Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (57)
1.3.2.4. Um estudo de caso
2) Na vida comunitária
b) Tratamento sério dos problemas doutrinários
Deve um gentio, para tornar-se cristão, circuncidar-se? Este foi o ponto debatido na reunião de Jerusalém (c. 48 AD). Com o rápido crescimento da Igreja, era natural que surgissem questões novas. Alguns fariseus que foram convertidos, faziam da pergunta acima, uma afirmação: “Se não vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos” (At 15.1), e mais: “…. É necessário circuncidá-los e determinar-lhes que observem a lei de Moisés” (At 15.5). Primeiramente, aqui há um equívoco: a circuncisão antecedia à Lei de Moisés. Ela fora instituída por Deus com Abraão como sinal da aliança estabelecida (Gn 17.9-14; 23-27; 21.4).[1] O próprio Senhor Jesus já fizera menção disto (Jo 7.22).[2]
A circuncisão tendo como fundamento uma base espiritual, apontava para a mudança espiritual efetivada por Deus no coração do homem, envolvendo, portanto, a responsabilidade desse homem em obedecer alegremente a Deus (Gn 17.1; Dt 10.16; 30.6; Jr 4.4; Rm 2.25-29; At 15.5; Gl 5.3). O sinal sem a realidade simbolizada, é vazio e para nada mais serve (Dt 10.16; Jr 4.4 (comparar com: Jr. 9.26; Ez 44.7).[3] Paulo resume isto escrevendo aos Romanos:
25 Porque a circuncisão tem valor se praticares a lei; se és, porém, transgressor da lei, a tua circuncisão já se tornou incircuncisão. 26 Se, pois, a incircuncisão observa os preceitos da lei, não será ela, porventura, considerada como circuncisão? 27 E, se aquele que é incircunciso por natureza cumpre a lei, certamente, ele te julgará a ti, que, não obstante a letra e a circuncisão, és transgressor da lei. 28 Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é somente na carne. 29 Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus. (Rm 5.25-29).
Os crentes em Cristo não precisam mais desse sinal, que foi substituído pelo batismo. Nós em nossa obediência a Deus somos a circuncisão: “Porque nós é que somos a circuncisão, nós que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e não confiamos na carne” (Fp 3.3). Estes, quer judeus, quer gentios, foram circuncidados espiritualmente por Cristo: “Nele (Jesus Cristo), também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo” (Cl 2.11).
Retornando à questão com os fariseus, Paulo e Barnabé criam de forma diferente deles. Isto gerou uma disputa ardorosa, envolvendo grande paixão e efervescência. São significativas as palavras usadas por Lucas (At 15.2).[4]
A questão foi encaminhada aos apóstolos e presbíteros de Jerusalém que se reuniram em Concílio para estudar o problema (At 15.6).[5] Após um intenso debate, porém, em tons não sediciosos (At 15.7),[6] o Concílio pronunciou-se sobre a questão de forma unânime, com autoridade e simpatia (At 15.22-25),[7] enviando para as Igrejas de Antioquia, Síria e Cilicia, a sua resolução, sendo Barnabé, Paulo, Judas e Silas os emissários (At 15.23,25,27).
Nesse episódio, vemos a preocupação dos apóstolos e presbíteros em resolver as questões doutrinárias, a fim de que o corpo de Cristo continuasse saudável doutrinariamente e harmonioso. O resultado disso foi que as Igrejas se alegraram no Senhor e “…. eram fortalecidas na fé e aumentavam em número dia a dia” (At 16.5. Leia também: At 15.30-33; 16.4).
Herman Bavinck (1854-1921), falando sobre a unidade da Igreja, aponta de forma exultante para a unidade escatológica:
A unidade sobre a qual Cristo tinha falado (Jo 17.21) foi realizada na igreja de Jerusalém. Quando o entusiasmo do primeiro amor deu lugar à quietude do coração e da mente, quando as igrejas foram estabelecidas em outros lugares e entre outros povos, quando, mais tarde, todos os tipos de cisma e de separação começaram a ocorrer na Igreja cristã, a unidade que une todos os crentes assumiu uma forma diferente, tornou-se menos vital e menos profunda, e algumas vezes é tão fraca que nem mesmo pode ser sentida por todos. Mas nós não podemos nos esquecer que no meio de tantas diferenças a Igreja permanece unida até os nossos dias. No futuro essa unidade se tornará ainda mais claramente manifesta do que na igreja de Jerusalém.[8]
São Paulo, 20 de maio de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
*Leia esta série completa aqui.
[1] O verbo circuncidar, no hebraico, (lUm)(mûl) significa “cortar”.
[2] “Pelo motivo de que Moisés vos deu a circuncisão (se bem que ela não vem dele, mas dos patriarcas), no sábado circuncidais um homem” (Jo 7.22). “Os judeus, em seu zelo pela lei de Moisés, estavam sempre se esquecendo de que certos ritos religiosos importantes já estavam em voga antes de seu tempo” (William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, (Jo 7.22), p. 342).
[3] “Deus não joga conosco usando figuras destituídas de conteúdo, senão que interiormente efetua, por seu próprio poder, aquilo que Ele pretende nos mostrar por meio de um sinal externo. (…) O poder e o uso dos sacramentos são corretamente subentendidos quando conectamos o sinal com aquilo que está implícito nele, de tal forma que o sinal não é algo vazio e ineficaz, e quando, querendo enaltecer o sinal, não despojamos o Espírito Santo do que lhe pertence” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 3.5), p. 350).
[4]“Alguns indivíduos que desceram da Judéia ensinavam aos irmãos: Se não vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos. 2 Tendo havido, da parte de Paulo e Barnabé, contenda (sta/sij = Tumulto, sedição, celeuma) e não pequena discussão (zh/thsij = contenda, discussão, “batalha de palavras”) com eles, resolveram que esses dois e alguns outros dentre eles subissem a Jerusalém, aos apóstolos e presbíteros, com respeito a esta questão (zh/thma * At 15.2; 18.15; 23.29; 25.19; 26.3)” (At 15.1-2). (Sta/sij * Mc 15.7; Lc 23.19,25; !5 At 15.2; 19.40; 23.7,10; 24.5; Hb.9.8 (“erguido”)).
[5]“Então, se reuniram os apóstolos e os presbíteros para examinar a questão” (At 15.6).
[6]“Havendo grande debate (zh/thsij = contenda, discussão, “batalha de palavras”), Pedro tomou a palavra e lhes disse: Irmãos, vós sabeis que, desde há muito, Deus me escolheu dentre vós para que, por meu intermédio, ouvissem os gentios a palavra do evangelho e cressem” (At 15.7). (Zh/thsij *Jo 3.25; At 15.2,7; 25.20; 1Tm 6.4; 2Tm 2.23; Tt 3.9).
[7]“22 Então, pareceu bem aos apóstolos e aos presbíteros, com toda a igreja, tendo elegido homens dentre eles, enviá-los, juntamente com Paulo e Barnabé, a Antioquia: foram Judas, chamado Barsabás, e Silas, homens notáveis entre os irmãos, 23 escrevendo, por mão deles: Os irmãos, tanto os apóstolos como os presbíteros, aos irmãos de entre os gentios em Antioquia, Síria e Cilícia, saudações. 24 Visto sabermos que alguns que saíram de entre nós, sem nenhuma autorização, vos têm perturbado com palavras, transtornando a vossa alma, 25 pareceu-nos bem, chegados a pleno acordo, eleger alguns homens e enviá-los a vós outros com os nossos amados Barnabé e Paulo” (At 15.22-25).
[8] Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, p. 397.
Esta questão está posta em nossos dias, posto que os Adventistas (judeus modernos) a tudo reprisa quando dizem: Jesus salva, mas você tem que guardar o Sábado.