disciplinando (paideu/w = “ensinando”, “instruindo”) com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade, mas também o retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele, para cumprirem a sua vontade. (2Tm 2.25-26).
Os filhos de Deus, quando pecam, são disciplinados pelo próprio Deus, que assim age para que, arrependidos, abandonem a sua prática pecaminosa e se voltem para Ele, a fim de que se tornem “participantes da sua santidade” (Hb 12.10).
A disciplina de Deus é sempre pedagógica nunca vingativa; nela está embutida a ideia de recuperação, de restauração do filho amado. Deus visa nos conduzir ao crescimento, ao amadurecimento espiritual, à santidade, em outras palavras, à comunhão com Ele mesmo.
Moisés, compreendendo bem a “didática” de Deus, diz ao povo:
Recordar-te-ás de todo o caminho, pelo qual o Senhor teu Deus te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar (hfnf(),[5] para te provar, para saber o que estava no teu coração (לבב) (lebab), se guardarias ou não os seus mandamentos. Ele te humilhou (hfnf(), e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não conheceste, nem teus pais o conheceram, para te dar a entender que não só de pão viverá o homem, mas de tudo o que procede da boca do Senhor, disso viverá o homem. (Dt 8.2-3. Do mesmo modo, Dt 8.16)(Vejam-se: Sl 102.23; Is 64.12; Lm 3.33).
O salmista, fazendo o retrospecto da sua vida, pôde, pelo Espírito, narrando a sua experiência, reconhecer: “Foi-me bom ter eu passado pela aflição (hfnf(), para que aprendesse (למד)(lâmad) os teus decretos” (Sl 119.71).
Calvino aplica: “E assim somos admoestados quanto ao fato de que é um exercício muitíssimo proveitoso evocar amiúde à memória os castigos com que Deus nos aflige em decorrência de nossos pecados”.[6]
Do mesmo modo, Ezequias, após ter se restabelecido de sua doença mortal: “Eis que foi para minha paz que tive eu grande amargura; tu, porém, amaste a minha alma e a livraste da cova da corrupção, porque lançaste para trás de ti todos os meus pecados” (Is 38.17).
Calvino corretamente entende que a disciplina divina revela a sua preocupação com a nossa salvação: “Pois embora seja possível que Ele nos castigue, todavia não nos rejeita imediatamente, senão que, ao contrário, dessa forma testifica que nossa salvação é o objeto do seu cuidado”.[7]
Salomão exorta: “O temor do Senhor é o princípio do saber, mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino (LXX: paidei/a)” (Pv 1.7; Vd. Pv. 9.10; 15.33; Sl 111.10).“Ouvi o ensino (LXX: paidei/a), sêde sábios, e não o rejeites” (Pv 8.33).
Calvino conclui:
Os eleitos, tanto quanto os réprobos, estão sujeitos aos castigos temporários que pertencem somente à carne. A diferença entre os dois casos está unicamente no resultado; pois Deus converte aquilo que em si mesmo é um emblema de sua ira em meios de salvação de seus próprios filhos.[8]
Quando ficamos sabendo que os castigos de Deus são açoites paternais, não é nosso dever tornar-nos filhos dóceis, em vez de, resistindo, imitar aqueles para os quais já não há esperança, endurecidos que estão por suas más obras? Estaríamos perdidos, se o Senhor não nos puxasse para Si por meio dos seus corretivos quando caímos.[9]
Maringá, 04 de junho de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]A distinção completa feita por Calvino neste contexto é muito interessante: “Vamos aqui referir-nos a todas as punições em geral com a palavra juízo. Este nós dividiremos em duas espécies, quais sejam, o juízo de vingança ou vindicação, e o juízo de correção ou disciplina. Pelo juízo de vindicação o Senhor pune de tal forma os Seus inimigos que demonstra a Sua ira contra eles para pô-los a perder, destruí-los e reduzi-los a nada. Portanto, trata-se de vingança ou vindicação de Deus quando a punição que Ele envia vem junto com a Sua ira. Pelo juízo de correção ou disciplina Ele não pune com fúria e não castiga para pôr a perder ou para humilhar as pessoas. Por isso, se quisermos falar em termos próprios, essa forma de punição não deve ser chamada vingança ou vindicação, mas admoestação e repreensão. Um pertence a um juiz, o outro a um pai. Porque o juiz, ao punir um malfeitor, pune a sua falta e o seu malefício. Já um pai, ao corrigir o seu filho, não tem por objetivo vingar a falta que ele cometeu, mas, antes, procura ensiná-lo e torná-lo mais prudente no futuro” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.5), p. 174). (Veja-se também: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2 (Sl 41.1), p. 240-241). “A disciplina é uma evidência segura da filiação do crente e do amor de Deus” (V.R. Edman, Disciplina: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 476).
[2] Com a única exceção deste texto a palavra é sempre empregada literalmente no Novo Testamento. (MT 10.17; 20.19; 23.34; Mc 10.34; Lc 18.33; Jo 19.1). Aqui (Hb 12.6) a temos de forma figurada, indicando a instrução, o treinamento que Deus como Pai aplica aos Seus filhos para educá-los.
[3] A palavra tem o sentido de receber para si mesmo, envolvendo compromisso com o que recebeu (* Mc 4.20; At 15.4; 16.21; 22.18; 1Tm 5.19; Hb 12.6).
[4]Veja-se: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.5), p. 177.
[5] A palavra hebraica (hfnf() (‘ãnãh) tem o sentido de “aflito”, “oprimido”, com o sentimento de impotência, consciente de que o seu resgate depende unicamente da misericórdia de Deus. Esta palavra é contrastada com o orgulho, que se julga poderoso para resolver todos os seus problemas, relegando Deus a uma posição secundária, sendo-Lhe indiferente.
hfnf( (‘ãnãh) apresenta também a ideia de ser humilhado por outra pessoa: (Gn 16.6; 34.2; Ex 26.6; Dt 22.24,29; Jz 19.24; 20.5).
[6]João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 38), p. 176.
[7]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 79.10), p. 259.
[8] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 3, (Sl 79.1), p. 250.
[9]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17), p. 204.