Uma oração intercessória pela Igreja (55)
5. Amor para com todos os santos (Continuação)
A fé nos une a Deus. O amor, por ter sua origem em Deus, nos une com nossos irmãos e deve se estender a todas as pessoas. Notemos, portanto, que a fé e o amor são dons de Deus, que nos atrai para si nos unindo no mesmo propósito.
A nossa religião deve ir além do ódio que, por vezes nos divide, se plenificando, por graça, no dom do amor de Deus que nos une.
O amor nunca é um mero sentimento ou ato isolado. Ele está sempre acompanhado de atitudes e gestos criativos[1] que o revelam.
Quando refletimos sobre o amor de Deus, certamente nos vem à mente os seus atos de amor que envolvem a encarnação, os sofrimentos e morte de Cristo. Ainda que estes fatos não esgotem o grandioso e inexplicável amor de Deus que excede em muito a nossa capacidade de compreensão, sem dúvida serve como ilustração vívida do seu amor pela sua Igreja. Neste sentido, Paulo acentua: “Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8).
Lloyd-Jones (1899-1981) coloca a questão nestes termos:
O amor não é certo sentimento benigno ou um sorriso, mas uma atitude que determina o que fazemos. É impossível falar do amor cristão sem falar de ações decorrentes do mesmo, assim como não se pode falar do amor divino sem mencionar a criação, a revelação do Antigo Testamento, a vinda de Cristo, a cruz e o derramamento do Espírito Santo.[2]
O amor revela a nossa comunhão com Cristo. A mensagem do Evangelho se propõe, entre outras coisas, a que vivamos e expressemos o amor de Deus em nós. O Senhor orou ao Pai neste sentido:
19 E a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade. 20 Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; 21 a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste. 22 Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos; 23 eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim. 24 Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que vejam a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo. 25 Pai justo, o mundo não te conheceu; eu, porém, te conheci, e também estes compreenderam que tu me enviaste. 26 Eu lhes fiz conhecer o teu nome e ainda o farei conhecer, a fim de que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles esteja. (Jo 17.19-26).
O Reformador João Calvino (1509-1564) escreveu bastante sobre esse assunto, tendo como ponto de partida o fato de sermos todos criados à imagem de Deus. Usarei com liberdade os seus escritos.
A imagem de Deus estampada no homem
“A imagem de Deus deve ser um vínculo de união especialmente sagrado. Por isso, aqui não se faz qualquer distinção entre amigo e inimigo, pois os perversos não podem anular o direito natural”.[3] Deste modo, “nosso amor deve ser visivelmente estendido a toda a raça humana”.[4]Entretanto, nosso dever de amar o próximo não reside nele mesmo, mas sim na consideração que devemos dar ao fato dele ser a imagem de Deus.[5] Continua Calvino:
Com efeito, para que não desanimemos em fazer o bem [Gl 6.9], o que de outra forma necessariamente haveria de acontecer imediatamente, convém adicionar esse outro ponto que o Apóstolo menciona: que a caridade é paciente, não se irrita [1Co13.4, 5]. O Senhor preceitua que se deve fazer o bem a todos em geral, os quais em grande parte são muitíssimo indignos, se forem estimados em seu próprio mérito. Mas aqui a Escritura nos apresenta uma excelente razão, quando ensina que não se deve atentar para o que os homens mereçam em si próprios, pelo contrário, deve-se levar em conta a imagem de Deus em todos, à qual devemos toda honra e amor. Entretanto, essa mesma imagem deve ser mais diligentemente observada nos domésticos da fé [Gl 6.10], até onde foi ela renovada e restaurada pelo Espírito de Cristo.[6]
Não há desculpas para nós nos omitirmos em nosso amor e perdão:
Portanto, seja quem for que se apresente a nós como necessitado do nosso auxílio, não há o que justifique que nos neguemos a servi-lo. Se dissermos que é um estranho, o Senhor imprimiu nele uma marca que deveríamos reconhecer facilmente. Se alegarmos que é desprezível e de nenhum valor, o Senhor nos contestará, relembrando-nos que o honrou criando-o à Sua imagem. Se dissermos que não há nada que nos ligue a ele, o Senhor nos dirá que se coloca no lugar dele para que reconheçamos nele os benefícios que Ele nos tem feito. Se dissermos que ele não é digno de que demos sequer um passo para ajudá-lo, a imagem de Deus, que devemos contemplar nele, é digna de que por ela nos arrisquemos, com tudo o que temos. Mesmo que tal homem, além de não merecer nada de nós também nos fez muitas injúrias ultrajantes, ainda assim isso não é causa suficiente para que deixemos de amá-lo, agradá-lo e servi-lo. Porque, se dissermos que ele não merece nada disso de nós, Deus nos poderá perguntar que é que merecemos dele. E quando Ele nos ordena que perdoemos aos homens as ofensas que nos fizeram ou fizerem, é como se o fizéssemos a Ele.[7]
Considerando a possibilidade de nos determos equivocadamente na maldade alheia, diz: “Se com nosso amor cobrimos e fazemos desaparecer as faltas do próximo, considerando a beleza e a dignidade da imagem de Deus nele, seremos induzidos a amá-lo de coração. (Ver Hb 12.16; Gl 6.10; Is 58.7; Mt 5.44; Lc 17.3,4)”.[8]
Maringá, 28 de maio de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] “Amor verdadeiro sempre busca maneiras de dar” (John MacArthur, Eu Amo a Tua Igreja, ó Deus!: In: John MacArthur, et. al. Avante, Soldados de Cristo: uma reafirmação bíblica da Igreja, São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 15).
[2]James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos, Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 384.
[3]João Calvino, Gálatas,São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 5.14), p. 164.
[4] João Calvino, Exposição de Hebreus,(Hb 6.10), p. 160. Veja-se também: João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 135.
[5]“A essência da natureza humana é seu ser [criado] à imagem de Deus. Todo o mundo é uma revelação de Deus, um espelho de seus atributos e perfeições. Toda criatura, ao seu próprio modo e grau, é a incorporação de um pensamento divino. Mas, entre as criaturas, apenas o ser humano é a imagem de Deus, a mais exaltada e mais rica autorrevelação de Deus e, consequentemente, a cabeça e a coroa de toda a criação, a imago Dei e o epítome da natureza” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada – Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 540).
[6]João Calvino, As Institutas ou Tratado da Religião Cristã, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, III.7.6. Ver também: João Calvino, Exposição de Hebreus,(Hb 6.10), p. 160.
[7] João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17), p. 190-191.
[8] João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã,p. 38.