A Pessoa e Obra do Espírito Santo (131)
6.3.2.4. É graciosa e incondicional
Ora, ninguém houve nunca, tão insano de mente, a ponto de dizer que os méritos, quanto ao ato do Predestinador, fossem a causa da divina predestinação. – Tomás de Aquino (1225-1274).[1]
Analisando a bem-aventurança da confiança em Deus, Calvino acentua o ato antecipatório e gracioso de Deus em nos atrair a si:
É em razão de ser misericordioso que Deus primeiro nos recebe em sua graça, e então prossegue nos amando.[2]
É preciso presumir-se que nós, que outrora éramos por natureza estranhos em relação a Deus, fomos aproximados dele pelo exercício de Seu favor. Aproximamo-nos dele, não por havermos antecipado Sua graça e vindo a Ele movidos por nós mesmos, mas porque, em Sua condescendência, estendeu Sua mão até ao próprio inferno para nos alcançar. Falando com mais propriedade, Ele primeiro nos elege, e a seguir testifica de Seu amor, nos chamando.[3]
A eleição é causa de nossa salvação, não o seu fruto.[4] Calvino considera pueril e sofístico o argumento que diz que fomos eleitos porque Deus previu que seríamos dignos.[5] Em outro lugar, conclui: “Se porventura Deus escolheu uns e rejeitou outros, em consonância com sua previsão, se serão dignos ou não da salvação, então o galardão das obras já foi estabelecido, e a graça de Deus jamais reinará soberana, mas será apenas uma metade de nossa eleição”.[6]
A eleição não é condicionada ou dependente de “boas obras” nossas, nem de fé ou mesmo, de previsão de fé, mas sim do beneplácito de Deus (At 13.48; Rm 9.11,16,23; 11.4-7; Ef 1.7,12; 2Tm 1.9; 1Pe 1.2).[7]
Notemos que, se a fé e as obras são resultados da eleição, obviamente, elas não podem ser a condição de nossa salvação (At 15.11; 1Co 4.7; Ef 2.8-10).[8] Na realidade, “tanto a fé quanto as boas obras são uma resposta à graça e um dom desta”, assevera Veith.[9]
Se Deus previsse fé, como “prevê” todas as coisas – aqui estou me valendo de uma categoria humana bastante limitada –, a fé ainda assim não seria meritória, visto que a fé que Deus “preveria” teria sido dada por Ele mesmo.
“Se as pessoas foram eleitas porque Deus sabia que elas iam crer,[10] por que então precisavam ser eleitas? Os que têm fé hão de ser salvos, de qualquer modo! Se a fé já existe, a eleição é desnecessária”, conclui Booth (1734-1806).[11] Ou, seguindo o argumento combatido por Agostinho (354-430), neste caso, tais pessoas mereceriam ser eleitas.[12]
Por outro lado, se Deus nos escolheu para sermos santos (Ef 1.4; 2Ts 2.13), é porque de fato não éramos.[13] Logo, não foi devido às nossas obras que Deus nos escolheu.
A declaração de Paulo elimina qualquer centelha de orgulho por parte do suposto eleito (1Co 1.26-31). “A graça não teria razão de ser se os méritos a precedessem. Mas a graça é graça. Não encontrou méritos, foi a causa dos méritos. Vede, caríssimos, como o Senhor não escolhe os bons mas escolhe para fazer bons”, orienta pastoralmente Agostinho (354-430).[14]
Qualquer tentativa de se encontrar um motivo em nós que “justifique” a escolha de Deus, além de limitarmos a liberdade de Deus, conforme vimos, equivale a negar os ensinamentos da Palavra, colocando a nossa salvação condicionada a algum mérito humano. Aliás, merecimento humano e graça são conceitos excludentes (Rm 11.6). O amor gracioso de Deus é proveniente dele mesmo sem qualquer estímulo externo que o faça surgir ou se manifestar: o seu amor é soberano e santo. Deus não se fez cativo de seu amor. O amor de Deus está sempre em perfeita harmonia com seus demais atributos.
A nossa salvação, fruto da nossa eleição, é por Deus, porque é Ele quem faz tudo. Por isso, o homem não pode criar a graça, antes, ela lhe é outorgada, devendo ser recebida sem torná-la vã em sua vida (2Co 6.1; 8.1/1Co 15.10). (Vejam-se: Dt 7.6-8; At 15.11; Ef 2.8-10; Tg 2.5).
“Que outra coisa poderá Deus encontrar em nós, que o induza a amar-nos, a não ser aquilo que ele já nos deu?”, indaga Calvino.[15] “Deus ama os homens porque escolheu amá-los (…) e nenhum motivo para o seu amor pode ser dado salvo o seu soberano prazer”, interpreta Packer.[16] (Dt 7.7-8; Sl 144.3; Tt 3.3-7).
Em outros lugares, Calvino (1509-1564) dá um golpe definitivo em todo e qualquer conceito de merecimento:
É preciso lembrar que sempre que atribuímos nossa salvação à graça divina, estamos confessando que não há mérito algum nas obras; ou, antes, devemos lembrar que sempre que fazemos menção da graça, estamos destruindo a justiça [procedente] das obras.[17]
As pessoas são muitíssimo insensatas ao suporem que existe algum mérito ou dignidade nos homens que preceda a eleição divina.[18]
Que ninguém conclua que os eleitos o são em virtude de serem eles merecedores, ou porque de alguma forma conquistaram para si o favor divino, ou ainda porque possuíam alguma semente de dignidade pela qual Deus pôde ser movido a agir. A ideia simples, que devemos levar em conta, é esta: o fato de sermos contados entre os eleitos independe tanto de nossa vontade quanto de nossos esforços – pois o apóstolo substituiu correr por esforço ou diligência. Ao contrário, deve ser atribuído totalmente à benevolência divina, a qual, por si mesma, recebe graciosamente aqueles que nada empreendem, nem se esforçam, nem mesmo tentam.[19]
Em toda a Escritura se faz evidente que não existe outra fonte de salvação exceto a graciosa mercê divina.[20]
Se ele houvesse achado algum mérito ou valor, se ele houvesse achado qualquer disposição, bondade ou virtude, ou, em suma, se ele houvesse achado uma gota de algo de que gostasse e aprovasse, não nos teria elegido em si mesmo, mas nós próprios teríamos tido alguma parceria com ele.[21]
Portanto, sempre que o querer divino é mencionado acima, isso se dá para mostrar que os homens não podem, de si próprios, anteciparem-se em coisa alguma. Sem embargo, Paulo registra aqui um termo de superabundância e diz, conforme o bom prazer; como se tivesse dito: “É verdade que o querer de Deus é a causa de nossa salvação; não devemos partir para cá e para acolá procurando outras razões ou meios para ela. Entretanto, visto que os homens são tão ingratos e iníquos que sempre querem obscurecer a glória de Deus e continuamente tomarem para si mesmos mais do que lhes pertence se não forem persuadidos o bastante da vontade de Deus, que entendam que ela vem do bom prazer de sua vontade, isto é, de um querer livre que não depende de coisa alguma senão de si mesmo, nem tem qualquer consideração por um modo ou por outro, mas condescende em nos escolher livremente porque se agrada de assim fazer”.[22]
Não há merecimento algum em nós. A eleição eterna é o suprassumo da bem-aventurança de Deus que nos é outorgada (Sl 65.4). Em duas palavras o induza: É graça.
Maringá, 9/10 de março de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2. ed. Porto Alegre, RS.; Caxias do Sul, RS.: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Livraria Sulina Editora; Universidade de Caxias do Sul, 1980, v. 1, I, Q. 23, Art. 5, p. 236. Para um exame minucioso e bem documentado concernente à existência da doutrina da predestinação já entre os Pais da Igreja e diversos reformadores, veja-se: Harry Buis, Historic Protestantism and Predestination, Eugene: Oregon: Wipf & Stock Publishers, 2007, 142p.
[2] João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.2), p. 27.
[3]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 65.4), p. 612.
[4] “A eleição não foi condicionada pela previsão dos méritos humanos, nem ainda pela previsão de sua fé. Ela é a raiz da salvação, não seu fruto” (W. Hendriksen, Efésios, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, (Ef 1.4), p. 99).
[5] Ver: João Calvino, Efésios, (Ef 1.4), p. 24-25.
[6] João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 11.6), p. 389. Vejam-se também: As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v.. 3, (III.8), p. 42; Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2001, p. 738-739.
[7]Vejam-se, Cânones de Dort, I.9,10 e João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 8.29), p. 295 e (Rm 11.6). p. 388-389; John Murray, Romanos, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2003. (Rm 8.29), p. 343-348. Kuiper observa corretamente: “A eleição foi inteiramente incondicional. Não foi condicionada à fé e à obediência do homem. Deus não escolheu os pecadores para a vida eterna dependendo se eles iam crer e obedecer. Nem escolheu certas pessoas para a salvação, porque previu que iriam crer e obedecer” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 57).
[8] “Mas cremos que fomos salvos pela graça do Senhor Jesus, como também aqueles o foram” (At 15.11). “Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (1Co 4.7). “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; 9 não de obras, para que ninguém se glorie. 10 Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.8-10).
[9]Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 43.
[10] Esta era a compreensão Pelagiana combatida por Agostinho. Ver: S. Agostinho, A Graça (II),São Paulo: Paulus, 1999, p. 196ss.
[11] Abraham Booth, Somente pela Graça, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1986, p. 18.
[12]S. Agostinho, A Graça (II),São Paulo: Paulus, 1999, p. 194.
[13] Ver: S. Agostinho, A Graça (II),p. 198-199.
[14]St. Augustin, On The Gospel of St. John, Tractate 86.2-3. In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of Christian Church, (First Series), 2. ed. Peabody, Massachusettes:Hendrickson Publishers, 1995, v. 7, (Jo 15.16), p. 353-354. (Quanto aos principais conceitos de Agostinho a respeito deste assunto, Ver: Reinhold Seeberg, Manual de Historia de las Doctrinas,El Paso, Texas; Buenos Aires; Santiago: Casa Bautista de Publicaciones; Editorial “El Lucero”, 1963, v. 1, p. 347ss.
[15] João Calvino, Exposição de Hebreus,(Hb 6.10), p. 159.
[16] J.I. Packer, O Conhecimento de Deus,São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 111. “O perfeito amor de Deus é produzido por Ele mesmo; não depende de coisa alguma de fora dele; é um amor que principia dentro dele e sai para outros” (D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 179).
[17]João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 11.6), p. 389.
[18]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.28), p. 70.
[19]João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 9.16), p. 333.
[20] João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 6.10), p. 158.
[21]João Calvino, Sermões em Efésios, p. 72-73.
[22]João Calvino, Sermões em Efésios, p. 73-74.