Uma oração intercessória pela Igreja (28)
4.1.4.3. A Posição Bíblico-Reformada
Na história da Igreja houve dois Concílios que foram fundamentais para definir a questão das duas naturezas de Cristo. O primeiro deles foi o de Nicéia, reunido em 325 e, o segundo – o mais importante –foi o de Calcedônia, reunido de 8 a 31 de outubro de 451, com a presença de mais de 500 bispos e vários delegados papais, que como de costume o representavam. Calcedônia ratificou o Credo de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381). O seu objetivo era estabelecer uma unidade teológica na Igreja.
O seu Credo foi rascunhado em 22 de outubro por uma comissão presidida por Anatólio de Constantinopla († 458), encontrando a sua redação final, possivelmente na 5ª Sessão, na quinta-feira, de 25 de outubro.[1] Calcedônia rejeitou o Nestorianismo (duas pessoas e duas naturezas) e o Eutiquianismo (uma pessoa e uma natureza), afirmando que Jesus Cristo é uma Pessoa, sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem (uma pessoa e duas naturezas). “….Calcedônia pronunciou-se não só contra a separação como contra a fusão”[2] das duas naturezas de Cristo. Todavia, a noção de mistério esteve presente nesta confissão, por isso, ela não tentou explicar o que as Escrituras não esclareciam.[3]
Berkhof (1873-1957) resume as “mais importantes implicações” da declaração teológica de Calcedônia, como se segue:[4]
1) As propriedades de ambas as naturezas podem ser atribuídas a uma só Pessoa, como por exemplo, onisciência e conhecimento limitado;
2) Os sofrimentos do Deus-Homem podem ser reputados como real e verdadeiramente infinitos, ao mesmo tempo em que a natureza divina não é passível de sofrimento;
3) É a divindade, e não a humanidade, que constitui a raiz e a base da personalidade de Cristo;
4) O Logos não se uniu a um indivíduo distinto, e sim à natureza humana. Não houve primeiro um homem já existente com quem a segunda Pessoa da Deidade teria se associado. A união foi efetuada com a substância da humanidade no ventre da virgem.
Como sabemos, os documentos confessionais da Igreja elaborados e/ou sancionados, por vezes, em Concílios, não são Palavra de Deus. Contudo, ao longo da história Deus tem propiciado e capacitado a Igreja a se pronunciar desta forma em resposta à Revelação, podendo deste modo aprofundar a sua fé na sã doutrina, tendo uma compreensão mais abrangente da Palavra e, consequentemente, ser um porto seguro contra todas as ondas de heresias que surgem, tentando seduzir os fiéis com o som de variados ventos de doutrina que em seu cerne sempre reduzem ou negam a glória de Cristo, que no final das contas, é a mesma coisa.[5]
Os Credos da Igreja foram fundamentais na compreensão mais profunda e preservação da doutrina bíblica. Os quatro Concílios Ecumênicos, reunindo as igrejas do Oriente e do Ocidente, foram de extrema relevância na compreensão da Divindade, Humanidade e Unipersonalidade de Cristo.
Stott (1921-2011) assim resume:
Assim, o Concílio de Nicéia (325) garantiu a verdade de que Jesus é verdadeiro Deus, enquanto o Concílio de Constantinopla (381) garantiu que Jesus é verdadeiro homem. Em seguida, o Concílio de Éfeso (431) garantiu que, apesar de Deus e homem, Jesus é só uma pessoa, enquanto o Concílio de Calcedônia (451) garantiu que, apesar de uma única pessoa, ele tinha duas naturezas, divina e humana.[6]
Um decreto ou uma declaração teológica, por mais relevantes que seja, não põe fim imediatamente a um sistema. A ortodoxia, por sua vez, não é criada por intermédio de pronunciamentos oficiais, embora saibamos que todos eles sejam necessários e relevantes para nortear a Igreja e enriquecer a sua fé.[7] Com isso, estamos apenas querendo indicar que, do mesmo modo que Nicéia não colocou um ponto final na questão Trinitária, Calcedônia, não determinou o fim dos problemas Cristológicos. As heresias permaneceram em diversas regiões, especialmente na Igreja Oriental.[8] Contudo, Calcedônia se constitui num marco decisório na vida da Igreja, estabelecendo uma compreensão Cristológica que, se não é a final, é a que pôde ser alcançada, pelo Espírito, dentro da Revelação. No entanto, a Palavra é a fonte de toda a genuína teologia, portanto, se Calcedônia estabeleceu balizas, e graças a Deus por isso, devemos permanecer sempre atentos à Palavra de Deus, à luz da qual nós e a nossa teologia seremos julgados.
Ainda que os Reformadores do século XVI tenham aceitado a decisão de Calcedônia, houve uma diferença entre eles quanto a alguns detalhes que não eram de somenos importância, mas que escapam em muito ao escopo destes estudos.
Calvino (1509-1564) foi o Reformador que mais de perto seguiu o pronunciamento de Calcedônia. Escreveu:
Com efeito, que se diz o Verbo haver-Se feito carne (Jo 1.14), não se deve assim entender que se haja sido Ele ou convertido em carne, ou confusamente misturado à carne; ao contrário, porque no ventre da Virgem para Si escolheu um templo em que habitasse, e Aquele Que era o Filho de Deus Se fez o Filho do Homem, não mediante confusão de substância, mas mercê de unidade de pessoa. Pois, na verdade, afirmamos ser a Divindade assim associada e unida à humanidade que a cada natureza permaneça integral sua propriedade e, todavia, dessas duas constitua um Cristo único.[9] Se é possível encontrar alguma coisa que se assemelhe ao mistério da encarnação, a comparação com o homem é sempre apropriada. O que vemos é que o ser humano é composto de duas naturezas, sendo, porém, que uma não se mistura com a outra, cada qual retendo a sua propriedade, porque a alma não é corpo, e o corpo não é alma. Claro está que o que particularmente se diz da alma não se pode convenientemente dizer do corpo, e, paralelamente, o que se diz do corpo não pode ser dito com propriedade da alma; quanto ao homem, dele não se pode dizer o que é próprio do corpo ou da alma, separadamente dele. Finalmente, as coisas que em particular são pertencentes à alma, são transmitidas ao corpo, e as do corpo à alma, reciprocamente. Entretanto, a pessoa assim composta dessas duas substâncias é um só homem, e não muitos. Tal maneira de falar significa que há no homem uma natureza composta de duas unidades, e que, todavia, há diferença entre ambas. A Escritura fala dessa forma de Jesus Cristo. Algumas vezes Lhe atribui o que só pode ser reportado à humanidade; algumas vezes o que pertence especificamente à divindade; algumas vezes o que se aplica conjuntamente às duas naturezas unidas, e não somente a uma delas. E até exprime tão diligentemente a união das duas naturezas existentes em Jesus Cristo, que comunica a uma o que pertence à outra – maneira de falar à qual os antigos doutores davam o nome de comunicação de propriedades.[10]
Também as Confissões Reformadas, seguiram a mesma interpretação de Calcedônia, apresentando obviamente novas contribuições que esclareciam certas questões da época.[11]
A Confissão de Westminster (1647), a mais madura Confissão Reformada, declara:
O Filho de Deus, a segunda Pessoa da Trindade, sendo verdadeiro e eterno Deus, da mesma substância do Pai e igual a Ele, quando chegou o cumprimento do tempo, tomou sobre si a natureza humana com todas as suas propriedades essenciais e enfermidades comuns, contudo sem pecado, sendo concebido pelo poder do Espírito Santo no ventre da Virgem Maria, e da substância dela. As duas naturezas, inteiras, perfeitas e distintas – a Divindade e a Humanidade – foram inseparavelmente unidas em uma só pessoa, sem conversão, composição ou confusão; essa pessoa é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, porém um só Cristo, o único Mediador entre Deus e o homem (Capítulo VIII.2).
Do mesmo modo, o Catecismo Menor de Westminster (1647):
21. Quem é o Redentor dos eleitos de Deus?
O único Redentor dos eleitos de Deus é o Senhor Jesus Cristo, que, sendo o eterno Filho de Deus, se fez homem, e assim foi e continua a ser Deus e homem em duas naturezas distintas, e uma só pessoa, para sempre.[12]
22. Como Cristo, sendo o Filho de Deus, se fez homem?
Cristo, o Filho de Deus, fez-se homem tomando um verdadeiro corpo e uma alma racional, sendo concebido pelo poder do Espírito Santo no ventre da virgem Maria, e nascido dela, mas sem pecado.[13]
São Paulo, 21 de abril de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Compare as informações de J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 257; P. Schaff, The Creeds of Christendom, 6. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Revised and Enlarged), 1977, v. 1, p. 29; Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberingo, org. História dos Concílios Ecumênicos, São Paulo: Paulus, 1995, p. 97-98.
[2]G.C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, São Paulo: ASTE, 1964, p. 55. Bavinck comenta que “Somente em Calcedônia a tendência nestoriana de separar o divino e o humano e a tendência eutiquiana de misturar os dois receberam uma formulação definitiva” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 3, p. 240).
[3]Veja-se: G.C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, São Paulo: ASTE, 1964, p. 67ss; Carl E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, São Leopoldo, RS. Sinodal, 1990, v. 1, p. 492; Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 3, p. 307-308.
[4] Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 98. Esquema bem parecido pode ser encontrado também, em Charles Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1976, (Reprinted), v. 2, p. 391-392.
[5] Como nos diz Bavinck a respeito de Calcedônia, como princípio, pode ser dito a respeito de todos os Concílios e pronunciamentos eclesiásticos: “A linguagem de Calcedônia não é sacrossanta e está aberta a reformulação. Porém, até agora, todos os esforços para melhorá-la falharam, e a igreja não pode fazer nada melhor hoje em dia do que manter a doutrina das duas naturezas” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 3, p. 243).
[6] John Stott, O Incomparável Cristo, São Paulo: ABU., 2006, p. 83.
[7]“Uma confissão teológica pobre pode, em última análise, conduzir apenas à vida cristã empobrecida” (Carl R. Trueman, O imperativo confessional, Brasília, DF.: Editora Monergismo, 2012, p. 254).
[8] Além das indicações já feitas, Vejam-se: Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 99-102; J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 258; B. Lohse, A Fé Cristã Através dos Séculos, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1981, p. 101-106; P. Tillich, História do Pensamento Cristão, São Paulo: ASTE., 1988, p. 91ss.; J.L. Gonzalez, A Era das Trevas, São Paulo: Vida Nova, (Uma História Ilustrada do Cristianismo), 1980-1988, p. 102ss.; Carl E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, v. 1, p. 492ss.
[9] J. Calvino, As Institutas, II.14.1.
[10]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.4), p. 72.
[11] Vejam-se, por exemplo: Catecismo de Heidelberg, Pergs. 35 e 48; A Segunda Confissão Helvética, Cap. XI; A Confissão Escocesa, Cap. VI; A Confissão Belga, Arts. 9,10,18,19.
[12] Mesmo teor da Perg. 36 do Catecismo Maior.
[13] Mesmo teor da Perg. 37 do Catecismo Maior.