Teologia da Evangelização (188)
5.5. Devemos estar preparados para defender e confirmar o Evangelho (Continuação)
No século XX, C.S. Lewis (1898-1963) em mais uma de suas ficções, cria um personagem demoníaco (1941) que, por meio de cartas infernais (ou seriam celestiais, pelo despertamento que provocam?) ensinando ao demônio mais jovem como solapar com sutileza a igreja, termina por nos mostrar algumas estratégias de Satanás. Segue uma delas:
Ora, se conseguirmos fazer com que os homens fiquem a formular perguntas assim: ‘isto está em consonância com as tendências gerais dos movimentos contemporâneos? É progressista, ou revolucionário? Obedece à marcha da História?’ então os levamos a negligenciar as questões efetivamente relevantes. E o caso é que as perguntas que assim insistirem em formular são irrespondíveis; visto que não conhecem nada do futuro e o que o futuro haverá de ser dependerá muitíssimo, exatamente, daquelas preferências a propósito das quais buscam socorro do futuro. Como consequência, enquanto suas mentes ficam assim a zumbir nesse verdadeiro vácuo, temos nossa melhor oportunidade de até imiscuir-nos para forçá-los à ação correspondente aos nossos propósitos. A obra já realizada neste sentido é enorme.[1]
Não debater por debater
O propósito da pregação cristã não pode ser simplesmente debater por debater, ou vencer o seu adversário.[2] Talvez haja aqui algo de sutilmente ardiloso e diabólico.[3]
Toda pregação visa conduzir o homem a Cristo, o Deus-Encarnado. Sabemos de nossas limitações aqui. Podemos e devemos pregar a Palavra em sua inteireza, com fidelidade, sinceridade e real interesse. Contudo, a conversão é obra do Espírito de Deus. Faremos bem em nos ater à esfera confiada por graça a nós (1Co 9.16; Ef 3.8).
Calvino, com a lucidez que lhe é própria, já nos advertiu em mais de um lugar:
Gostaria que isso fosse levado em conta por aqueles que estão sempre com a língua bem afiada, procurando polemizar em cada questão e sofismar em torno de uma única palavra ou sílaba.[4] Mas eles são impulsionados pela ambição, a qual, como sei de experiência pessoal com alguns deles, às vezes é uma doença quase fatal. O que o apóstolo diz acerca da subversão daqueles que ouvem é plenamente comprovado pela observação diária. É natural que em meio às contendas percamos nossa apreensão da verdade, e Satanás faz mal uso das controvérsias como pretexto para subverter e destruir nossa fé.[5] A ambição é sempre contenciosa e nos conduz às polêmicas, de modo que aqueles que desejam aparecer estão sempre prontos a desembainhar a espada a pretexto de qualquer tema.[6] O orgulho ou autoglorificação é a causa e ponto de partida de todas as controvérsias, quando cada um, reivindicando para si além de sua capacidade, está ávido em ter outros sob seu poder.[7]
Preparo e atenção do ministro
Olhando por outro prisma, Calvino como pastor que era, revela aspectos de sua sensibilidade ministerial: “um bom pastor deve estar sempre alerta para que seu silêncio não propicie a invasão de doutrinas ímpias e danosas, e ainda propicie aos perversos uma irrefreada oportunidade de difundi-las”.[8]
Portanto, devemos nos preparar para apresentar, quando necessário, uma defesa de nossa fé. Devemos saber em quem, e por que cremos. A Palavra de Deus é o fundamento de nossa fé e da apresentação do Evangelho.
A instrução de Paulo é fundamental:
“Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Ef 6.17).
Não podemos ir para guerra desarmados, ou com armas inadequadas resultantes de nossa autossuficiência ou, da ignorância de quem são nossos adversários, e qual o propósito dessa luta. Portanto, “quando a apologética é biblicamente aplicada, o evangelismo é fortalecido”, interpreta Busenitz. [9]
Trabalho apologético e oração
Não podemos defender a causa de Deus sem nos valermos do ensino, correção e disciplina, tendo sempre diante de nós, o propósito de Deus. A apologética contempla também em seus objetivos conduzir o homem, em sua agonia e desespero resultantes de seu afastamento de Deus, à reconciliação com o seu Senhor por meio de Jesus Cristo. Isso ocorre somente pela graça de Deus (2Co 5.18-6.3). Sem a graça todo o nosso labor será em vão. O nosso trabalho não se opõe à oração nem esta exclui aquele.[10]
Schaeffer (1912-1984) é enfático:
A apologética, como eu encaro, não deve ser de forma alguma separada da evangelização. De fato, eu me pergunto se a ‘apologética’ que não leva as pessoas até Cristo como salvador, e depois para o viver sob o senhorio de Cristo, na verdade pode ser considerada apologética cristã.[11]
Antes de qualquer coisa, é importante lembrar que não podemos separar a verdadeira apologética da obra do Espírito Santo, tampouco de um relacionamento vivo com o Senhor, em oração, da parte do cristão. É preciso entender, afinal de contas, que a nossa batalha não é só contra carne e sangue.[12]
Maringá, 11 de março de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] C.S. Lewis, Cartas do Inferno, São Paulo: Vida Nova, 1964, p. 160-161.
[2] Veja-se: F.F. Bruce, La defesa apostólica del Evangelio. 2. ed. Buenos Aires: Ediciones Certeza, 1977, p. 8-9.
[3]Calvino adverte os pastores quanto a isso: “Essa é a trama de Satanás, ou seja: que, mediante perversa loquacidade de tais homens, ele enreda os bons e fiéis pastores com o fim de distraí-los de sua preocupação pela doutrina. Daí a necessidade de nos precavermos e não permitirmos qualquer envolvimento em argumentos polêmicos; porque, do contrário, jamais nos veremos livres para direcionar nosso labor em prol do rebanho do Senhor, nem os homens amantes de polêmicas nos deixarão de perturbar” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998,(Tt 3.10), p. 357). No século XX, Lloyd-Jones também nos advertiu: “Fazer polêmica pela polêmica é sempre obra do diabo” (D.M. Lloyd-Jones, Santificados Mediante a Verdade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (Certeza Espiritual, v. 3), 2006, p. 55).
[4] William Tyndale (1494-1536), contemporâneo mais velho de Calvino, descrevendo a forma de ler e interpretar Bíblia em seus dias (1528), trata dos “quatro sentidos da Escritura” e da corrupção praticada:
“Eles dividem a Escritura em quatro sentidos: literal, tipológico, alegórico e analógico. O sentido literal tornou-se absolutamente nada; porque o papa o tirou de tudo e fez dele sua possessão. Ele o trancou, parcialmente, com as chaves falsas e falsificadas de suas tradições, cerimônias e mentiras fingidas; e dele desviou os homens pela violência da espada; porque homem nenhum ousa obedecer o sentido literal do texto, a não ser sob o protesto: “Se isto agradar o papa” (…) Entenderás, portanto, que as Escrituras possuem apenas um sentido, que é o sentido literal. E esse sentido literal é a raiz e o fundamento de tudo e a âncora que nunca falha, à qual, se te unires, jamais poderás errar ou sair do caminho. E se você deixar o sentido literal, você não pode deixar de sair do caminho” (William Tyndale, The Obedience of a Christian Man. In: Doctrinal Treatises, Cambridge: The University Press, 1848, p. 303-304).
[5]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998,(2Tm 2.14), p. 233.
[6]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998,(1Tm 6.20), p. 186.
[7]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.6), p. 133.
[8] João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998,(Tt 1.11), p. 316.
[9]Nathan Busenitz, A Palavra da Verdade em um mundo de erro: Fundamentos da apologética Cristã: In: John MacArthur, et. al. Evangelismo: compartilhando o Evangelho com fidelidade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2012, p. 63.
[10] Veja-se: F.A. Schaeffer, O Deus que intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 259. “O melhor método apologético tem pouco valor a não ser que atinja em cheio o coração da pessoa. (…) O método apologético sadio e efetivo começa e termina com a adoração a Deus” (William Edgar, Razões do Coração: reconquistando a persuasão cristã, Brasília, DF.: Refúgio, 2000, p. 69).
[11] F.A. Schaeffer, O Deus que intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 261. “Definida de modo amplo, a apologética sempre tem sido uma parte da evangelização” (A.J. Hoover, Apologética: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 99).
[12] F.A. Schaeffer, O Deus que intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 214. Veja-se também: William L. Graig, Fé, Razão e a Necessidade da Apologética: In: Francis J. Beckwith, et. al. eds. Ensaios Apologéticos, São Paulo: Hagnos, 2006, p. 21ss. Da mesma forma afirma Edgar: “Quando fazemos apologia estamos travando uma batalha espiritual” (William Edgar, Razões do Coração: reconquistando a persuasão cristã, Brasília, DF.: Refúgio, 2000, p. 39).