Uma oração intercessória pela Igreja (24)
4.1.3. Fé no Senhor Jesus: Verdadeiro homem
A mitologia grega abunda em histórias de deuses que andaram na terra como homens. Pareciam pessoas. Agiam como pessoas. Mas numa ocasião crítica punham de lado o seu disfarce e, usando o poder divino, mostravam-se tais quais eram. Nunca chegavam a ser homens, mas deuses disfarçados – Leon Morris (1914-2006).[1]
Para a execução de sua tarefa infinitamente difícil, era mister que o Mediador fosse ungido pelo Espírito Santo, pois deve-se ter em mente que o Filho de Deus era também o filho do homem. A segunda pessoa da Trindade, sendo verdadeiramente divina, possui duas naturezas: a divina e a humana. A natureza divina não necessita de fortalecimento, porém a natureza humana, sim. Portanto, todas as qualificações necessárias foram conferidas ao Mediador quando, em seu batismo, o Espírito Santo, simbolizado por uma pomba, desceu sobre ele em plena medida – William Hendriksen (1900-1982).[2]
O episódio narrado por Lucas em Atos 14.8-18 ilustra bem a crença do povo. E, neste caso, há algo curioso: Júpiter (Zeus entre os gregos) e Mercúrio (Hermes entre os gregos), os quais foram identificados pelo povo como sendo Barnabé e Paulo, respectivamente (At 14.12), eram associados à região pela literatura latina.
Ovídio (42 a.C.-18 d.C.), em sua obra principal, Metamorfoses, narra que o pobre casal, Filemon e Báucis, hospedou em sua humilde casa, Júpiter e Hermes (= Mercúrio), que vieram à sua cidade disfarçados de mortais à procura de uma hospedagem, e que não conseguiram pousada em nenhuma das mil casas da região, exceto na do casal. Filemon e Báucis, por este ato de hospitalidade, conta-nos Ovídio, foram recompensados sendo poupados do dilúvio que destruiu as casas de seus vizinhos não hospitaleiros, tendo, inclusive, num ato simultâneo a sua pequena casa transformada num templo e, a pedido receberam a incumbência de serem sacerdotes e guardiães do santuário de Júpiter e, conforme solicitaram, Filemon e Báucis, morreram juntos.[3]
Esta lenda que já era bem conhecida nos tempos de Paulo e Barnabé, esclarece porque tão prontamente o povo os identificou com tais divindades após o milagre realizado por Deus por intermédio deles.[4] Além disso, a ideia de que as divindades assumissem temporariamente uma forma humana, já fazia parte da religiosidade do povo.
Homero, o grande poeta grego, em sua Odisseia,escrita por volta no séc. IX a.C., disse: “Os deuses tomam às vezes a figura de estrangeiros, vindos de longes terras e, sob aspectos diversos, vão de cidade em cidade, a fim de ficarem conhecendo quais os homens soberbos e quais os justos”.[5]
Em outra passagem, na mesma obra, Homero narra como a deusa Palas Atena, filha de Zeus (= Júpiter), se aproximou em determinado momento, do seu protegido, Ulisses. “Dele se abeirou Atena, sob o aspecto de um adolescente pastor de ovelhas, gentil como são os filhos dos príncipes, os ombros recobertos de dupla e fina capa, trazendo nos pés reluzentes sandálias e na mão um cajado”.[6]
Ulisses, no diálogo que se sucede após a identificação da deusa, diz: “Deusa, quando te aproximas de um mortal, muito dificilmente este te reconhecerá, por hábil que seja, porque tomas todos os aspectos”.[7]
Ao que parece, já no final do primeiro século,[8] surge dentro do cristianismo um grupo um tanto “amorfo”[9]que partindo do princípio filosófico de que a matéria é essencialmente má, afirmava que Jesus não tinha corpo real. Deste modo, ele era uma espécie de fantasma, sem carne e sangue reais. Jesus era uma ilusão; parecia homem, mas não era (docetismo).[10] Dentro dessa compreensão, o filho de Deus, que era real, apenas usava o Jesus humano como meio de expressão. A encarnação, portanto, era apenas uma ilusão.[11] Por trás deste conceito, estava a concepção de que Deus não pode sofrer; logo, se Cristo sofreu, ele não era Deus; e se ele era Deus, não poderia sofrer. Então, o sofrimento de Cristo teria sido apenas na aparência, não real.
Inácio, bispo de Antioquia, no início do segundo século (c. 110) combateu ferreamente o docetismo, afirmando a divindade e a humanidade de Cristo.[12]
Do mesmo modo, Policarpo (c. 75-c. 160), bispo de Esmirna, escreve aos filipenses: “Qualquer que não confesse que Jesus Cristo veio em carne, é um anticristo. E quem não confessa o testemunho da cruz, é do diabo”.[13]
Alguns diziam que quando Ele andava, não deixava pegadas, porque seu corpo não tinha peso nem substância. João, de modo especial, combateu este tipo de conceito em seus escritos.[14] (Vejam-se: Jo 1.14; 20.30-31; Cl 1.19; 2.9; 1Jo 2.22; 4.1-3,15; 5.1,5,6; 2Jo 7).[15]
O Antigo Testamento aponta para a divindade e humanidade do Messias, Jesus Cristo. E mais; o próprio Senhor Jesus está ali.[16] Por isso, toda pregação bíblica deve ser Cristocêntrica.[17]
Em Isaías, lemos: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (Is 9.6).
Paulo, inspirado por Deus, faz eco a esse ensinamento, dizendo: “3 Com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi 4 e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 1.3-4).
Kuyper (1837-1920) escreveu com sensibilidade bíblica:
Como o ouvido não pode ouvir sem som e o olho não pode ver sem luz, também a nossa natureza humana é incompleta sem a luz e a habilitação do Espírito Santo. Portanto, quando o Filho assumiu sua natureza humana, ele a tomou exatamente como ela é, isto é, incapaz de qualquer ato santo sem o poder do Espírito Santo. Então ele foi gerado pelo Espírito Santo para que, desde o começo, sua natureza humana fosse ricamente dotada com poderes. O Espírito Santo desenvolveu esses poderes e ele foi consagrado ao seu ofício pela comunicação à sua natureza humana, dos dons messiânicos, pelos quais ele ainda intercede por nós como o nosso Sumo Sacerdote e governa sobre nós como nosso Rei. Por essa razão ele foi guiado, impelido, inspirado e apoiado pelo Espírito Santo em cada passo de seu ministério messiânico.[18]
Retornando às Escrituras, Paulo escreve aos Coríntios: “Sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória” (1Co 2.8).
“O paradoxo é surpreendente [Jo 1.14]. O Criador assumiu a fragilidade humana de suas criaturas. O eterno entrou no tempo. O onipotente fez-se vulnerável. O santíssimo expôs-se à tentação. E por fim o imortal morreu”, constata Stott (1921-2011).[19]
Considerando este ponto, veremos no próximo post, ainda que de forma esquemática algumas afirmações e demonstrações da verdadeira Humanidade de Cristo.
São Paulo, 21 de abril de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Leon Morris, O Senhor do Céu, Queluz: Núcleo, 1979, p. 63.
[2]William Hendriksen, Comentário do NT – Mateus v. 1, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, (Mt 3), p. 307.
[3]Veja-se: Ovídio, As Metamorfoses,Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, 1983, Livro VIII, p. 214-216.
[4]Stott informa-nos que: “Duas inscrições e um altar de pedra foram encontrados perto de Listra, e eles indicam que Zeus e Hermes eram adorados juntos, como divindades padroeiras locais” (John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da terra,São Paulo: ABU., 1994, (At 14.11-15a), p. 258).
[5] Homero, Odisseia,São Paulo: Abril Cultural, 1979, XVII, p. 162.
[6] Homero, Odisseia,XIII. p. 123.
[7] Homero, Odisseia,XIII. p. 125.
[8] Há um certo consenso por parte dos Pais da Igreja em atribuírem a Simão, o Mágico (At 8.9ss), a origem do gnosticismo (Veja-se por exemplo, Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1995, I.23.2. p. 99s.); todavia, nos detalhes são divergentes, devido à variedade de grupos gnósticos. (Vejam-se: J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 16ss; B. Hägglund, História da Teologia, Porto Alegre, RS. Concórdia, 1973, p. 27).
[9] Conforme expressão de C.H. Dodd, A Interpretação do Quarto Evangelho, São Paulo: Paulinas, 1977, p. 134 e de J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 16. Do mesmo modo entende, A.F. Walls, Gnosticismo: In: J. D. Douglas, ed. ger. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 2, p. 674.
[10] Como sabemos este nome é derivado do verbo grego doke/w = “parecer”. Este ensinamento foi primariamente difundido por volta do ano 85 por Cerinto, natural de Alexandria, discípulo de Fílon.
[11] Vejam-se: M.C. Tenney, Docetismo: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Michigan: T.E.L.L., 1985, p. 175; Docetismo: In: Russel N. Champlin; João Marques Bentes, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, São Paulo: Candeia, 1991, v. 2, p. 203-205; J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 104-105.
[12] Vejam-se suas Cartas: Aos Efésios, 7,18,19,20; Aos Magnésios, 11; Aos Tralianos, 9; Aos Esmirnenses, 1-3, 7. (Veja-se a coleção de Cartas In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, 3. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1984). Devemos mencionar que apesar de Inácio combater os “docetas”, este nome só iria aparecer como designação deste tipo de pensamento, por volta do ano 200, em Serapião, que denomina este grupo de Dokhta\j (Cf. Eusébio de Cesarea, Historia Eclesiastica, Madrid: La Editorial Catolica, (Biblioteca de Autores Cristianos, v. 349-350), 1973, VI.12.6).
[13]Polycarp, The Epistle of Polycarp to the Philippians, VII. In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. The Ante-Nicene Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 1, p. 34. (Quanto a um testemunho antigo sobre o procedimento de Policarpo, Veja-se Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1985, III.1.3. p. 251-252).
[14]Notemos que nem todo “docetismo” era gnóstico, no entanto, como este era uma das características do gnosticismo, os termos foram identificados.
[15] “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.14). “30 Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. 31 Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.30-31). “Porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude” (Cl 1.19). “Porquanto, nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade” (Cl 2.9). “Quem é o mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Este é o anticristo, o que nega o Pai e o Filho” (1Jo 2.22). “1Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora. 2 Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; 3 e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo. (…) 15 Aquele que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele, e ele, em Deus”(1Jo 4.1-3,15). “1Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido. (…) 5 Quem é o que vence o mundo, senão aquele que crê ser Jesus o Filho de Deus? 6 Este é aquele que veio por meio de água e sangue, Jesus Cristo; não somente com água, mas também com a água e com o sangue. E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade” (1Jo 5.1,5,6). “Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo” (2Jo 7).
[16]“Não examinamos o Antigo Testamento apenas para encontrar os antecedentes históricos de Cristo e de seu ministério, nem mesmo para buscar referências que façam previsões sobre ele. Temos de encontrar Cristo no Antigo Testamento – não aqui e ali, mas em toda parte” (R. Albert Mohler Jr., Estudando as Escrituras para encontrar Jesus: In: D.A. Carson, org., As Escrituras dão testemunho de mim, São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 18). Quanto às implicações práticas desta perspectiva para a pregação cristã e, também, os perigos de uma abordagem inadequada, vejam-se, além do capítulo de Mohler Jr.: Sidney Greidanus, Pregando Cristo a partir do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006; Sidney Greidanus, O pregador contemporâneo e o texto antigo: interpretando e pregando literatura bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2006; Sidney Greidanus, Pregando Cristo a partir de Gênesis: Fundamentos para Sermões Expositivos, São Paulo: Cultura Cristã, 2009; Graeme Goldsworthy, Pregando toda a Bíblia como Escritura Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2013. Alguns livros inspiradores a respeito da pregação centrada em Cristo, são: Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013; D. M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992. De forma paralela ao nosso tema, porém, altamente desafiante ao tratar da Pregação expositiva: Alistair Begg, Pregando para a glória de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2014.
[17]“A pregação cristocêntrica não é simplesmente evangelística, nem confinada a uns poucos relatos do evangelho. Abrange o todo da Escritura como revelação do plano redentor de Deus, e anuncia cada passagem dentro do seu contexto” (Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 32). “Se tem de acontecer uma nova Reforma neste tempo, tem de haver uma reforma do púlpito. Essa restauração envolverá restaurar Cristo como o principal foco no púlpito. Tem de haver um retorno decisivo a fazer de Cristo o ponto focal de toda pregação” (Steven J. Lawson, O tipo de pregação que Deus abençoa, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 65). “Jesus Cristo crucificado é o tema que unifica toda a Escritura” (Ibidem, p. 28). “Se o sermão falha em exaltar Cristo, não atinge o alvo” (Ibidem, p. 25). Para uma abordagem crítica da igreja contemporânea, incluíndo, obviamente, o abandono da pregação bíblica, veja-se: Michael Horton, Cristianismo sem Cristo: O Evangelho Alternativo da Igreja Atual, São Paulo: Cultura Cristã, 2010. Do mesmo modo, enfocando mais especificamente a adoração: Michael Horton, Um Caminho Melhor, São Paulo: Cultura Cristã, 2007.
[18]Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 133-134. Veja-se também: William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Mateus 1, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, (Mt 3.16), p. 303 (especialmente).
[19]John Stott, O Incomparável Cristo, São Paulo: ABU., 2006, p. 33.