A Pessoa e Obra do Espírito Santo (176)
6.3.5. Arrependimento para a vida (Continuação)
A Lei de Deus e a nossa miséria
Em certa ocasião, provavelmente entre a primeira (At 28) e a segunda prisão de Paulo, período não coberto pelo livro de Atos, Paulo pede a Timóteo que permaneça com os efésios justamente porque havia alguns supostos mestres com ensinos heterodoxos (1Tm 1.3). Entre eles, havia aqueles que usavam a Lei de modo ilegítimo, alvoroçando-se como prodigiosos mestres da lei porém, nada entendendo, exceto de seu grande ego que os permitiam fazer afirmações ousadas, como quem tem grande domínio do assunto. No entanto, eles estavam perdidos no cipoal de sua ignorância ignorada. Assim, propunham o cumprimento da lei como meio de salvação, tornando a salvação uma questão de merecimento (1Tm 1.3-8).
Paulo então argumenta que a Lei é boa (1Tm 1.8). Ela nos foi dada para o nosso bem. Ela se tornou maldição devido ao nosso pecado. A quebra da Lei fez com que merecêssemos o justo castigo. Aliás, a Lei precisa ser enfatizada para que o homem, por graça, se disponha a ouvir o Evangelho.Sem a Lei, a impressão que cultivamos, é a de que temos uma vida correta e satisfatória, de nada precisamos, muito menos, de salvação.
Sem a consciência do pecado não há Evangelho. Somente o Evangelho trata o pecado com seriedade.[1] A Lei é o Evangelho ainda que não em sua plenitude. Contudo, sem a Lei não há consciência do pecado e, por isso mesmo, a convicção da necessidade de salvação.
É natural que os homens se inclinem prazerosamente para os ensinamentos que falam de suas virtudes e capacidade.[2] “O Cristianismo é a religião do coração ferido”.[3]
O homem é hábil em buscar “uma capa e subterfúgio para seu pecado”.[4] Ou, quem sabe, podemos nutrir até alguma noção sobre pecado, contudo, tendemos a pensar que isso é coisa praticada por pessoas ignorantes, deste modo, o conhecimento, por si só, nos liberta desta prática, supomos.
Em geral a mente secular é profundamente otimista em relação às suas potencialidades. Portanto, falar de pecado é algo que não encontra tão facilmente ouvidos prazerosos ou mesmo atentos. Daí, uma tendência comum é a tentativa de suavizar esta doutrina, mudando nomes, perspectivas ou simplesmente silenciado a respeito.
Dentro de uma perspectiva mais filosófica, tenta-se driblar a real questão por meio da amenização da realidade com a apresentação do perdão, como se a noção de perdão, por si só, trouxesse alívio, enquanto a proclamação da realidade do pecado assustasse as pessoas, as afastassem da mensagem do Evangelho. Pois bem, talvez isso seja assim no campo especulativo onde o pecado e o perdão são apenas conceitos vagos sobre os quais reflito por meio de uma análise fenomenológica, não me importando com a sua essência e fundamentação teológica.
Deste modo, o que importa é a percepção subjetiva do conceito, não a veracidade e implicações dos fatos. Neste sentido, recordo-me da declaração de Erasmo de Roterdã (1466-1536): “Por certo são numerosos e fortes os argumentos contra a instituição da confissão pelo próprio Senhor. Mas como negar a segurança em que se encontra aquele que se confessou a um padre qualificado?”.[5]
Na realidade, a Lei de Deus, como que por um espelho, reflete a nossa miséria espiritual resultante de nossa total incapacidade de cumprir as exigências divinas. O confronto com a Lei de Deus é algo profundamente angustiante e destruidor de alguma presunção orgulhosamente autônoma.
A Lei de Deus não afaga as nossas pretensões entusiasticamente egocêntricas, antes, revela as nossas imperfeições. Via-nos saciados e ricos, com trajes finos e elegantes. A Lei vem nos mostrar que estamos famintos, carentes e nus. As nossas vestes autônomas – com todos seus valores agregados por marcas, etiquetas e nomes exóticos – só servem para certificar de forma eloquente a nossa nudez. Não passam de folhas arrancadas às pressas de um jardim já corrompido pelo pecado. Evidenciam, às vezes, de modo abrupto, as nossas imperfeições. Como tratar consciente e eficazmente de um mal não percebido? A Lei coloca em destaque a nossa condição de pecador, revelando de forma contundente os nossos pecados.
Por isso, entendemos que somente pela graça, por meio da Lei, podemos ter uma clara consciência de nossa pecaminosidade ativa e concreta e de sua afronta a Deus.[6]
Ter consciência do pecado significa reconhecer o quão urgentemente precisamos de perdão. O Evangelho só se torna subjetivamente necessário – enquanto na realidade ele é urgentemente necessário – quando as pessoas percebem, por Deus, a sua necessidade.
Enquanto isso não acontecer, ele soará sempre como algo descartável. “Não podemos ser cristãos sem convicção do pecado. Ser cristão significa que compreendemos que somos culpados diante de Deus e que estamos sob a ira de Deus”, resume Lloyd-Jones.[7]
A Boa Nova de salvação engloba o pecado, as suas consequências e a libertação de suas mazelas pela graça de Deus. Por isso é que podemos dizer que a Lei é graça.
Maringá, 04 de maio de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Veja-se: J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 69ss.
[2]Cf. João Calvino, As Institutas,II.1.2.
[3] J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, p. 71.
[4]João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 105.6), p. 671.
[5] Erasmo, Opera Omnia, Leyde, 1704, v, col. 145-6, Apud Jean Delumeau, A Confissão e o Perdão: As Dificuldades da Confissão nos Séculos XIII a XVIII, São Paulo: Companhia das Letras, 1991,p. 37. Em outro lugar, também indagou: “Por que se dar ao trabalho de confessar seus pecados a outro ser humano apenas pelo fato de ser um sacerdote, quando pode confessá-los diretamente a Deus?” (Apud Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005,p. 84).
[6] “É mister graça e iluminação espiritual para crermos que nossos pecados são um problema sério aos olhos de Deus, conforme a Bíblia nos diz. Precisamos orar para que Deus nos torne humildes e dispostos a aprender, quando estudamos esse tema” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 63. Ver também p. 70s).
[7]D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 227.