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Uma oração intercessória pela Igreja (146) - Hermisten Maia

Uma oração intercessória pela Igreja (146)

            1) Senso de privilégio e responsabilidade: Serviço ao Senhor

                  18E, quando se encontraram com ele, disse-lhes: Vós bem sabeis como foi que me conduzi entre vós em todo o tempo, desde o primeiro dia em que entrei na Ásia, 19servindo ao Senhor com toda a humildade, lágrimas e provações que, pelas ciladas dos judeus, me sobrevieram, (…) 28 Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue” (At 20.18,19,28).

            Em geral todo privilégio traz responsabilidades. Se quisermos começar pela outra ponta, podemos também dizer que toda responsabilidade envolve privilégios. A questão é por qual lado olhamos a realidade. Em geral costumamos destacar um ponto conforme o nosso grau de simpatia, por vezes circunstancial (Quando estou muito entusiasmado com algo, por exemplo) ou, pela intensidade da inconveniência que, também pode ser circunstancial. Assim, podemos dizer com tons diferentes: “São só cinquenta minutos” ou, “foram os cinquenta minutos mais longos de minha vida”. O “somente!” pode se transformar em “isso tudo?”. A recíproca também é verdadeira.

            Servir ao Senhor em nossas múltiplas atividades é sempre um privilégio. Servi-lo como ministro é um privilégio gracioso (Ef 3.8). Contudo, não nos iludamos com isso.  Servir a Deus com integridade também traz consigo o ônus próprio (1Co 9.16).

Paulo entendia que todo o seu serviço era feito para o Senhor. Agora, instrui os presbíteros quanto à vocação deles. Ter sido constituído bispo para pastorear a igreja de Deus é altíssimo privilégio; não duvidemos disso. Contudo, é também uma grande responsabilidade, considerando que a igreja é de Deus e Ele pagou um preço inigualável e inatingível por nós. Portanto, olhando por um outro prisma: não desprezemos a igreja de Deus.

            A igreja não foi instituída por causa de nossa vocação e trabalho, a fim de atender uma demanda, como um bairro que cria uma praça com brinquedos com o objetivo de atenuar determinada carência de lazer em uma região populosa e com poucos recursos. Antes, nós fomos chamados para servir a Deus por meio da igreja. Dito de outro modo, nós existimos para o bem da igreja. O povo que nos foi confiado pertence a Deus que é o Senhor da Igreja (1Pe 5.3).[1]  Não há como servir positivamente à igreja sem nos tornarmos servos da sua Palavra. Essa fidelidade prazerosa proporciona frutos magníficos para a igreja porque Deus é misericordioso nos chamando, equipando e abençoando o nosso, por vezes, rude e frágil trabalho.

            O aspecto preponderante no Ministério, é que servimos ao Senhor. Isto é incomensuravelmente mais relevante do que qualquer outro estímulo ou motivação por cargos, ricas congregações, títulos ou honras humanas e reconhecimentos que possamos cultivar. A grandeza de nosso serviço está naquele a quem servimos. A integridade no que fazemos revela a seriedade com que contemplamos a Deus e a grandeza de poder conscientemente servi-lo.

            A perda desta dimensão por parte do ministro gera internamente a necessidade de criar elementos supostamente agregadores ao ministério, tais como: títulos, honrarias deferências e reconhecimentos a fim de supor que ele não é apenas presbítero, mas, é um presbítero diferenciado pelas suas funções, posição, importância, agenda e respeitabilidade entre seus pares, pela igreja e pela mídia.

            Cada sistema de governo tem os seus próprios fascínios e, portanto, seus vícios e armadilhas. O ideal de servir pode se transformar, pelos apelos ardilosos de um sucesso fácil, em ideal de fama e poder. Nenhum ministro pode estar acima de sua igreja e, menos ainda acima de Cristo. Calvino, inspirando-se nas palavras e testemunho de João Batista, apresenta um princípio de grande sabedoria: “Todos quantos excedem, quer nos dons divinos quer em algum grau de honra, devem permanecer em sua própria condição: abaixo de Cristo”.[2]

Paradoxalmente, isso pode nos conduzir ao sentimento de autossuficiência ou de inveja dos que, aos nossos olhos são mais reconhecidos e requisitados.

            A ambição, a inveja e o senso de ter sido injustiçado andam sempre juntos, ocasionando grandes dissabores para a igreja de Cristo.[3]

            A orientação de Carson, parece-nos oportuna: “Regozije-se no serviço para o qual Deus o chamou e evite tanto a arrogância como a inveja”.[4]

            A consciência de a quem estamos servindo, mostra-nos a essência do significado do nosso ofício, conferindo-nos a real dimensão de nosso trabalho no Reino de Deus.[5]

O desejo de servir deve caracterizar o nosso ofício na Igreja de Deus e no mundo de nosso Pai.[6]

            Paulo tem diante de si de forma bastante clara o significado de seu chamado, tendo experimentado, inclusive entre os efésios, as tentações que lhe foram impostas pelos judeus em suas armadilhas constantemente preparadas.

            Ainda que de forma ordinária nosso serviço seja prestado entre os homens e a homens, procurando ajudá-los; em última instância, servimos ao Senhor que nos vocacionou, não simplesmente a homens. Devemos cultivar em nossa memória e em nosso coração essa alentadora certeza.

Por sua vez, essa convicção está necessariamente atrelada à outra. Se de fato somos servos do Senhor, não somos senhores da Igreja.

Pedro exorta aos demais presbíteros a pastorearem não como conquistadores, senhores absolutos, mas, que a sua autoridade fosse decorrente do seu testemunho como modelos do rebanho:

Pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade; 3 nem como dominadores (karakurieu/w) dos que vos foram confiados, antes, tornando-vos modelos (tu/poj) (= padrão, exemplo) do rebanho (1Pe 5.2-3).

            Pedro emprega duas palavras antagônicas, estabelecendo o contraste, dizendo que o pastorado deve ser espontaneamente (e(kousi/wj = intencionalmente, deliberadamente. *1Pe 5.2; Hb 10.26), não por constrangimento (a)nagkastw=j = forçadamente, compulsoriamente. *1Pe 5.2), como se fosse um fardo, algo aflitivo.[7]

            Comentando outra passagem bíblica, Calvino escreve:

O Senhor espera que seus servos sejam solícitos e prazerosos em obedecê-lo, em demonstrar alegria, agindo sem qualquer hesitação. Resumindo, Paulo quer dizer que a única maneira para se fazer justiça à sua vocação seria desempenhando sua função com um coração voluntário e de forma solícita.[8]

            Contudo, isto não indica ausência de responsabilidade, nem negligência. Conscientes do nosso chamado, devemos aceitar com alegria o ônus do nosso ofício (Ver: 1Co 9.16,17; Jd 3),[9] sem, contudo, querer exercer um domínio senhorial (katakurieu/w = subjugar *Mt 20.25; Mc 10.42; At 19.16; 1Pe 5.3)[10] que seria prejudicial à igreja (1Pe 5.3), mas nos tornando modelo (tu/poj = padrão) (1Pe 5.3/Fp 3.17; 1Ts 1.7; 2Ts 3.9; 1Tm 4.12; Tt 2.7).

            O modelo bíblico de liderança opõe-se totalmente à mentalidade secular: o mundo nos fala de poder e domínio. As Escrituras nos falam de humildade e serviço.[11]

            Devemos ter sempre consciência de que estamos servindo a Deus por meio do rebanho que pertence a Ele – comprado com o seu próprio sangue –, e, foi Ele mesmo quem nos confiou o seu cuidado (At 20.28; 1Pe 5.2-4).

            O nosso Supremo Pastor é quem por sua graça nos recompensará: “Ora, logo que o Supremo Pastor se manifestar, recebereis a imarcescível coroa da glória” (1Pe 5.4).

            Nesse afã, a humildade é extremamente necessária mesmo em meio às provações: “Servindo ao Senhor com toda a humildade (tapeinofrosu/nh), lágrimas e provações que, pelas ciladas dos judeus, me sobrevieram” (At 20.19).

            Aqui vemos mais um ingrediente totalmente estranho ao mundo antigo. A palavra (tapeino/j) tinha originalmente, no mundo pagão, o sentido depreciativo de “estar em baixo”, indicando de modo figurado “socialmente baixo”, “pobre”, “de pouca influência social”, o escravo que assumiu uma atitude de submissão bajulante, lisonjeador etc. Obviamente, humildade não era vista como uma virtude.[12] Do mesmo modo, o composto tapeinofrosu/nh apresenta sempre uma conotação depreciativa.[13]

            Portanto, para o pensamento grego, a humildade estava longe de ser considerada uma virtude. “Nos dias anteriores a Cristo a humildade sempre foi considerada como algo baixo, rasteiro, servil e não nobre. E, sem dúvida, o cristianismo a colocou justamente em primeiro plano entre todas as virtudes cristãs; é de fato, a virtude da qual dependem e provêm todas as demais virtudes”, interpreta Barclay (1907-1978).[14] A humildade é um termo cunhado pelo Cristianismo, concedendo-lhe um novo significado.

            Isso é fácil de entender, se considerarmos que enquanto os gregos tinham como centro de gravidade o homem, na teologia bíblica o centro de todo o significado da existência está em Deus. Portanto, na concepção grega a modéstia era considerada coisa vergonhosa, devendo ser evitada. Já no pensamento bíblico, as palavras relacionadas à humildade descrevem “aqueles eventos que levam o homem a ter um relacionamento certo com Deus e com seu próximo”, interpreta Esser.[15]

            A ideia aqui expressa, é de reconhecimento da própria fraqueza e do poder sustentador de Deus. A humildade cristã que é mãe das demais virtudes é produzida pela contemplação da majestade de Deus e, posteriormente, por uma visão adequadamente real do que somos.

São Paulo, 11 de setembro de 2023.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Veja-se: Derek Prime; Alistair Begg, Ser pastor, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 39.

[2] João Calvino, O evangelho segundo João,  São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.15),  p. 54.

[3]Calvino em diversos lugares nos chama a atenção para o perigo da ambição desenfreada e mal dirigida. Cito algumas passagens: “Dos muitos males existentes em nossa sociedade, e particularmente na Igreja, a ambição é a mãe de todos eles” (João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 5.26), p. 173). “A ambição é mãe da inveja. E sempre que a inveja estiver no comando, ali também surgirá violência, confusões, contendas e os demais males que Paulo enumera aqui” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 6.4), p. 166). “Todo crente deve sentir desejos de manter-se afastado da falsa ambição e da busca inadequada de grandezas e honras” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 41). “É da inveja que nascem as disputas, as quais, uma vez inflamadas, se prorrompem em seitas perigosas. Além do mais, a ambição é a mãe de todos estes males” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 3.3), p.100). Para o uso bíblico e bem direcionado da ambição, sugiro a leitura do livro de Dave Harvey, Resgatando a ambição, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012.

[4] D.A. Carson: In: John Piper; D.A Carson, O Pastor Mestre e O Mestre Pastor, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 112.

[5] “Trabalhar no reino é o nosso estilo de vida” (Cornelius Plantinga Jr., O Crente no Mundo de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 111).

[6] “Uma mente cristã começa com a humildade, com o desejo de servir em vez de ser importante ou se sentir confortável” (Oliver Barclay, Mente Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 18).

[7]“Grande prudência é requerida daqueles que têm a incumbência da segurança de todos; e grande diligência, daqueles que têm o dever de manter vigilância, dia e noite, para a preservação de toda a comunidade” (João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 12.8), p. 434).

[8]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 9.17), p. 278.

[9]Nestes textos, aparecem a palavra a)na/gkh que é da mesma raiz de a)nagkastw=j.

[10]A palavra apresenta a ideia de um domínio estrangeiro imposto com o objetivo de auferir benefícios para si. (Vejam-se: W. Foerster, Katakurieu/w: In: G. Kittel, ed., Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 3, 1098; H. Bietenhard, Senhor: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 4, p. 431.

[11]Veja-se: John Stott, O chamado para líderes cristãos, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 29.

[12]Ver mais detalhes em: H.-H. Esser, Humildade: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 386; W. Grundmann, Tapeino/j: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds.Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 8, p. 1-5 (especialmente).

[13]Tapeinofrosu/nh (*At 20.19; Ef 4.2; Fp 2.3; Cl 2.18,23; 3.12; 1Pe 5.5). Ela é a composição de duas palavras: tapeino/j (*Mt 11.29; Lc 1.52; Rm 12.16; 2Co 7.6; 10.1; Tg 1.9; 4.6; 1Pe 5.5), que tem o sentido: a) Literal de “aplanar”, “nivelar” (Lc 3.5 (tapeino/w) (Is 40.4); b) Figurado de “humilde” (Mt 11.29) e frh/n, “pensamento”, “compreensão”, “juízo” (*1Co 14.20). Assim, tapeinofrosu/nh significa “modéstia de mente”, indicando a atitude mental despretensiosa, caracterizando-se pela modéstia. Na construção do texto, tapeinofrosu/nh apresentava sempre o sentido depreciativo de “pensar pobremente”, “ter uma mente servil” etc. (* At 20.19; Ef 4.2; Fp 2.3; Cl 2.18,23; 3.12; 1Pe 5.5). Quanto à humildade de Paulo, Vejam-se: 2Co 10.1; 11.7; 1Ts 2.6. (Ver: H.-H. Esser, Humildade: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 386-391).

[14]William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado,Buenos Aires: La Aurora, 1974, v. 10, (Ef 4.1-3), p. 142.

[15] H.-H. Esser, Humildade: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,v. 2, p. 387.

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