A Pessoa e Obra do Espírito Santo (117)
6.2.6. Na sua obra sacrificial (Continuação)
Jesus Cristo foi o único homem que não precisava padecer, todavia, Ele voluntariamente o fez por nós (Jo 10.17,18; Hb 2.9), deixando-nos exemplo (1Pe 2.21), a fim de nos conduzir a Deus em santidade (Hb 13.12; 1Pe 3.18).
Somos muitas vezes levados a pensar que os sofrimentos de Cristo se deram apenas no Calvário; quando assim imaginamos, nos esquecemos da extensividade terrena dos seus sofrimentos, como bem disse Calvino (1509-1564): “Verdadeiramente, se possa dizer que, por quanto tempo habitou a terra, não só foi assenhoreado por cruz perpétua, mas até mesmo toda sua vida outra coisa não foi senão uma espécie de cruz perpétua”.[1]
O que já foi estudado neste capítulo serve para realçar ainda mais a extensão e intensidade dos seus sofrimentos; basta que recordemos o fato de que o Logos eterno sempre soube dos seus futuros sofrimentos na carne (1Pe 4.1).
Durante todo o seu Ministério terreno, Jesus convivia numa atmosfera pecaminosa e hostil. Satanás o tentou por mais de uma vez, inclusive usando o próprio Pedro (Lc 4.1-13; Mt 16.21-23; Hb 2.18). A incredulidade do povo e até mesmo de seus familiares (Mt 17.17; Jo 7.5). As armadilhas das autoridades judaicas (Jo 11.47-52). A traição de Judas, a omissão de Pedro e o abandono de todos os seus discípulos (Mt 26.14-16,20-25,35,56; Jo 18.1-11; 15-18; 25-27). O tipo de morte que teria, fazendo-se maldição em nosso lugar (Gl 3.13,14), etc. Todos estes elementos contribuíram para intensificar a sua dor e sofrimento.
Jesus Cristo morreu como um maldito condenado, sendo santo (2Co 5.21). Morreu em sacrifício por aqueles que nem ainda criam nele (Jo 1.29/Jo 17.20,21; 1Co 5.7; Ef 5.2; Hb 7.14,27; 9.23,26; 10.12). Jesus Cristo tornou-se responsável por nós, levando sobre si os nossos pecados que lhe foram imputados. A justiça condenatória de Deus caiu sobre Ele.
Os sofrimentos de Cristo foram físicos e espirituais (Mt 26.36-42; 1Pe 4.1); no Getsêmani, horas antes do seu martírio, Ele sente o peso ainda mais forte da aproximação da experiência mais temida: a separação de Deus, que é a morte; a ira de Deus sendo derramada sobre Ele, o Justo (Is 53.3),[2] como representante do Seu povo. Todavia, Jesus se abandonou na vontade do Pai a qual é a vontade determinante para Ele e para o seu Ministério.
Na véspera da sua autoentrega, Jesus Cristo se despede de seus discípulos, falando do Consolador e das tribulações pelas quais passariam (Jo 13-16).
Há aqui uma transição muito importante e significativa: O Senhor após falar de seu sofrimento, considera-o como algo vencido. Isso deve servir de estímulo aos seus discípulos: “Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33).
Jesus agora faz esta oração intercessória por todos os seus discípulos; tanto por aqueles imediatos, como também por nós (Jo 17.20-21). Devemos destacar que quem está orando é o Filho de Deus. O Filho eterno de Deus ora por nós. Ele está atento às nossas necessidades e ao cumprimento de suas promessas em nossa vida.[3]
Esta oração está relacionada a todas as promessas anteriores. É, portanto, a conclusão natural de sua conversa com os discípulos.[4] João mesmo faz a transição: “Tendo Jesus falado estas cousas levantou os olhos ao céu” (Jo 17.1).[5] Aqui há um sentido espiritual. Ele ora ao Pai que está nos céus. Os discípulos são testemunhas desta oração extremamente pessoal e intransferível de seu Senhor.
Nesta oração, vemos de forma indelével a realidade da divindade e humanidade de Jesus Cristo. Ele tem a perfeita consciência disto. Ora ao Pai como qualquer ser humano pode fazer. No entanto, o que diz, somente Ele poderia de fato dizer. Jesus Cristo é perfeitamente o Deus Encarnado.
O nosso Senhor tinha diante de si a perfeita compreensão e domínio de sua missão e do tempo certo. Ele conhecia perfeitamente a sua agenda porque, na realidade, era o senhor dela. Sabia a sua hora: “Tendo Jesus falado estas coisas, levantou os olhos ao céu e disse: Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti” (Jo 17.1).
Nas Bodas de Caná, dissera a Maria: “Ainda não é chegada a minha hora”(Jo 2.4).
Em outros contextos, demonstrara a mesma percepção. Depois da entrada triunfal em Jerusalém: “É chegada a hora de ser glorificado o Filho do Homem”(Jo 12.23).
Em seguida: “Agora, está angustiada a minha alma, e que direi eu? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente com este propósito vim para esta hora” (Jo 12.27).
Próximo à Páscoa, “Ora, antes da Festa da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”(Jo 13.1).
Em João 17.14 relata ao Pai: “Eu lhes tenho dado a Tua Palavra”. A Palavra que Cristo transmitira era fiel; isto nós sabemos. O que pretendemos analisar neste texto, é o significado desta Palavra ensinada.
Aulén (1879-1977) comenta:
O amor de Cristo é para a fé o amor do próprio Deus. Onde Cristo está, lá está Deus. Onde Cristo age, lá age o próprio Deus. O amor de Cristo, que se sacrifica e entrega, é o amor do próprio Deus. Sua luta contra o mal é a luta do próprio Deus. Sua vitória é a vitória do próprio Deus. No evento de Cristo, Deus efetiva Sua vontade amorosa.[6]
Meus irmãos, é impossível descrever de forma perfeita os sofrimentos de Cristo. Ninguém jamais poderá aquilatar de forma completa as dores do Messias. Elas foram úúnicas, incomensuráveis e suficientes![7]
Entretanto, todos os pecadores eleitos, desde os mais humildes socialmente até os mais sábios, desfrutaram dos benefícios salvadores da obra sacrificial de Cristo. Afinal, sem a graça que emana da cruz ninguém seria salvo. A Igreja é o resultado efetivo e histórico do Ministério Sacrificial; o sacrifício de Cristo não foi em vão.
E nesta autoentrega, está a vitória de Deus sobre o pecado e sobre Satanás, redimindo para si um povo comprado com o “sangue de Deus” (At 20.28/1Co 6.20; 1Pe 1.18,19).
O Catecismo de Heidelberg (1563), à pergunta de n° 37, “Que entendes pela palavra ‘sofreu’?”, responde:
Que durante toda a sua vida na terra, e especialmente no fim dela, ele suportou no corpo e na alma a ira de Deus contra os pecados de todo o gênero humano, de modo que, pelo seu sofrimento, como o único sacrifício expiatório, ele redimisse o nosso corpo e a nossa alma da maldição eterna, e para nós conseguisse de Deus a graça, a justiça e a vida eterna.
A obra sacrificial de Cristo foi cumprida de forma completa e com o sentimento adequado pela operação do Espírito (Hb 9.14).[8] Cristo, em total harmonia com o Espírito, se ofereceu a si mesmo, tendo plena consciência das implicações dessa oferta: a dor, a vergonha, a humilhação, o peso da ira de Deus, o abandono.
Ele sabia que a cruz era a sua rota obrigatória. Os seus sofrimentos foram as dores do parto do nosso novo nascimento. Jamais poderemos avaliar corretamente a profundidade e a extensão dos seus sofrimentos.“Cristo sofreu como homem, no entanto, a fim de que sua morte pudesse efetuar nossa salvação, sua eficácia fluiu do poder do Espírito. O sacrifício que produziu a expiação eterna foi muito mais que uma obra meramente humana”, comenta Calvino.[9]
No entanto, em todo o seu sofrimento, Ele pôde usufruir do consolo do Espírito que sempre estivera plenamente nele.[10]
O Espírito que esteve em Cristo durante todo o seu Ministério terreno não o desamparou, antes, o acompanhou e o capacitou a apresentar-se voluntariamente (Hb 9.14; Gl 1.4/Jo 10.11,15,17,18)[11] como sacerdote e vítima: o ofertante e a oferta – para resgatar os seus (Hb 9.23-28).
Maringá, 19 de fevereiro de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] João Calvino, As Institutas, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, III.8.1. “Toda a sua vida foi uma cruz perpétua” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 45).
[2] Lloyd-Jones interpretando Mt 26.39, diz: “Essa foi a única vez, durante Sua vida terrena, que nosso Senhor fez a Seu Pai uma petição desse gênero; e é óbvio, pois, que era algo extremamente excepcional. E isso aponta para o fato de que houve algo em Sua morte que era absolutamente necessário. (…) É absolutamente inadequado pressupor que um mero sofrimento físico produziria tal clamor….” (D.M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, v. 1), p. 418).
[3] “Não há nada que seja mais importante do que compreendermos o fato de que o nosso Salvador é o Filho eterno de Deus, que Ele orou por nós na terra, e que neste momento Ele está intercedendo por nós à destra da glória e do poder de Deus no céu” (D.M. Lloyd-Jones, Crescendo no Espírito. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2006 (Certeza Espiritual: v. 4), p. 172).
[4] Ver: Marcus Dods, John: In: W. Robertson Nicoll, ed. The Expositor’s Bible, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 2000), Parte 2, Capítulo 16.
[5] “A oração pode ser vista como a consumação dos discursos. Ela mostra que a base sólida e firme de todos os fundamentos de conforto, admoestação e predições está no céu. Ela liga todas as promessas ao trono de Deus. Aqui tudo é garantido. O capítulo não contém nenhuma sentença condicional” (William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004,(Jo 17), p. 751).
[6] Gustaf Aulén, A Fé Cristã, São Paulo, São Paulo: ASTE., 1965, p. 186.
[7] Mattew Henry comenta: “A queixa mais dolorosa de Cristo em seus sofrimentos foi a aflição de sua alma e a falta do sorriso de seu Pai” (Matthew Henry, Comentário Bíblico de Matthew Henry, 5. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2006, (Sl 6), p. 401).
[8] Vejam-se: Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010,p. 135ss.; Edwin H. Palmer, El Espiritu Santo,Edinburgh: El Estandarte de la Verdad, (s.d.), Edición Revisada, p. 88
[9]J. Calvino, Exposição de Hebreus,São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 9.14), p. 231-232.
[10] Veja-se: Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit,p. 116.
[11] “A morte do Senhor Jesus Cristo na cruz do Calvário não foi um acidente; foi obra de Deus. Foi Deus quem o ‘manifestou’ ali” (David M. Lloyd-Jones, A Cruz: A Justificação de Deus,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1980, p. 3). Comentando Gl 1.4, Stott, conclui: “A morte de Jesus pelo pecado foi um ato de autosacrifício e segundo a vontade de Deus Pai” (John R.W. Stott, A Mensagem de Gálatas,São Paulo: ABU., 1989, p. 21). Recomendo a leitura da excelente obra de Stott, A Cruz de Cristo,Miami: Vida, 1981, 359p.