A Pessoa e Obra do Espírito Santo (123)
6.3.1. O Espírito e a nossa eterna eleição[1]
Comparados com os americanos do século XVIII ou do século XIX, os puritanos tinham seguramente uma mentalidade teológica. As doutrinas da queda do homem, do pecado, da salvação, da predestinação, da eleição e da conversão eram o seu alimento e a sua bebida; contudo, o que verdadeiramente os distinguia da época em que viviam era o fato de estarem menos interessados na teologia em si do que na sua aplicação à vida de todos os dias, em especial à sociedade. Do ponto de vista do século XVII, o seu interesse pela teologia era um interesse prático. Estavam menos preocupados em aperfeiçoarem a sua formulação da verdade do que em darem corpo, na sociedade que formavam na América, à verdade que já conheciam. A Nova Inglaterra dos puritanos foi uma nobre experiência de teologia aplicada” – Daniel J. Boorstin (1914-2004)[1]
6.3.1.1. A vocação teológica para o discipulado e ensino
O ensino está associado necessariamente ao aprendizado. Calma! Isso não é tão óbvio quanto parece. Um bom mestre deve continuar sendo um bom discípulo. Mestre pronto, acabado, é uma contradição de termos e, pior, de vivência. Talvez não precisemos fazer cursos de educação continuada mas, certamente, necessitamos transformar a nossa vida em um curso contínuo de aprendizagem.
Quanto mais dispostos a aprender estivermos, mais teremos condições de ensinar com competência, autoridade e modéstia.[2]
Modéstia e ensino
A modéstia será reforçada pela compreensão de que também estamos caminhando no aprendizado[3] e, mais ainda, nas lutas por praticar o que aprendemos. Assim, ainda que por vezes em níveis diferentes, estamos todos aprendendo. O mestre é aquele que aprende e, de repente, ensina. De certo modo, todos somos autodidatas porque tendemos a aprender o que filtramos dos outros, selecionamos e internalizamos.
As palavra do teólogo Witsius (1636-1708) na discurso inaugural na Universidade de Franeker,[4] em 1675 são iluminadoras:
Pois ninguém ensina bem, a menos que tenha primeiro aprendido bem; ninguém aprende bem, a menos que aprenda com objetivo de ensinar, e aprender e ensinar são inúteis e infrutíferos a menos que venham acompanhados de prática.[5]
O trabalho do teólogo, como aquele que fala (logos), a respeito de Deus (Theós), é grandioso e modesto. Grandioso pelo seu tema, a universalidade de seu conteúdo, e sua abrangência de eternidade à eternidade. Deus, o homem em relação a Deus, às suas múltiplas relações na história e, o seu estado definitivo na eternidade. Esse é o escopo da teologia.[6]
Vocação assombrosa
Isso é assombroso. Teologia é uma graça terrificante.[7] O Senhor tremendo (Sl 47.2;145.6)[8] é quem nos chama.[9] O salmista se alegra no temor de Deus, ciente da sua santa majestade: “Porque grande é o SENHOR e mui digno de ser louvado, temível (arey”) (yare) mais que todos os deuses” (Sl 96.4). “Celebrem eles o teu nome grande (lAdG”)(gadol) e tremendo (arey”) (yare), porque é santo (vAdq’) (qadosh)” (Sl 99.3).
O nosso santo temor acompanhado de uma atitude condizente, alegra o Senhor. A Palavra nos ensina que Deus abençoa os que o temem: “Ele abençoa os que temem (arey”) (yare) o SENHOR, tanto pequenos como grandes” (Sl 115.13).
Por outro lado, mesmo havendo teólogos geniais – pelo que devemos ser gratos a Deus –, este não é o ponto essencial. O que, deixando-me um pouco aliviado, me permite ficar mais à vontade: A função do teólogo não é revelar mistérios ou, esclarecer o não-revelado, mas, sermos fiéis ao que Deus nos confiou em sua Palavra (1Co 4.1-2). Não somos videntes nem intérpretes juramentados de Deus. Teologia completa e definitiva é uma contradição e ilusão pecaminosa.
Aprendi a não amar pensar sozinho e, ao mesmo tempo, se estiver convencido de algo, a não temer pensar sozinho. O amar pensar solitariamente, pode nos conduzir a armadilhas, esquisitices teológicas arrogantes e presunçosas que em nada edificam. Por outro lado, temer pensar sozinho pode obstruir o caminho de uma compreensão mais ampla da Palavra e, consequentemente, de nos edificar com isso bem como à Igreja de Deus.
Isso faz-me lembrar de Lutero na Dieta de Worms (1521) quando diante do Imperador, dos príncipes e de clérigos, é pressionado a negar a sua fé. Depois de pedir algumas horas para pensar, argumenta e, por fim, estabelece o padrão de seu pensamento e fé: “… estou vencido pelas Escrituras por mim aduzidas e minha consciência está presa nas palavras de Deus – não posso nem quero retratar-me de nada, porque agir contra a consciência não é prudente nem íntegro”.[10]
Os riscos da teologia
A teologia é sempre descritiva das Escrituras esforçando-se por relacionar as partes com o todo a fim de alcançar, por graça, um conhecimento mais completo e exaustivo do que Deus nos confiou em sua Palavra.
Em nosso trabalho, corremos o risco de desprezar a teologia, por meio de uma falta de seriedade para com a Palavra de Deus ou, de valorizá-la por uma perspectiva errada, atraindo para nós os holofotes, desejando cada vez mais sermos aceitos e reverenciados devido à nossa inteligência, eloquência e, por vezes, pela ousadia de nossas afirmações.[11] Nos esquecendo, de que a grandeza de nossa vocação está na imensa misericórdia de Deus. O sucesso no desempenho está na superabundante graça que nos capacita constantemente, nos ensinando, preservando, sustentando, disciplinado, consolando e estimulado.
Essas considerações são altamente estimulantes em nosso ministério: Deus nos chama por graça e nos preserva.
Maringá, 27 de fevereiro de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] O que vou tratar nesse capítulo, mais especificamente quando adentrar à doutrina da eleição, além de material inédito, consiste em uma ampliação de determinados pontos, síntese e junção de outros que estão em meus livros: Hermisten M.P. Costa, Efésios: O Deus Bendito, São Paulo: Cultura Cristã, 2011 e, principalmente, O Caminhar dos Eleitos: Um estudo histórico-exegético da doutrina bíblica da eleição, Eusébio, CE.: Peregrino, 2020.
[2] Daniel J. Boorstin, Os Americanos: A experiência colonial, Lisboa: Gradiva, 1997, p. 17. Apenas uma curiosidade. Boorstin, com esse livro ganhou o Prêmio Pulitzer de História em 1974. (https://www.pulitzer.org/prize-winners-by-category/220) . Consulta feita em 27.02.2021.
[3]Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 45.
[4] Como bem sumariou Carl Rogers (1902-1987): “Aquele que aprende está unicamente interessado em continuar a aprender” (Carl R. Rogers, Tornar-se pessoa, São Paulo: Martins Fontes, 1977, p. 255).
[5] Universidade na qual estudara Descartes (1599-1650), uns 45 anos antes.
[6] Herman Witsius, O Caráter do Verdadeiro Teólogo, São Paulo: Teocêntrico Publicações, 2020. Edição do Kindle. Localização: 142-143).
[7] “No círculo das ciências, a teologia tem direito a um lugar de honra, não por causa das pessoas que pesquisam essa ciência, mas em virtude do objeto que ela pesquisa; ela é e continuará sendo – desde que esta expressão seja entendida corretamente – a rainha das ciências” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 53). “A teologia e a dogmática, também, existem por causa de Deus” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, v. 1, p. 46).
[8] Após escrever isso, recordei-me do já mencionado discurso inaugural que Witsius (1636-1708) ministrou aos seus alunos, e a uma audiência de toda a província, em Franeker, em 1675: “Eu sou ao mesmo tempo assombrado por um grande e bem fundamentado medo de falhar em cumprir exatamente o trabalho que me foi designado” (Herman Witsius, O Caráter do Verdadeiro Teólogo, São Paulo: Teocêntrico Publicações, 2020.(Locais do Kindle 11-12). Edição do Kindle. Localização: 91-92).
[9] “Pois o SENHOR Altíssimo (!Ayl.[,) (elyon) é tremendo (arey”) (yare), é o grande rei de toda a terra” (Sl 47.2). “Falar-se-á do poder dos teus feitos tremendos (arey”) (yare), e contarei a tua grandeza (hL’WdG>) (gedullah)” (Sl 145.6).
[10] “É somente pela vocação divina que os ministros da Igreja se tornam legalmente efetivados. Quem quer que se apresente sem ser convidado, seja qual for a erudição ou eloquência que o mesmo possua, esse não recebe autoridade alguma, porquanto não veio da parte de Deus” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.31), p. 71). Veja-se também: D.M. Lloyd-Jones, Discurso feito em setembro de 1967 numa conferência estudantil no Seminário Teológico de Westminster, em Filadélfia. In: Discernindo os Tempos, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1989, p. 274-275.
[11]Martinho Lutero, Discurso do Dr. Martinho Lutero Perante o Imperador Carlos e os Príncipes na Assembleia de Worms – Quinta-feira depois de Misericordias Domini. In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas,São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.: Sinodal; Concórdia, 1996, v. 6, p. 126. McGrath está correto ao afirmar: “Permitir que novas ideias e valores tornem-se controlados por qualquer coisa ou pessoa que não a autorrevelação de Deus na Escritura é adotar uma ideologia, em vez de uma teologia; é tornar-nos controlados por ideias e valores cujas origens se acham fora da tradição cristã – e potencialmente tornar-nos escravizados por eles” (Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 53).
[12] “Se somos bem-sucedidos de uma maneira menor ou maior, louvemos a Ele por isso. (…) Devemos guardar nosso coração para não contaminar nosso serviço regozijando-nos em nossa própria glória demonstrada no sucesso em vez de na glória de Deus” (Vern S. Poythress, O Senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, em toda a vida e de todo o nosso coração, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 141).