Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (53)
1.3.2.2. A unidade e a nossa responsabilidade
Como vimos, Paulo diz algo revelador a respeito da unidade cristã: “Esforçando-vos diligentemente (Spouda/zw) por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz” (Ef 4.3). A unidade é do Espírito, porém, cabe a nós nos esforçar por sua preservação.
A palavra traduzida por “preservar” é thre/w, que além desta tradução tem o sentido de “deter”, “guardar”, “conservar”, “observar”, “reservar”, “proteger”, guardar com um propósito ou por um tempo determinado (At 25.21; 1Pe 1.4; 2Pe 2.4,9,17; 3.7). A ideia é de manter seguro, preso.
Lucas assim narra o episódio da prisão de Pedro:
Pedro, pois, estava guardado (thre/w) no cárcere; mas havia oração incessante a Deus por parte da igreja a favor dele. Quando Herodes estava para apresentá-lo, naquela mesma noite, Pedro dormia entre dois soldados, acorrentado com duas cadeias, e sentinelas à porta guardavam (thre/w) o cárcere. (At 12.5-6).[1]
Analisemos agora, como a palavra foi usada no Novo Testamento:
1) O guardar os Mandamentos de Deus[2]
a) Jesus Cristo guarda a Palavra do Pai
Jesus revela conhecer o Pai guardando a Sua Palavra: “Entretanto, vós não o tendes conhecido; eu, porém, o conheço. Se eu disser que não o conheço, serei como vós: mentiroso; mas eu o conheço e guardo (thre/w) a sua palavra” (Jo 8.55).
Jesus relaciona a obediência ao amor. Diz que o amor se revela em obediência. O Filho obedece ao Pai permanecendo no Seu amor: “Se guardardes (thre/w) os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; assim como também eu tenho guardado (thre/w) os mandamentos de meu Pai e no seu amor permaneço” (Jo 15.10).
b) Guardar toda a Lei
Quando houve um debate na Igreja Primitiva sobre a situação dos gentios convertidos, se eles deveriam ou não ser circuncidados, este era o argumento de alguns fariseus convertidos:
É necessário circuncidá-los e determinar-lhes que observem (thre/w) a lei de Moisés” (At 15.5). Tiago que participou da resolução deste problema em Jerusalém, mais tarde escreveria: “Pois qualquer que guarda thre/w) toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos. (Tg 2.10).
c) É um requisito para a vida eterna
Quando alguém interroga a Jesus a respeito da vida eterna, Ele responde: “Por que me perguntas acerca do que é bom? Bom só existe um. Se queres, porém, entrar na vida, guarda (thre/w) os mandamentos” (Mt 19.17/1Co 7.19[3]).
Em outra ocasião:
Em verdade, em verdade vos digo: se alguém guardar (thre/w) a minha palavra, não verá a morte, eternamente. Disseram-lhe os judeus: Agora, estamos certos de que tens demônio. Abraão morreu, e também os profetas, e tu dizes: Se alguém guardar (thre/w) a minha palavra, não provará a morte, eternamente. (Jo 8.51-52).
d) A prática da Palavra revela a nossa comunhão amorosa e perseverante com Deus, seguindo o exemplo de Jesus Cristo
Jesus ensinou aos Seus discípulos:
Se guardardes (thre/w) os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; assim como também eu tenho guardado (thre/w) os mandamentos de meu Pai e no seu amor permaneço. (Jo 15.10).
Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda (thre/w), esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me manifestarei a ele. Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo? Respondeu Jesus: Se alguém me ama, guardará (thre/w) a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada. Quem não me ama não guarda (thre/w) as minhas palavras; e a palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai, que me enviou. (Jo 14.21-24).
Quem conhece o Filho guarda os Seus mandamentos. O conhecimento de Deus manifesta-se em obediência amorosa:
Ora, sabemos que o temos conhecido por isto: se guardamos (thre/w) os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu o conheço e não guarda thre/w) os seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade. Aquele, entretanto, que guarda (thre/w) a sua palavra, nele, verdadeiramente, tem sido aperfeiçoado o amor de Deus. Nisto sabemos que estamos nele: aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou. (1Jo 2.3-6).
Quem guarda os Seus mandamentos permanece nele: “E aquele que guarda (thre/w) os seus mandamentos permanece em Deus, e Deus, nele. E nisto conhecemos que ele permanece em nós, pelo Espírito que nos deu” (1Jo 3.24).
Jesus diz ao Pai que os Seus discípulos, confiados por Deus, receberam a Palavra e a tem guardado: “Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm guardado (thre/w) a tua palavra” (Jo 17.6).
e) Os mandamentos de Deus não são penosos
Uma descoberta para os fiéis discípulos de Cristo é que, por mais que possa nos parecer difícil seguir a Cristo – sem dúvida envolvendo o tomar a cruz –, os Seus mandamentos – olhando pelo prisma de nossa vida aqui, com todas as circunstâncias –, não são pesados, antes são vitoriosos sobre as nossas tentações. É isto que diz o apóstolo João:
Porque este é o amor de Deus: que guardemos (thre/w) os seus mandamentos; ora, os seus mandamentos não são penosos (baru/j) (“pesados”,[4] “vorazes”,[5] “graves”),[6] porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1Jo 5.3-4).
Como temos visto, na obediência aos mandamentos expressamos o nosso amor a Deus resultante de nosso novo nascimento.
f) Na prática da Palavra revelamos o nosso amor a Deus e ao nosso próximo
É o próprio Senhor Jesus Cristo quem nos apresenta esta perspectiva: “Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e praticamos (poie/w)[7] os seus mandamentos” (1Jo 5.2).
g) Não devemos guardar as tradições à revelia da Palavra
Jesus acusa os fariseus de guardarem as suas tradições,[8] rejeitando sagazmente, com beleza ardilosa, a Palavra: “E disse-lhes ainda: Jeitosamente (kalw=j)[9] rejeitais o preceito de Deus para guardardes (thre/w)[10] a vossa própria tradição” (Mc 7.9).
São Paulo, 15 de maio de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
*Leia esta série completa aqui.
[1]Relatando a situação de Paulo e Silas presos, Lucas diz: “E, depois de lhes darem muitos açoites, os lançaram no cárcere, ordenando ao carcereiro que os guardasse (thre/w) com toda a segurança” (At 16.23). Félix, orienta o Centurião no que se refere a Paulo: “E mandou ao centurião que conservasse a Paulo detido (thre/w), tratando-o com indulgência e não impedindo que os seus próprios o servissem” (At 24.23). “Festo, porém, respondeu achar-se Paulo detido (thre/w) em Cesaréia; e que ele mesmo, muito em breve, partiria para lá” (At 25.4). Festo narrando ao rei Agripa o ocorrido com Paulo, diz: “Mas, havendo Paulo apelado para que ficasse em custódia (thre/w) para o julgamento de César, ordenei que o acusado continuasse detido (thre/w) até que eu o enviasse a César” (At 25.21).
[2]Na LXX thre/w aparece em especial no Livro de Provérbios. Vejam-se, por exemplo: Pv 3.1,21; 4.23; 19.16; 23.26.
[3] Neste verso a palavra é th/rhsij (* At 4.3; 5.18; 1Co 7.19).
[4] Mt 23.4.
[5] At 20.29. A tradução poderia ser também “violentos”, “ferozes”.
[6] At 25.7; 2Co 10.10.
[7]Aqui há uma variante textual; no entanto a base documental é boa [B]. Mesmo a construção sendo rara no grego, é a que está melhor documentada. A outra palavra empregada em documentos de menor relevância é thre/w. Contudo, thre/w harmoniza-se melhor com a sequência do texto.
[8]A tradição oral (para/dosij) (“transmissão”, “entrega”, “tradição”. A palavra é formada de “Para/” (“junto a”, “ao lado de”) & “Di/dwmi” (Conforme o contexto: “dar”, “trazer”, “conceder”, “causar”, “colocar”, etc.) consistia basicamente no que Jesus Cristo, os apóstolos e outros servos de Deus ensinavam, transmitiram por meio de seus sermões, orientações e comportamento (1Co 11.2, 23-25; Gl 1.14; 2Ts 2.15; 3.6/Rm 6.17; 16.17; 1Co 15.1-11; Fp 4.9; 1Ts 2.9, 13; 4.11,12). Significava, portanto, uma entrega oral ou escrita. Nestes textos, evidenciam-se que a “tradição” recebida e ensinada se amparava numa certeza quanto à sua origem divina. Portanto, as “tradições” mencionadas por Paulo distinguem-se daquelas inventadas e transmitidas pelos homens, as quais são recriminadas por Cristo, visto que estes ensinamentos anulavam a Palavra de Deus (Cf. Mt 15.2,3,6; Mc 7.3,5,8,9,13). A para/dosij é rejeitada todas as vezes que entra em choque com a Palavra de Deus (Vejam-se: H.M.F. Buchsel, Para/dosij: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 2, p. 172-173; G. Hendriksen, 1 y 2 Tesalonicenses, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1980, p. 217 e 230; I.H. Marshall, I e II Tessalonicenses: Introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1984, p. 245 e 257; W. Popkes, Para/dosij: In: Horst Balz; Gerhard Schneider, eds. Exegetical Dictionary of New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1978-1980, v. 3, p. 21). Portanto, “A questão não é se temos tradições, mas se as nossas tradições estão em conflito com o único padrão absoluto nessas questões: as Escrituras Sagradas” (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, São Paulo: Editora Cultura Cristã, p. 234). Ridderbos (1909-2007) salienta que o conceito de tradição no Novo Testamento, não está associado ao pensamento grego antes, é orientado pela concepção judaica, pela qual “o que confere autoridade à tradição não é o peso dos antepassados ou da escola senão primordialmente o caráter do material dessa tradição….” (Herman N. Ridderbos, Historia de la Salvación y Santa Escritura, Buenos Aires: Editorial Escaton, (1973), p. 39).
[9]A palavra grega indica algo que é essencialmente bom, formoso, gentil – a ideia de beleza estética está classicamente presente nesta palavra –, útil e honroso. No entanto, aqui a palavra é usada ironicamente. Os fariseus faziam com maestria o erro parecer certo, levantando uma cortina de fumaça sobre as suas reais motivações e intenções.
[10] Aqui há uma variante textual, apresentando em alguns documentos a palavra “sth/shte” (estabelecer). No entanto, a opção usada é melhor documentada.
Ser Cristão não é só um privilégio é, também, uma responsabilidade.
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