Uma oração intercessória pela Igreja (20)
4.1.2. Fé no Senhor Jesus: Verdadeiro Deus[1]
Todos quantos pensam que conhecem algo de Deus à parte de Cristo inventam para si um ídolo no lugar de Deus – João Calvino.[2]
A imaginação do homem é, por assim dizer, uma perpétua fábrica de ídolos − João Calvino.[3]
A fé em Jesus Cristo não é uma categoria abstrata ou corriqueira, essencialmente ou circunstancialmente irrelevante, como dizer: tal ônibus passa em tal avenida, enquanto na realidade a minha locomoção invariável é de automóvel ou, dizer que o preço do pepino está altíssimo, sendo que não como pepino, minha família também não aprecia o seu sabor e, nem simpatizo com quem o faz.
Por vezes é mais fácil pensar e falar abstratamente do que concretamente. Posso discorrer com entusiasmo sobre o avanço científico nas cirurgias cardíacas, transplantes de cabeça e, os riscos comuns de contaminação hospitalar. Certamente meu discurso será mais intenso e com uma gama maior de emotividade se me referir ao “complexo exame de sangue” que farei amanhã, correndo o “risco” de perder muito sangue por meio de uma “seringa enorme” diante de um técnico laboratorial que tem uma fixação insaciável por sangue… A tendência natural do ser humano, é que a minha dor, real ou suposta, sempre é maior.
A fé em Jesus Cristo como Senhor envolve a compreensão de que Ele é senhor de todas as coisas. Portanto, o é também de minha vida. Falar do senhorio de Cristo significa não apenas tratar um tanto vagamente sobre o mundo ou sobre a igreja, mas, também, que Ele é o meu Senhor.[4] E mais: a Pessoa de Cristo está associada determinantemente à sua obra. Jesus Cristo só pode de fato nos salvar, com todas as implicações desta palavra, se verdadeiramente Ele for Deus e, Deus encarnado. Em outras palavras, não podemos separar arbitrariamente a Cristologia da Soteriologia.[5] Todas as suas reivindicações só podem ser consistentes, se Ele de fato for quem disse ser.[6]
Correndo o risco de ultrapassar o propósito desse capítulo, mas, ao mesmo tempo, sentindo-me compelido pela necessidade da aplicação abaixo, chamo a atenção para a importância essencial de discernimento naquilo que ouvimos, para não sermos conduzidos à falsa doutrina e, consequentemente, à uma ética divorciada da Escritura.
Como há outras vozes querendo conquistar nossos ouvidos para nos afastar da verdade, apresentando um caminho que, à primeira vista, pode nos parecer mais convidativo e promissor, devemos perseverar no caminho verdadeiro.
Paulo recrimina o esmorecimento dos gálatas que começando a crer corretamente na graça de Deus, agora, passam a viver, como se fosse possível, pelas obras. O legalismo judaico se constituía num impedimento aos judeus cristãos: “Vós corríeis bem; quem vos impediu (e)gko/ptw)[7] de continuardes a obedecer à verdade (a)lh/qeia)?” (Gl 5.7).
Os falsos mestres, privados da verdade,[8] procuram desviar-nos dela pervertendo os ensinamentos da Palavra.
Paulo cita dois falsos mestres de seu tempo, Himeneu[9] e Fileto, que, seguindo ensinamentos gnósticos, com uma linguagem corrosiva, eliminavam a esperança na ressurreição futura, pervertendo a fé de alguns:
Além disso, a linguagem deles corrói como câncer (ga/ggraina);[10] entre os quais se incluem Himeneu e Fileto. Estes se desviaram (a)stoxe/w)[11] da verdade (a)lh/qeia), asseverando que a ressurreição já se realizou, e estão pervertendo (a)natre/pw = “arruinar”, “virar”[12]) a fé a alguns. (2Tm 2.17-18).
A falsa doutrina é contagiante e altamente corrosiva. Paulo exorta a Tito com veemência a respeito dos insubordinados, especialmente judeus: “É preciso fazê-los calar, porque andam pervertendo (a)natre/pw) casas inteiras, ensinando o que não devem, por torpe ganância” (Tt 1.11).
Por causa dos falsos mestres o caminho da verdade será infamado.
Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas (yeudoprofh/thj),[13] assim também haverá entre vós falsos mestres (yeudodida/skaloj), os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras, até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição. E muitos seguirão as suas práticas libertinas (a)se/lgeia), e, por causa deles, será infamado (blasfhme/w)[14] o caminho da verdade” (2Pe 2.1-2).
Pedro diz que o presbítero, enquanto pastor do rebanho, deve estar em condições de alimentá-lo com a Palavra e, também, saber combater àqueles que tentarão seduzir os fiéis com “palavras fictícias (plasto/j)” (2Pe 2.3).
O falso mestre é aquele que ensina a mentira, o engano: cria imagens que nada são para corromper seus ouvintes, conduzindo-os a negar o próprio Senhor Jesus Cristo e, também, à viverem libertinamente (a)se/lgeia), ou seja, de modo dissoluto e lascivo.[15] Por causa disso, o caminho do evangelho seria caluniado, reprovado, “blasfemado”. A mensagem desses falsos mestres consiste numa corrupção do evangelho.
Plasto/j parece ter o sentido aqui de palavras artisticamente elaboradas, moldadas, sugestivas, porém, falsas, forjadas em seu próprio proveito, e, que por isso mesmo estão em oposição à verdade. Curiosamente este é o termo de onde vem a nossa palavra “plástico”.[16] O ensino cristão envolve arte, mas não “arte plástica” para com a verdade.
Como cristãos, precisamos treinar os nossos ouvidos, provar o que ouvimos antes de nos saborear com o que não convém: “Porque o ouvido prova (!x;B’)(bahan)(examina, testa) as palavras, como o paladar, a comida” (Jó 34.3/Jó 12.11).
Consideremos a instrução de Tiago: “Sabeis estas coisas, meus amados irmãos. Todo homem, pois, seja pronto (Taxu\j) para ouvir (a)kou/w), tardio (Bradu/j)[17] para falar, tardio (Bradu/j) para se irar” (Tg 1.19).
Antes de termos pressa em emitir as nossas opiniões, por vezes fantasiosas, estejamos prontos a ouvir a verdadeira, poderosa e transformadora Palavra de Deus (Tg 1.18).[18] O falar tem o seu lugar e, em algumas circunstâncias a ira, porém, primeiro, ouçamos a Deus com discernimento.[19]
Lembremo-nos da instrução dada por Ambrósio (c. 334-397) ao Clero, por volta do ano 391:
Há somente um verdadeiro Mestre, o único que nunca aprendeu o que ensinou a todos. Mas os homens precisam primeiro aprender o que devem ensinar, e recebem o que têm de dar a outros. (…) Ora o que devemos aprender antes de qualquer outra coisa, senão estar silenciosos para podermos ser capazes de falar?[20]
Aprendamos a ouvir a Deus e, a partir daí, vivenciar essa Palavra em todas as esferas de nossa vida. Amém.
***
As cartas de Paulo aos Efésios, Filipenses, Colossenses e Filemon, foram escritas num período próximo, quando o Apóstolo estava preso (Ef 3.1; 4.1; Fp 1.7; Cl 4.10; Fm 9).[21] Em todas elas a doutrina da graça é ensinada. Isto evidencia que as doutrinas pregadas por Paulo, aprendidas do Senhor, não faziam parte apenas de sua mente e ensino, antes, instruía, alimentava e confortava o seu coração.[22] Em nossa dor conservamos aquilo que consideramos relevante para nós. O sofrimento é um verdadeiro depurador de nossa teologia e, consequentemente, de nossa fé.[23]
A eleição eterna de Deus descrita em Ef 1.3-14 não é uma categoria abstrata, distante e apenas ideal. Os eleitos de Deus, por inteira e incompreensível graça, após o chamado eficaz de Deus são identificáveis pela sua vida e testemunho. A nossa eleição se materializa em obediência a Deus. Por isso, os cristãos sinceros, entre outros critérios, são reconhecidos pelo fato de terem fé no Senhor Jesus e amor para com todos os santos (Ef 1.15). O amor aos nossos irmãos é a profissão de uma genuína fé.[24]
A fé e o amor, evidentes entre os efésios, resumem os Dez Mandamentos. Calvino (1509-1564) escreveu:
Paulo abrange toda a perfeição dos cristãos. Porque o primeiro alvo a que a primeira tábua da lei visa é que devemos adorar a um só Deus e nos unirmos a Ele por todas as coisas, reconhecendo-nos estar tão endividados para com esse que temos que fugir só a Ele para ter todo refúgio e nos empenharmos em passar a nossa vida inteira no seu serviço. Esse é o resumo da primeira tábua da lei. O conteúdo da segunda nada mais é senão que vivamos em conjunto em equidade e retidão, procedendo de tal modo com nosso próximo que nos esforcemos em ajudar a todos sem prejudicar a ninguém. E estamos tão certos de que Deus em sua lei apresentou uma tão boa e perfeita regra de boa vida que nada pode ser acrescido àquela. Em vista disso, não é sem razão que, nesse ponto, Paulo registre aqui a fé em Jesus Cristo e o amor como uma síntese da vida cristã como um todo, expondo aquilo ao qual devemos ser conformados e que é nosso padrão.[25]
Paulo se refere à igreja como sendo constituída por aqueles que têm fé no Senhor Jesus. No entanto, na história, o entendimento concernente à Pessoa de Cristo passou por vários embates resultantes de uma compreensão parcial, inadequada ou simplesmente herética da Pessoa do Messias.
Antes de enfocarmos em forma de esboço algumas destas principais questões, analisemos aspectos do que a Escritura nos ensina.
Maringá, 7 de abril de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Para uma abordagem exaustiva deste assunto, recomendo: Murray J. Harris, Jesus as God: The New Testament use of Theos in Reference to Jesus, Eugene, Oregon: Wipf & Stock, 2008.
[2]João Calvino, Colossenses: In: Gálatas – Efésios – Filipenses – Colossenses, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2010, (Cl 2.1-5), p. 532.
[3]João Calvino, As Institutas ou Tratado da Religião Cristã, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, I.11.8.
[4] Veja-se: Oscar Cullman, Cristologia do Novo Testamento, São Paulo: Editora Liber, 2001, p. 302.
[5] Veja-se: W. Pannenberg, Fundamentos de Cristologia, Salamanca: Ediciones Sígueme, 1973, p. 49-50. Para uma visão abrangente das questões cristológicas levantadas ao longo da história, tratando da identidade de Cristo e da salvação, veja-se: Alister E. McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica: Uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 401-501.
[6]Para um estudo sobre a Divindade e Humanidade de Cristo, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, São Paulo: Paracletos, 2002; Hermisten M.P. Costa, Fé em Jesus Cristo: Verdadeiro Deus & Verdadeiro Homem, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2015.
[7]No seu emprego militar a palavra tinha o sentido de cortar uma árvore para causar um impedimento ou, abrir uma vala que obstaculizasse temporariamente o caminho do inimigo, daí a palavra tomar o sentido de “impedimento”, “empecilho”, “obstáculo”.
[8]“Altercações sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados (a)postere/w) (= fraudadores) da verdade (a)lh/qeia), supondo que a piedade é fonte de lucro” (1Tm 6.5).
[9] Paulo se referira a este como alguém que naufragou na fé (1Tm 1.19-20).
[10]Esta palavra só ocorre aqui em todo o Novo Testamento. É deste termo que provém palavra gangrena.
[11] As três vezes que esse verbo aparece no Novo Testamento, sempre tem o sentido de desviar-se do que é correto: *1Tm 1.6; 6.21; 2Tm 6.18.
[12] A palavra é usada no sentido literal Jo 2.15: “Em tendo feito um azorrague de cordas, expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou (a)natre/pw) as mesas”.
[13] Jesus Cristo já nos alertara sobre eles. Vejam-se: Mt 7.15; 24.11,24; Lc 6.26. O apóstolo João falaria mais tarde de sua realidade presente (1Jo 4.1).
[14] O verbo Blasfhme/w, que tem o sentido de “injuriar”, “difamar”, “insultar”, “caluniar”, “maldizer”, “falar mal”, “falar para danificar”, etc., é formado de duas palavras, Bla/yij derivada de Bla/ptw = “injuriar”, “prejudicar” (* Mc 16.18; Lc 4.35) e Fhmi/ = “falar”, “afirmar”, “anunciar”, “contar”, “dar a entender”. A Blasfêmia tem sempre uma conotação negativa, de “maldizer”, “caluniar”, “causar má reputação”, etc., contrastando com Eu)fhmi/a (“boa fama” * 2Co 6.8) e Eu)/fhmoj (“boa fama” * Fp 4.8) (Eu)/ & fh/mh). No Fragmento 177 de Demócrito, lemos: “Nem a nobre palavra encobre a má ação, nem é a boa ação prejudicada pela má palavra (Blasfhmi/a)”. Paulo diz que o mal testemunho dos judeus contribuía para que os gentios blasfemassem o nome de Deus (Rm 2.24, citando Is 52.5). Compare este fato com a orientação de Paulo, 1Tm 6.1; Tt 2.5.
A falsa doutrina propicia a prática da blasfêmia (1Tm 6.3,4), bem como os falsos mestres (2Pe 2.1-2,10-12). (Em nota posterior trataremos mais detalhadamente da palavra).
[15]A) se/lgeia ocorre nos seguintes textos do Novo Testamento: Mc 7.22; Rm 13.13; 2Co 12.21; Gl 5.19; Ef 4.19; 1Pe 4.3; 2Pe 2.2,7,18; Jd 4.
[16]A palavra grega plastiko/j é derivada do verbo pla/ssw, cujo advérbio utilizado por Pedro é plasto/j. A nossa palavra plástico vem do grego (plastiko/j) passando pelo latim (plasticus), sempre de forma transliterada, significando aquilo “que tem propriedade de adquirir determinadas formas sensíveis, por efeito de uma ação exterior”.
[17] Lc 24.25.
[18]“Pois, segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas” (Tg 1.18).
[19] Sobre a importância do silêncio conforme foi tratado por alguns Pais da Igreja, veja-se uma boa sinopse em: Aelred Squire, Asking the Fathers, Westminster, Maryland: Christian Classics, 1973, p. 128-135.
[20]St. Ambrose, Three Books on the Duties of the Clergy, I.1.3-4: In: P. Schaff; H. Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, (Second Series), 2. ed. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1995, v. 10, p. 1).
[21]“Por esta causa eu, Paulo, sou o prisioneiro de Cristo Jesus, por amor de vós, gentios” (Ef 3.1). “Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados” (Ef 4.1). “Aliás, é justo que eu assim pense de todos vós, porque vos trago no coração, seja nas minhas algemas, seja na defesa e confirmação do evangelho, pois todos sois participantes da graça comigo” (Fp 1.7). “Saúda-vos Aristarco, prisioneiro comigo, e Marcos, primo de Barnabé (sobre quem recebestes instruções; se ele for ter convosco, acolhei-o)” (Cl 4.10). “Prefiro, todavia, solicitar em nome do amor, sendo o que sou, Paulo, o velho e, agora, até prisioneiro de Cristo Jesus” (Fm 9).
[22]Cf. Steven J. Lawson, Fundamentos da Graça: 1.400 a.C. -100 d.C: longa linha de vultos piedosos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2012, v. 1, p. 587-588.
[23]“Todos nós aprendemos muito mais por meio do sofrimento” (John MacArthur, Certezas que Impulsionam um Ministério Duradouro: In: John Piper; Justin Taylor, eds. Firmes: um chamado à perseverança dos santos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2010, p. 81).
[24]Veja-se: João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.5), p. 33.
[25]João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 133-134.