Uma oração intercessória pela Igreja (56)
5. Amor para com todos os santos (Continuação)
Esse amor, produto da fé, tem implicações éticas sérias, inclusive em nossa perspectiva de trabalho. O amor ao próximo faz com que o nosso honesto trabalho não se limite a satisfazer as nossas necessidades, mas, também, a ajudar aos nossos irmãos: “O amor nos leva a fazer muito mais. Ninguém pode viver exclusivamente para si mesmo e negligenciar o próximo. Todos nós temos de devotar-nos à ação de suprir as necessidades do próximo”, ensina Calvino.[1]
Ajudar aos necessitados deve ser entendido não como a perda de algum bem, antes, como um privilégio que é-nos concedido pela graça de Deus, que nos capacita a sermos generosos e a suportar com paciência as tribulações.
Calvino comenta sobre isso em diversas ocasiões:
Os membros de Cristo têm o dever de ministrar uns aos outros, de modo que, quando nos dispomos a socorrer nossos irmãos, não fazemos mais do que desempenhar o ministério que é também dever deles. Por outro lado, negligenciar os santos, quando necessitam de nosso socorro, é algo mais do que apenas ausência de bondade; é usurpá-los daquilo que lhes é devido.[2] Ainda que seja universalmente consensual que é uma virtude louvável prestar ajuda ao necessitado, todavia nem todos os homens consideram o dar como sendo uma vantagem, nem tampouco o atribuem à graça de Deus. Ao contrário disso, acreditam que alguma coisa sua, ao ser doada, perdeu-se.[3] No entanto, Paulo declara que quando prestamos auxílio aos nossos irmãos, devemos atribuí-lo à graça de Deus, e devemos considerá-lo um extraordinário privilégio a ser ardorosamente buscado. (…) Os homens rapidamente fracassam quando não são sustentados pelo Espírito do Senhor, que é o Autor de toda consolação, e uma inveterada carência de fé confiante nos permeia e nos mantém afastados de todos os deveres de amor até que superemos tudo isso pela graça do mesmo Espírito”.[4]
Pregando em 30 de outubro de 1555, disse: “Deus mescla rico e pobre de um modo que eles podem se reunir e manter comunhão um com o outro, de maneira que o pobre recebe e o rico dá”.[5]
No entanto, esta ajuda não poderá ser com arrogância; antes deve ser praticada com amor, prontidão, humildade, cortesia, simpatia e alegria. Aliás, somente assim as nossas esmolas se constituem em sacrifício agradável a Deus: “A esmola é um sacrifício agradável a Deus. Pois quando diz que Deus ama ao doador contente, ele deduz o contrário, ou seja: que Deus rejeita o constrangimento e a coerção. Não é sua vontade dominar-nos como tirano; Ele nos revela como Pai, portanto requer de nós a espontânea obediência de filhos”.[6]
Todavia, Calvino constata com tristeza:
Quase ninguém é capaz de dar uma miserável esmola sem uma atitude de arrogância ou desdém. (…) Ao praticar uma caridade, os cristãos deveriam ter mais do que um rosto sorridente, uma expressão amável, uma linguagem educada. Em primeiro lugar, deveriam se colocar no lugar daquela pessoa que necessita de ajuda, e simpatizarem-se com ela como se fossem eles mesmos que estivessem sofrendo. Seu dever é mostrar uma verdadeira humanidade e misericórdia, oferecendo sua ajuda com espontaneidade e rapidez como se fosse para si mesmos. A piedade que surge do coração fará com que se desvaneça a arrogância e o orgulho, e nos prevenirá de termos uma atitude de reprovação ou desdém para com o pobre e o necessitado.[7]
Em nossa beneficência, nada devemos esperar em troca, ainda que esta seja uma prática comum. Aliás, “quando damos nossas esmolas, nossa mão esquerda deve ignorar o que a mão direita fez”.[8]
Comentando o Salmo 68 enfatiza que o Deus da glória é também o Deus misericordioso; em seguida observa a atitude pecaminosa comum aos homens: “Geralmente distribuímos nossas atenções onde esperamos nos sejam elas retribuídas. Damos preferência a posição e esplendor, e desprezamos ou negligenciamos os pobres”.[9]
E quanto à ingratidão tão comum ao gênero humano? Bem, em nossa ajuda aos nossos irmãos não devemos nos preocupar com isso, visto que “ainda que os homens sejam ingratos, de modo que pareça termos perdido o que lhes damos, devemos perseverar em fazer o bem”.[10] E mais: “…. não dependemos da gratidão humana, e, sim, de Deus que Se coloca no lugar do pobre como devedor, para que um dia venha restituir-nos cheio de solicitude, tudo quanto distribuímos….”.[11]
Como princípio orientador que deve permear todas as nossas ações, temos o amor. “O amor é o único candidato para exercer a função de absoluto moral que não é contraproducente, ou seja, que não se anula a si mesmo em sua ação”.[12] O homem é livre para servir a Deus e ao seu próximo, realizando-se na execução deste propósito. Neste sentido, podem-se compreender as palavras de Agostinho (354-430): “Conserva, pois, a caridade e fica tranquilo (…). Ama, e assim não poderás fazer senão o bem”.[13] A ética do amor reclama o nosso compromisso intelectual e vivencial.
Sabemos quão difícil é amar o nosso próximo e, ao mesmo tempo, ainda que o nosso próximo não nos acompanhe neste raciocínio, é tão fácil amar a nós mesmos. O respeitado teólogo holandês Bavinck (1854-1921), coloca a questão nestes termos: “O amor ao próximo frequentemente encontra pouco suporte no próximo. As pessoas geralmente não são tão amáveis a ponto de nós podermos, naturalmente, sem esforço e luta, apreciá-las e amá-las como amamos a nós mesmos”.[14]
O amor exigido por Cristo encontra o seu modelo no amor do Pai por Ele[15] e, por meio dele, por todo o seu povo. Como escrevemos em outro lugar: A santidade absoluta de Deus se revela na cruz, onde o seu amor e a sua justiça se evidenciam de forma eloquente e perfeita.[16] A cruz enfatiza o Deus santo e majestoso, zeloso por sua glória.[17] A cruz não fez Deus nos amar, antes, o Seu amor por nós a produziu e se revelou ali.[18] A cruz é a expressão do amor e da justiça gloriosa de Deus. “O Cristianismo se distinguiu unindo justiça e amor na cruz”, conclui Bavinck.[19]
Calvino resume:
Na cruz de Cristo, como num magnificente teatro, a inestimável bondade de Deus é exibida diante do mundo inteiro. Em todas as criaturas, de fato, tanto elevadas quanto humildes, a glória de Deus resplandece, porém em parte alguma ela resplandeceu mais gloriosamente do que na cruz, no fato de que ali houve uma extraordinária mudança de coisas, sendo ali manifesta a condenação de todos os homens, o pecado sendo apagado, a salvação sendo restaurada nos homens; e, em suma, o mundo inteiro foi renovado e cada coisa restaurada à boa ordem.[20]
Portanto, não nos iludamos. O amor pressupõe absolutos que envolvem misericórdia, bondade e justiça. Amar é comprometer-se com absolutos. Na cruz temos a justificação do pecador e a justificação do amor de Deus que é justo.[21] O princípio para nós, é que em nome de um sentimento genérico chamado de amor, não posso, simplesmente, me tornar cativo de toda sorte de paixões, interesses e flertes culturais.
A ética cristã é um desafio constante à sua aplicação às novas situações que o homem se encontra. É uma tentativa humana de entender e aplicar os princípios divinos à cotidianidade humana. Não existe ética sem absolutos.[22] A ética cristã exigirá sempre de nós discernimento, amor, humildade e submissão a Deus. Fé em Deus tem como contraparte o amor para com todos os santos.
Maringá, 28 de maio de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] João Calvino, Efésios, (Ef 4.28), p. 146.
[2]João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.1), p. 186-187. Beza narra que com o grande crescimento da igreja em Genebra, composta intensamente de imigrantes, “deu azo a que os estrangeiros que aqui vinham radicar-se formassem uma associação com vistas a subvencionar as diretas necessidades de seus pobres, para que a cidade não fosse sobrecarregada em demasia” (Theodoro de Beza, A Vida e a Morte de João Calvino, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 38).
[3]Quando fazemos o bem nada perdemos; é Deus mesmo quem nos recompensará, na eternidade e aqui: “O que sai de nós para alguém, parece diminuir o que possuímos; mas o tempo da ceifa virá, quando os frutos aparecerão e serão recolhidos. Pois o Senhor considera o que é doado aos pobres como sendo doado a Ele mesmo, e um dia reembolsará o doador com fartos juros. (…) Esta colheita deve ser entendida tanto em termos de recompensa espiritual de vida eterna com também sendo uma referência às bênçãos terrenas com as quais o Senhor agracia o benfeitor. Não é somente no céu que o Senhor recompensará os feitos nobres do justo, mas o fará ainda neste mundo” (João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.6), p. 189).
[4]João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 8.1), p. 166.
[5] João Calvino, Sermon Dt 15.11-15 (Sermão 95): In: Herman J. Selderhuis, ed. Calvini Opera Database 1.0, Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 27), p. 342.
[6]João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.7), p. 190. Comentando Romanos, analisando uma possibilidade de interpretação da palavra “liturgia” empregada por Paulo, escreve: “Paulo, estou plenamente certo, está se referindo a algum tipo de sacrifício feito pelos crentes, quando dão de sua própria subsistência para mitigar a pobreza de seus irmãos. Ao quitarem uma dívida de amor, à qual se achavam penhorados, oferecem a Deus, ao mesmo tempo, um sacrifício de aroma suave” (João Calvino, Romanos, 2. ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 15.27), p. 514-515).
[7]João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 39.
[8]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 18, (At 5.1), p. 196.
[9]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 68.4-6), p. 645.
[10] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 8.10), p. 173. “É realmente verdade que não há nada que fira tanto os que possuem uma disposição mental ingênua que quando os perversos e ímpios os recompensam de forma um tanto desonrosa e injusta. Mas quando ponderam sobre esta consoladora consideração, de que Deus não é menos ofendido com tal ingratidão do que aqueles a quem se faz a injúria, eles não têm nenhuma justificativa de se magoarem com tanto excesso” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 38.19-20), p. 192).
[11] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 16.2), p. 500.
[12] Norman L. Geisler, La Etica Cristiana Del Amor, Miami: Editorial Caribe, 1977, p. 120.
[13]Agostinho, Comentário da Primeira Epístola de São João,São Paulo: Paulinas, 1989, (1Jo 5.3), p. 208.
[14]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 23.
[15]Aquelequefoioferecidopornós,inimigosdeDeus,foioSeupróprioFilho,queédescritoporPaulocomoo“Amado”(Ef1.6). De fato, antes da criação de todas as coisas, antes da existência dos anjos ou de qualquer outra criatura, Jesus Cristo era e sempre será o “Amado”. “O amor do Pai para o Filho é, portanto, o arquétipo de todo o amor” (W. Gunther; H.-G. Link, Amor: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 200).
[16] “A cruz e a coroa revelam não apenas as virtudes do Filho, mas também do Pai. Todos os atributos divinos alcançam plena expressão aqui. Dentre todas elas, uma sobressai: a justiça do Pai. Se Ele não tivesse sido justo, certamente não teria entregue Seu Filho Unigênito. E também, se não fosse justo, Ele não teria recompensado o Filho por Seu sofrimento. Mais, por meio dos louvores da multidão salva, o Pai (bem como o Filho) é glorificado” (William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004(Jo 17.1), p. 754). “A cruz se levanta como testemunho da infinita dignidade de Deus e o infinito ultraje do pecado” (John Piper, A Supremacia de Deus na Pregação, São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 31).
[17]“Não importa qual fosse, pois, a ignomínia que pudessem ter visto na cruz, qualificada a confundir os crentes, não obstante Cristo testifica que a mesma cruz traz-lhe glória e honra” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 13.31), p. 78).
[18]Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, v. 1), p. 426.
[19] Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 179.
[20]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1981, v. 18, (Jo 13.31), p. 73.
[21] Veja-se: Charles Leiter, Justificação e Regeneração, São Paulo: Editora Fiel, 2015, p. 38.
[22] “Nunca se pode ter moral verdadeira sem absolutos. Nós podemos chamá-la de moral, mas sempre termina com ‘eu gosto’, ou contrato social, nenhum dos quais é a moral. (…) E não tendo nenhum absoluto, o homem moderno não tem categorias. Não se podem ter respostas verdadeiras sem categorias, e estes homens não podem ter outras categorias, além das pragmáticas e tecnológicas” (Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 24).