Uma oração intercessória pela Igreja (89)
7.4.1.2. O privilégio e a responsabilidade dos que pregam (Continuação)
Calvino, fiel à sua compreensão da relevância da pregação bíblica,[1] usou de modo especial, o método de expor integralmente e aplicar[2] quase todos os livros das Escrituras à sua congregação.[3] A sua mensagem se constitui em um monumento de exegese, clareza[4] e fidelidade à Palavra, e soube aplicá-la com maestria aos seus ouvintes.
Calvino optou por uma interpretação que considerava ser a única bíblica, visto que para ele, “o genuíno significado da Escritura é único, natural e simples”.[5] Por isso, a importância de se entender o sentido das palavras[6] e o contexto histórico[7] ou “circunstância” da passagem.[8]
“Quando passagens da Escritura são tomadas à revelia, e não se presta nenhuma atenção ao contexto, não nos admira que equívocos dessa natureza surjam com frequência”, comenta Calvino.[9] Sustentava que competia ao intérprete entender o que o autor quis dizer e o seu propósito.
Ele entendia que “a pregação é um instrumento para a consecução da salvação dos crentes” e, que “embora não possa realizar nada sem o Espírito de Deus, todavia, através da operação interior do mesmo Espírito, ela revela a ação divina muito mais poderosamente”.[10]
Em outro lugar, conforme já vimos: “O ‘Espírito’ está unido com a Palavra, porque sem a eficácia do Espírito, a pregação do Evangelho de nada adiantará, mas permanecerá estéril”.[11] A Palavra não tem eficácia própria, não opera por si mesma (ex opere operato), antes pela ação do Espírito Santo.[12]
É o Espírito quem confere poder à pregação do Evangelho; por isso não há lugar para vanglória: “Todo o poder da ação (…) reside no Espírito mesmo, e assim, todo o louvor deve ser inteiramente atribuído a Deus somente”, instrui Calvino.[13]
Referindo-se ao púlpito de Genebra sob o pastorado de Calvino, Lawson afirma: “Esse púlpito se tornou um trono do qual a Palavra de Deus reinava, governando os corações daqueles que se uniram no esforço histórico de reformar a igreja”.[14]
Cito aqui um fato bastante conhecido que ilustra bem a seriedade de Calvino para com o culto e a pregação da Palavra.
Por insistente pedido dos magistrados Calvino volta de Estrasburgo para Genebra (13.09.1541). Era uma manhã de terça-feira.
A semana passa rapidamente. Há muito que fazer. São 18 de setembro de 1541, domingo cedo. Muitos entre o povo estão excitados. Calvino, querido por grande parte e indesejado por outros, vai pregar pela manhã. Momento de expectativa. O que dirá? O próprio Calvino narraria o acontecido, meses depois (janeiro de 1542), em carta a um amigo, demonstrando a sua prática de lectio continua:[15]
Quando preguei, todos estavam muito alertas e ansiosos. Mas, omitindo completamente qualquer menção daqueles assuntos sobre os quais eles com certeza esperavam ouvir, dei uma breve explicação sobre nosso ofício. Depois acrescentei uma modesta recomendação de nossa fé e integridade. Após esse prefácio, tomei a exposição de onde havia parado – gesto pelo qual indiquei que havia interrompido o meu ofício de pregar apenas por um tempo em vez de ter desistido completamente.[16]
Um estudioso da vida e pensamento de Calvino, William Wileman (1848-1944), escreveu: “Como expositor da Escritura, a Palavra de Deus era tão sagrada para ele como se a tivesse ouvido dos lábios de seu Autor”.[17]
Maringá, 03 de julho de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Ele escreveu: “…. Quão necessária é a pregação da Palavra, e quão indispensável é que a mesma seja realizada continuamente” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,(1Co 3.6), p. 103). Veja-se: também AsInstitutas, IV.1.9-11. Falando sobre a sua vocação, Calvino diz: “… Deus, me havendo tirado de minha originariamente obscura e humilde condição, considerou-me digno de ser investido com o sublime ofício de pregador e ministro do Evangelho” (J. Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 37).
[2]Veja-se: T.H.L. Parker, Calvin’s Preaching, Louisville, Kentucky: Westminster; John Knox Press, 1992, p. 79ss. “Na pregação de Calvino o método expositivo dos pregadores da Reforma encontrou ênfase. Seus comentários eram frutos de sua pregação e aula, e seus sermões eram comentários ampliados e aplicados. (…) (O seu estilo) mostra-nos como o comentarista obteve o melhor do pregador. Contudo os seus sermões não eram meros comentários. Ali temos uma agilidade de percepção, uma firmeza no posicionamento, um poder de expressão que aliados fazem o pensamento da Escritura marcar e produzir sua impressão sem o auxílio da arte do orador” (Edwin C. Dargan, A History of Preaching, Grand Rapids, Mi.: Baker Book House, 1954, v. 1, p. 449).
[3] Uma tabela parcial sobre o que Calvino pregava durante a semana (de manhã e de tarde) e aos domingos, pode ser encontrada em: T.H.L. Parker, The Oracles of God: An Introduction to the Preaching of John Calvin, Cambridge, England: James Clark & Co. © 1947 (Reprinted: 2002), p. 160-162. (Agora em português: T.H.L. Parker, Os Oráculos de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 155-157). Do mesmo modo: T.H.L. Parker, Calvin’s Preaching, Louisville, Kentucky: Westminster; John Knox Press, 1992, p. 150-152.
[4] “Os comentários de Calvino são modelos de clareza e excelência” (Moisés Silva, O Argumento em Favor da Hermenêutica de Calvino: In: Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 5/1 (2000), p. 7).
[5]João Calvino, Gálatas,(Gl 4.22), p. 140. “Que proveito há se porventura alguém se interessa apenas por especulações curiosas? Que proveito há se porventura ele só adere à letra da lei e não busca a Cristo? Que proveito há se ele perverte o significado natural com as interpretações estranhas a ela? O apóstolo tem boas razões para lembrar-nos da fé que está em Cristo, a qual é o centro e a suma da Escritura.” [João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.15), p. 261-262]. (Ver também: João Calvino, AsInstitutas, IV.17.22). Sanday e Headlam afirmam que Calvino “era sem dúvida o maior dos comentaristas da Reforma. Ele é claro, lúcido, honesto e direto” (William Sanday; Arthur C. Headlam, A Criticial and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans,5. ed. Edinburgh: T. & T. Clark, 1975 (reimpression), p. ciii). Quanto ao sentido único do texto, vejam-se a opinião semelhante de outros Reformadores in: Walter C. Kaiser Jr., Uma Breve História da Interpretação: In: Walter C. Kaiser Jr.; Moisés Silva, Introdução à Hermenêutica Bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 216-217.
[6] Cf. João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 18.5,8), p. 363-364, 368-369. Ele inclusive evitava o emprego de palavras não utilizadas nas Escrituras, ainda que soubesse ser impossível cumprir isso à risca. Nas Instituições, falando sobre a palavra “mérito”, faz um apelo: “Quanto a mim, fujo com todas as forças da alma de todas as contendas que se travam por causa de palavras; mas eu gostaria que sempre fosse mantida pelos cristãos esta sobriedade: que, não havendo necessidade ou algum propósito, não façam uso de palavras alheias à Escritura que possam gerar muito escândalo e pouco fruto” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, (II.6) v. 2, p. 225).
[7]Cf. Juan Calvino, Institución, IV.16.23.
[8] Cf. João Calvino, AsInstitutas, III.17.14.
[9] John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, (Calvin’s Commentaries), 1996, v. 7/1, (Is 14.12), p. 442.
[10]João Calvino, Romanos,2. ed. (Rm 11.14), p. 407.
[11] John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah, Grand Rapids: Michigan: Baker Book House Company, (Calvin’s Commentaries), 1996, v. 8/4, (Is 59.21), p. 271.
[12]Veja-se: João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 14.25), p. 109.
[13]John Calvin, “Commentary on the Prophet Ezekiel,” John Calvin Collection, (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), (Ez 2.2), p. 96.
[14]Steven J. Lawson, O Pregador da Palavra de Deus. In: Burk Parsons, ed. João Calvino Amor à Devoção, Doutrina e Glória de Deus, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2010, p. 95.
[15] Não sabemos quem foi o destinatário da carta. Uma possibilidade é que tenha sido o importante geógrafo, matemático, astrônomo e hebraísta alemão que lecionou em Heidelberg e depois em Basileia, Sebastian Münster (1489-1552), antigo aluno de Conrad Pellicanus (1478-1556), um dos tradutores da Bíblia de Zurique (1529).
[16]A.-L. Herminjard, Correspondance des Réformateurs des les pays de langue française, recueillie et publiée avec d’autres lettres relatives a la Réforme, Genève: G. Fischbacher, © 1886, Facsimile Publisher 2017, v. 7, p. 412; I. Calvini. In: Herman J., Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0. Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 11, colunas 365-366.
[17]William Wileman, “John Calvin. His Life, His Teaching & Influence,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 100.