Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (20) – A Ortodoxia Protestante (1)
Este artigo é continuação do: Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (19) – A Reforma e os seus Credos (4)
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A ortodoxia, meu senhor, é minha doxia; heterodoxia é a doxia de outra pessoa. – William Warburton (1698-1779), bispo de Gloucester.
Os materialistas e os doidos não têm dúvidas. – G.K. Chesterton (1874-1936).1
1. Definindo termos
“Ortodoxia” é uma transliteração da palavra grega, o)rqodoci/a, que é composta por duas outras: o)rqo/j, “certo”, “direito” (At 14.10; Hb 12.13) e do/ca, “opinião”, “doutrina”. o)rqodoci/a não aparece nas Escrituras – nem nos escritos seculares ou cristãos até o segundo século2 – , no entanto, o sentido nos é dado em Gl 2.14; Paulo escreve: “Quando, porém, vi que não procediam corretamente (o)rqopode/w) segundo a verdade do Evangelho….”.3 Este sentido opõe-se à “heterodoxia”, assim descrita por Paulo: “Quando eu estava de viagem, rumo da Macedônia, te roguei permanecesses ainda em Éfeso para admoestares a certas pessoas a fim de que não ensinem outra doutrina (e(terodidaskale/w)” (1Tm 1.3). “Se alguém ensina outra doutrina (e(terodidaskale/w) e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, e com o ensino segundo a piedade…..” (1Tm 6.3).
Até onde se sabe, foi Inácio, bispo de Antioquia, o primeiro escritor cristão a usar a expressão “heterodoxia” para se referir aos falsos ensinamentos (c. 110 AD). Na Carta aos Magnésios, VIII.1, diz: “Não vos deixeis iludir pelas doutrinas heterodoxas, nem pelos velhos mitos sem utilidade”.4 Na Carta aos Esmirnenses, VI.2, escreve: “Considerai bem como se opõem ao pensamento de Deus os que se prendem a doutrinas heterodoxas a respeito da graça de Jesus Cristo, vinda a nós”.5
A palavra “ortodoxia” parece ter ganho força no sentido eclesiástico, a partir do quarto século, com a elaboração dos “cânones de fé” (Sínodo de Nicéia (325); Constantinopla (381); Calcedônia (451)) e com o reconhecimento do Cânon Bíblico (3º Sínodo de Cartago (397)),6 quando a Igreja decidia as questões pertinentes à fé conforme os padrões adotados; deste modo, o que se harmonizasse com este padrão era considerado “ortodoxo”, o que era contrário, era “heterodoxo”.7 Posteriormente, a Igreja Oriental se declarou “Santa Ortodoxa Apostólica”.8
A “Ortodoxia”, enquanto sistema de pensamento, seja em que campo for, se baseia nos seguintes pressupostos:
1) O homem pode conhecer a verdade;
2) A verdade é conhecida;
3) O que aquela comunidade ou grupo professa, corresponde à verdade.
Deste modo, ainda que a posição ortodoxa não se considere necessariamente proprietária exclusiva da verdade, crê professá-la em seu sistema; daí a observação abrangente de Trevor-Roper, de que “uma das grandes vantagens da ortodoxia é o ímpeto que imprime à difusão do conhecimento”.9
O termo “Ortodoxia”, normalmente é empregado pelos protestantes para se referir ao sumário das doutrinas defendidas pelos Reformadores e em geral aceitas pelas Igrejas da Reforma. Nesse caso, ser ortodoxo, significa estar de acordo com os princípios da Reforma.
Contudo, dentro da História da Teologia, há um período denominado de “Ortodoxia Protestante”; e é justamente sobre isto que vamos tratar nos posts que se seguem.
São Paulo, 13 de dezembro de 2018.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
1G.K. Chesterton, Ortodoxia, 5. ed. Porto: Livraria Tavares Martins, 1974, p. 50.
2 Encontramos apenas o verbo “o)rqodo/cein” em Aristóteles (384-322 a.C.), com o sentido de “reta opinião”. (Aristóteles, Ética a Nicômaco, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, VII.8. 1151a19. p. 368). Platão (427-347 a.C.) nos fala do “reto juízo” (= “mente reta”) (nou=j o)rqo/j). (Fedro, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 3), 1972, 73a. p. 82). Eusébio de Cesaréia, c. 325 AD., usou a palavra “ortodoxia” com alguma frequência, referindo-se a Irineu, Clemente e Orígenes, como aqueles que representavam a “ortodoxia da Igreja” (Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, III.23.2/VI.2.14; VI.36.4; Eusébio também fala da “verdadeira ortodoxia” (HE., III.25.7); “ortodoxia apostólica” (Historia Eclesiastica,III.31.6; 38.5); “ortodoxia da santa fé” (HE., IV.21/V.22); “ortodoxia eclesiástica” (HE., VI.18.1); “autores ortodoxos” (HE., V.27).
Dionísio – convertido por intermédio de Paulo em Atenas, que se tornara bispo de Corinto –, escreve carta às Igrejas, as quais Eusébio diz que eram “catequeses de ortodoxia” (HE., IV.23.2). Berilo, bispo de Bostra, entre os árabes, “opinava retamente” (HE., VI.33.2).
3 ”….o)rqopodou=sin pro\j th\n a)lh/qeian tou= eu)aggeli/ou….”. O Novo Testamento oferece-nos outros Textos que insistem no ensino do verdadeiro Evangelho, conforme o estabelecido por Deus em Sua Palavra. (Vejam-se: Rm 16.17;1Co 15.1-11; 2Co 11.2; Gl 1.6-9; 2Tm 2.15; 4.3-4).
4In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, 3. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1984, p. 53.
5In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, p. 80. Mais tarde, c. 325, Eusébio de Cesaréia usaria a expressão aludindo aos ensinamentos de Paulo de Samosata (Veja-se: Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiastica, VII.28.2; 29.1; 30.1) e àqueles que se desviaram das Escrituras para ensinos “heterodoxos” (Historia Eclesiastica, VI.12.2). O bispo de Roma Vitor tentando disciplinar as Igrejas da Ásia, alegou que elas eram heterodoxas (Historia Eclesiastica, V.24.9).
6Veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998.
7 Veja-se: Orthodoxy: In: Rev. John M’Clintock; James Strong, eds. Cyclopaedia of Biblical, Theological, and Ecclesiastical Literature, New York: Harper & Brothers, Publishers, Franklin Square, 1894, v. 7, p. 460. (Doravante, citado como CBTEL). Devemos nos lembrar que os Pais da Igreja e alguns Concílios usavam com certa frequência a expressão “cânon” (kanw/n) para distinguir os ensinamentos da Igreja cristã das heresias que surgiam. Para uma substancial documentação sobre isto, Veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, passim.
8 Vejam-se: Orthodoxy: In: Philip Schaff, ed. RED., v. 2, p. 1707a; Orthodoxy: In: CBTEL., v. 7, p. 460b. J.I. Packer, Ortodoxia: In: EHTIC.,v. 3, p. 70.
9 Hugh Trevor-Roper, A Formação da Europa Cristã, Lisboa: Editorial Verbo, (s.d), p. 143.
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