A Pessoa e Obra do Espírito Santo (127)
6.3.1.2. Definição da doutrina
Pois a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual não se deixa de pôr coisa alguma necessária e útil de se conhecer, nem tampouco se ensina nada mais além do que se precisa saber.
Portanto, tudo quanto na Escritura se dá a conhecer acerca da predestinação, é preciso cuidar para que disso não privemos os fiéis, a fim de que não pareçamos ou maldosamente defraudá-los da benevolência de seu Deus, ou acusar e escarnecer o Espírito por haver divulgado essas coisas que seria proveitoso fossem suprimidas e mantidas em segredo. Insisto que devemos permitir ao homem cristão abrir a mente e os ouvidos a todas as palavras de Deus que lhe são dirigidas, desde que se faça com esta moderação: que assim que o Senhor haja fechado sua santa boca, também fecha ele atrás de si o caminho à especulação. Aqui está o melhor limite da sobriedade: que ao aprendermos sigamos a Deus, deixando que ele fale primeiro; e se o Senhor deixa de falar, tampouco nós queiramos saber mais, nem avançar mais um passo. – João Calvino (1509-1564).[1]
Tomaremos aqui, a definição clássica, formulada no Sínodo de Dort (1618-1619):[2]
Eleição é o imutável propósito de Deus, pelo qual Ele, antes da fundação do mundo, escolheu um número grande e definido de pessoas para a salvação, por graça pura. Estas são escolhidas de acordo com o soberano bom propósito de Sua vontade, dentre todo o gênero humano, decaído, por sua própria culpa, de sua integridade original para o pecado e a perdição. Os eleitos não são melhores ou mais dignos que os outros, mas envolvidos na mesma miséria.[3]
Podemos dizer que a eleição é o ato eterno de Deus, por meio do qual, Ele decretou – livre, soberana e misericordiosamente – salvar em Cristo Jesus um determinado número de homens – dentre toda a raça humana voluntariamente caída –, aplicando, no decorrer da história a sua graça redentora, os regenerando e capacitando, pelo Espírito Santo, a se arrependerem de seus pecados e a responder com fé, à mensagem redentiva de Cristo, sendo justificados, unidos a Cristo e adotados definitivamente como seus filhos, preservados assim, até o fim.[4]
6.3.1.3. Pressupostos da doutrina da eleição
1) A depravação total do homem
O homem desde a Queda, encontra-se sob o domínio do pecado e, por isso mesmo, é incapaz de responder positivamente ao chamado externo do Evangelho.
O pecado corrompeu o intelecto, a vontade e a faculdade moral de toda a raça humana. Por isso, o homem está morto espiritualmente, sendo escravo do pecado (Gn 6.5; 8.21; Is 59.2; Jo 8.34,43,44 Rm 3.9-12,23; Ef 2.1,5; Cl 1.13; 2.13)[5] e, nada pode fazer – e na realidade nem sequer deseja – para retornar à comunhão perdida. Como disse o Senhor Jesus Cristo: “Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado”. (Jo 8.34) (Vejam-se: Is 64.6; Rm 6.6).
Agora “O homem peca com o consentimento de uma vontade pronta e disposta”, resume Calvino.[6] A depravação total é justamente isto: a contaminação de todas as nossas faculdades pelo pecado. Perdemos totalmente a nossa capacidade de percepção espiritual. As cousas de Deus soam como loucura (1Co 1.18-21; 2.6-8; 12-16).
A nossa lógica tão hábil para desvendar os mistérios do saber e desmantelar sofismas, se mostra totalmente inadequada e incapaz para perceber a realidade da Palavra que nos fala de Deus e do que somos.
“O intelecto do homem está de fato cegado, envolto em infinitos erros e sempre contrário à sabedoria de Deus; a vontade, má e cheia de afeições corruptas, odeia a justiça de Deus; e a força física, incapaz de boas obras, tende furiosamente à iniquidade”, interpreta Calvino.[7]
Ainda que o homem não seja absolutamente mau[8] – não é tão mau quando poderia -, é extensivamente mau – todo o seu ser está contaminado pelo pecado.[9]
O pecado nos domina completamente. Na linguagem inspirada de Isaías, “toda a cabeça está doente e todo o coração enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça não há nele cousa sã, são feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo” (Is 1.5-6).
O pecado só poderá ser compreendido em sua abrangência quando tivermos uma visão correta se seu total domínio sobre o nosso coração, envolvendo o nosso pensar, sentir e agir.[10]
Calvino interpretando Rm 8.7, diz:
Nada, senão a morte, procede dos labores de nossa carne, visto que os mesmos são hostis à vontade de Deus. Ora, a vontade de Deus é a norma da justiça. Segue-se que tudo quanto seja contrário a ela é injusto; e se é injusto, também traz, ao mesmo tempo, a morte. Contemplamos a vida em vão, caso Deus nos seja contrário e hostil, pois a morte, que é a vingança da ira divina, deve necessariamente seguir de imediato a ira divina.
Observemos aqui que a vontade humana é em todos os aspectos oposta à vontade divina, pois assim como há uma grande diferença entre nós e Deus, também deve haver entre a depravação e a retidão.[11]
Com o pecado, o homem tornou-se positivamente mau (Gn 6.5; 8.21; Mt 7.11) e incapaz de:
1) Fazer o Bem: O homem é mau, por isso não pode produzir bons frutos (Jó 14.4; Jr 13.23; Mt 7.17-18; Jo 15.4-5; Rm 3.9-18). Os atos de “bondade” praticados pelo homem natural, são frutos da Graça Comum de Deus, a qual atua sobre todos indistintamente.[12]
2) Entender o Bem: Se Deus não iluminar o homem natural, ele jamais compreenderá a mensagem salvadora do Evangelho: nós um dia fomos salvos, porque Deus abriu os nossos olhos para a Sua Palavra (Jo 1.11; 8.43-44/11Jo 4.5-6; At 16.14; 1Co 2.14; Sl 119.18). O conhecimento que Adão e Eva passaram a ter após o pecado foi, virtualmente diferente (Gn 2.25; 3.7); nada havia ali de um conhecimento salvador.
Calvino (1509-1564) resume:
No tocante ao reino de Deus e a tudo quanto se acha relacionado à vida espiritual, a luz da razão humana difere pouquíssimo das trevas; pois, antes de ser-lhe mostrado o caminho, ela é extinta; e sua perspicácia não é mais digna que a cegueira, pois quando vai em busca do resultado, ele não existe. Pois os princípios verdadeiros são como as centelhas; essas, porém, são apagadas pela depravação da natureza antes que sejam postas em seu verdadeiro uso.[13]
3) Desejar o Bem: O homem natural, além de não fazer e não entender o bem, nem sequer o deseja. A sua vontade está sob o domínio tirânico do pecado e, por isso, quando o homem deseja a Cristo sinceramente, já indica a ação primeira de Deus: a iniciativa é sempre de Deus (Mt 7.18; Jo 3.3; 5.40; Jo 6.44,65; 8.43/15.4-5).
Hodge (1823-1886), diz: “Sua essência está na inabilidade da alma de conhecer, escolher e amar o que é bom espiritualmente, e seu fundamento está nessa corrupção moral da alma que a torna cega, insensível e totalmente adversa para tudo quanto é bom espiritualmente”.[14]
Desta forma, todas as escolhas ‘livres’ do homem natural estão na realidade a serviço do pecado,[15] como escreveu Seaton: “Somos como Lázaro em seu túmulo, mãos e pés amarrados; fomos tomados pela corrupção. Assim como não havia qualquer lampejo de vida no corpo morto de Lázaro, assim também não há ‘centelha interna receptiva’ em nossos corações”.[16]
No entanto, parece-nos pertinente a constatação de Calvino:
Deus, ao criar o homem, deu uma demonstração de sua graça infinita e mais que amor paternal para com ele, o que deve oportunamente extasiar-nos com real espanto; e embora, mediante a queda do homem, essa feliz condição tenha ficado quase que totalmente em ruína, não obstante ainda há nele alguns vestígios da liberalidade divina então demonstrada para com ele, o que é suficiente para encher-nos de pasmo.[17]
Maringá, 04 de março de 2021. Rev. Hermisten Maia Pereira da Cost
[1] João Calvino, AsInstitutas, (2016).III.21.3.
[2] O Sínodo de Dort reuniu-se por autoridade dos Estados Gerais dos Países Baixos, em Dordrecht, Holanda, no período de 13/11/1618 a 9/5/1619, tendo 154 sessões. O Sínodo foi constituído de 35 pastores, um grupo de presbíteros das igrejas holandesas, cinco catedráticos de teologia dos Países Baixos, dezoito deputados dos Estados Gerais e 27 estrangeiros, de diversos países da Europa, tais como: Inglaterra, Alemanha, França e Suíça.
Dort rejeitou os cinco pontos apresentados pelos arminianos, conhecidos como os “Cinco Pontos do Arminianismo”, sustentando que: 1) O homem decaído, em seu estado natural, não tem capacidade alguma para crer no evangelho, tal como lhe falta toda a capacidade para dar crédito à lei, a despeito de toda indução externa que sobre ele possa ser exercida. 2) A eleição de Deus é uma escolha gratuita, soberana e incondicional de pecadores, como pecadores, para que venham a ser redimidos por Cristo, para que venham a receber fé e para que sejam conduzidos à glória. 3) A obra remidora de Cristo teve como sua finalidade e alvo a salvação dos eleitos. 4) A Obra do Espírito Santo, ao conduzir os homens à fé, nunca deixa de atingir o seu objetivo. 5) Os crentes são guardados na fé na graça pelo poder inconquistável de Deus, até que eles cheguem à glória.
Os Cânones de Dort foram aceitos por todas as Igrejas Reformadas como expressão correta do sistema calvinista.
[3] Cânones de Dort, São Paulo: Cultura Cristã, (s.d.), I.7.
[4] “A graça começa, continua e termina a obra da salvação no coração de uma pessoa” (C.H. Spurgeon,Sermões sobre a Salvação,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 45).
[5] “Viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração” (Gn 6.5). “…. o SENHOR (…) disse consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade….” (Gn 8.21). “…. as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2). “Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. (…) Qual a razão por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra. Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.34,43,44). “Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12). “…. todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). “5 Nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, (…) 13 em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; 14 o qual é o penhor da nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória” (Ef 1.5,13-14). “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; (…) e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, —pela graça sois salvos” (Ef 2.1,5). “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor (…). E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos delitos” (Cl 1.13; 2.13).
[6]João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003,Cap. 5, p. 16.
[7]João Calvino, Instrução na Fé, Cap. 4, p. 15.
[8] A.A. Hodge (1823-1886) usa a expressão “inabilidade absoluta”; todavia, a conotação dada por ele, não colide com a nossa, ao afirmarmos que a depravação não é absoluta. (Veja-se: A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata Sanches, 1895, Cap. XX, p. 314).
[9] “Lembremo-nos de que nossa ruína se deve imputar à depravação de nossa natureza, não à natureza em si, em sua condição original, para que não lhe lancemos a acusação contra o próprio Deus, autor dessa natureza” (J. Calvino, As Institutas, II.1.10).
[10] Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 51.5), p. 431. Do mesmo modo MacArthur: “A depravação (…) significa que o mal contaminou cada aspecto da humanidade – coração, mente, personalidade, emoções, consciência, razões e vontade (Cf. Jr 17.9; Jo 8.44)” (John MacArthur, Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 81).
[11] João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 8.7), p. 266-267.
[12] Esta doutrina, que nada mais é do que a compreensão de que o Espírito Santo exerce influência comum sobre os homens em geral, pode ser resumida em três pontos: 1) Uma atitude favorável da parte de Deus para com a humanidade em geral – eleitos e réprobos –, concedendo-lhes os bens necessários à sua existência: chuva, sol, água, alimento, vestuário, abrigo; 2) A restrição do pecado feita pelo Espírito Santo na vida dos indivíduos e na sociedade: “A obra da graça divina se vê em tudo que Deus faz para restringir a devastadora influência e desenvolvimento do pecado no mundo….” (L. Berkhof, Teologia Sistemática,Campinas, SP.; Luz para o Caminho, 1990, p. 436); 3) A possibilidade da aplicação da justiça civil por parte do não regenerado: Aquilo que é certo nas atividades civis ou naturais. No entanto, deve ser dito que esta graça: a) Não remove a culpa do pecado; b) Não suspende a sentença de condenação, portanto, o homem continua sob o juízo de Deus. Deste modo, esta ação do Espírito deve ser distinta da Sua operação efetiva no coração dos eleitos por meio da qual Ele os regenera. (Vejam-se: As Institutas,II.2.16-17,27; II.3.4; L. Berkhof, Teologia Sistemática,p. 433ss.; Charles Hodge, Systematic Theology,GrandRapids, Michigan: Eerdmans, 1986, v. 2, p. 654ss.; A.A. Hodge, Comentario de La Confesion de Fe de Westminster,Barcelona: CLIE., (1987), Cap. X, p.155-156; A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata Sanches, 1895, Cap. XXVIII, p. 420-421; William G.T. Shedd, Systematic Theology,Nashville, Thomas Nelson Publishers, 1980, v. 2, p. 483ss.; R.L. Dabney, Lectures in Systematic Theology,Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1985, Cap. XLVIII, p. 583ss.; P.E. Hughes, Graça: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1990, v. 2, p. 216-217; Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 549-558; D. Martyn Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 34-42; Cornelius van Til, O Pastor Reformado e o Pensamento Moderno, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 23-32; Émile Doumergue, et. al. Calvin and The Reformation: Four Studies. New York: Fleming H. Revell Company, 1909; Abraham Kuyper, Calvinismo,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002; A. Kuyper, Sabedoria e prodígios: graça comum na ciência e na arte. Brasília, DF.: Monergismo, 2018; H. Henry Meeter, La Iglesia e El Estado. 3. ed. Grand Rapids, Michigan: TELL., (s.d.), p. 63-73).
[13]João Calvino, Efésios,(Ef 4.17), p. 134-135. Veja-se: João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.5), p. 36-38.
[14] A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 315.
[15]Veja-se: J.I. Packer, Liberdade: In: J.D. Douglas, ed. ger. O Novo Dicionário da Bíblia,São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 2, p. 930.
[16]W.J. Seaton, Os Cinco Pontos do Calvinismo,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (s.d.), p. 8.
[17]João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 1, (Sl 8.7-9), p. 173-174.