Teologia da Evangelização (158)
4.3.7. O reto juízo de Deus por meio de Cristo [1]
Ao contrário do que possa parecer, o avanço científico não traz, necessariamente, discernimento. A ciência, mesmo com seus grandes avanços e de suas fortes pretensões, é limitada;[2] ela não esgota a complexidade da realidade.[3]
Contudo, talvez devêssemos esperar que com o progresso da ciência o homem se tornaria menos influenciado por crendices e superstições. Nada mais enganoso: as superstições se modificam, mas, não são eliminadas. Pelo contrário – como vimos quando tratamos das superstições –, assumem maiores e variadas proporções entre todas as camadas sociais.
Com frequência a própria ciência torna-se para o homem moderno o seu próprio mito.[4] Portanto, um princípio importante que devemos preservar, é a compreensão da transitoriedade do que consideramos ciência.[5]
Juntamente com o bem-vindo avanço científico, vivemos num mundo marcado por valores contraditórios e ambivalentes: O secularismo (mundanismo) – ainda que muitas vezes de forma imperceptível, com grande força domina a nossa perspectiva e, portanto, a nossa visão da realidade[6] –, em que os valores limitam-se apenas a este século (mundo), nutrindo profundo menosprezo, ou simples desinteresse condenatório pelo transcendente;[7] e a mistificação da fé, que faz com que o homem projete a sua “fé” de forma enganosa, infantil e irracional, falando candidamente de “energia”, “fluidos”, “pensamento positivo”, “energia das pirâmides”, e de outras crendices semelhantes.
Ambos os conceitos parecem ter em comum a ideia de não haver um juízo final de Deus. O primeiro, por negar o transcendente ou simplesmente não se importar com isso; o segundo, por crer de alguma forma, num tipo de “purificação da alma” ou, na “bondade opcional do ser humano”. Assim, todos serão de alguma forma “salvos” de uma condenação que na prática não existe.
Outra ideia que amiúde caminha de mãos dadas com estas, é a de que o juízo final se realiza todos os dias (A. Camus), conforme a escolha voluntária do homem, que é senhor de seus atos, sendo o tempo (“Tribunal do Tempo”, Sólon)[8] ou a história o tribunal do mundo(F. Schiller).[9]
De fato, o juízo de Deus também se realiza na história (Dilúvio, Sodoma e Gomorra, exílio assírio e babilônico, etc.); todavia, a Bíblia também nos fala de um juízo final, quando haverá a consumação da história, tendo todos os homens que prestar contas a Deus de seus atos, palavras e pensamentos.[10]
Analisemos alguns aspectos envolvidos no juízo de Deus.
Justiça essencial
O nome Yehovah denota o poder livre e soberano e a autoexistência de Deus: Deus existe por si só, não dependendo de ninguém, de nenhuma circunstância. O seu poder eterno emana de si mesmo, que é a sua fonte inesgotável. Deus mesmo disse a Moisés: “Eu Sou o que Sou”(Ex 3.14).
A justiça é inerente ao conceito de Deus no Antigo Testamento, bem como ocupa um lugar central em todas as relações humanas. O padrão que deve reger nossas relações é o princípio de justiça estabelecido na Lei de Deus.[11]
Sobre isso escreveu Von Rad (1901-1971):
Dentre os conceitos que designam as relações vitais do homem, o conceito de tzedâkâh [justiça] é o mais importante e o mais central de todo o Antigo Testamento. Constitui o critério das relações entre o homem e Deus, dos homens entre si, até nas disputas mais insignificantes, do homem com os animais e do homem com o ambiente natural em que ele se move. O tzedâkâh pode, simplesmente, ser apontada como o valor supremo da vida e o fundamento em que repousa toda a existência ordenada.[12]
Maringá, 30 de janeiro de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Para uma abordagem mais completa deste assunto, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio: no Pai, no Filho e no Espírito Santo, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2014.
[2] Vejam-se: Hermisten M.P. Costa, Uma fé que investiga e uma Ciência que crê, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2020; Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004; Idem., Calvino 500 anos, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.
[3] A ciência não é o único caminho para se chegar ao conhecimento e, na realidade, não pode esgotar o real (Ver: John Ziman, O Conhecimento Confiável: uma exploração dos fundamentos para a crença na ciência, Campinas, SP.: Papirus, 1996, p. 12-13). Este é mais abrangente e complexo do que o instrumental disponível pelo cientista (Ver algumas boas analogias em: Rubem Alves, Entre a Ciência e a Sapiência: o dilema da Educação, 12. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 81ss. Na mesma linha de argumentação veja-se do mesmo autor, Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e as suas regras, 8. ed. São Paulo: Loyola, 2004, 223p).
[4]Com Galileu a ciência deu um grande salto contribuindo de modo decisório para a sua “especialização”. “A física moderna não é mais do que um elo na longa cadeia de acontecimentos que se iniciaram com a obra de Bacon, Galileu e Kepler e das aplicações práticas das ciências da natureza nos séculos XVII e XVIII” (Werner Heisenberg, Reflexões Sobre a Viagem do Artista ao Interior: In: Werner Heisenberg: Páginas de reflexão e autorreflexão, Lisboa: Gradiva, 1990, p. 52). Com isto, criou-se uma grande “fé” na ciência, entendendo que ela poderia por si só apresentar respostas convincentes para praticamente todas as áreas do saber; daí o ainda hoje evidente mito do “saber científico” como palavra final em uma disputa. “Graças à ciência e à tecnologia o homem tem conseguido um grande poder sobre a realidade. Estes instrumentos surgiram como resposta a duas tendências: a vocação do homem para servir a Deus em sua criação, e o esforço humano por ser independente e assim, igual a Deus. Por causa desta última tendência a ciência se tem convertido em um ídolo do homem” (Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, 2. ed. Países Bajos: FELIRE, 1990, p. 47). O Liberalismo Teológico (Século XIX) – tendo as suas raízes fincadas sobre o desenvolvimento da Ciência Moderna e os pressupostos da Filosofia Moderna, os quais encontraram a sua síntese no Iluminismo –, esforçou-se por interpretar, reformular e explicar a fé cristã dentro de uma perspectiva iluminista. Deste prisma, só poderia ser considerado genuíno, o “credo” que se ajustasse aos critérios racionais vigentes. “Modernismo era uma cosmovisão baseada na noção de que somente a ciência podia explicar a realidade” (John F. MacArthur Jr., Princípios para uma Cosmovisão bíblica: Uma mensagem exclusivista para um mundo pluralista, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 17).
[5] “Aqueles que veem a ciência como algo que produz a verdade imutável deveriam estudar a história da ciência e fazer a si mesmos outras perguntas: Se a ciência tem nos dado uma série de modelos para explicar dados sempre crescentes, podemos esperar que seja absoluto o que a ciência nos diz agora? Daqui a cem anos, a ciência estará nos dizendo o mesmo que nos diz hoje? (…) Se a ciência de 1500 parece bastante primitiva e ingênua, será que a nossa ciência também não parecerá primitiva e ingênua daqui a quinhentos anos? O que a ciência proclama como fato nem sempre é tão certo para a geração seguinte de cientistas” (Gene Edward Veith, Jr, De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 57). Do mesmo modo, acentua Ziman: “A ciência é demonstravelmente falível. (…) Não há nada no aparato cognitivo da mente humana, nem ninguém da comunidade de cientistas, que possa nos proteger do erro ou da incerteza. O melhor que podemos fazer, pelo jeito, é ser eternamente críticos, eternamente vigilantes, eternamente céticos” (John Ziman, O Conhecimento Confiável: uma exploração dos fundamentos para a crença na ciência, Campinas, SP.: Papirus, 1996, p. 147). “Talvez estejamos assistindo hoje, neste último terço do século XX, ao fim das Luzes, pelo menos ao fim da crença na irreversibilidade e no caráter benéfico absoluto do progresso científico e técnico. Não, é claro, ao fim do progresso, mas ao fim da religião do progresso, da crença no progresso” (Philippe Ariès, A História das Mentalidades: In: Jacques Le Goff, ed. A História Nova, 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001 (2ª tiragem), p. 153).
[6] “Ser do mundo pode ser assim resumido – é vida, imaginada e vivida, separadamente de Deus. Noutras palavras, o que decide definitiva e especificamente se eu e vocês somos do mundo ou não, não é tanto o que podemos fazer em particular como a nossa atitude fundamental. É uma atitude para com todas as coisas, para com Deus, para com nós mesmos, e para com a vida neste mundo; em última análise, ser do mundo é ver todas estas coisas separadamente de Deus (…)
“Ser do mundo – e isso é repetido pelos apóstolos – significa que somos governados pela mente, pela perspectiva e pelos procedimentos deste mundo no qual vivemos” (D. Martyn Lloyd-Jones, Seguros mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (Certeza Espiritual, v. 2), 2005, p. 28-29).
[7] “….Quando esta temporalidade da criação (a vida aqui e agora), quando esse imediatismo de nossa natureza de criatura sufoca todo o nosso senso de eternidade e ocupa toda a nossa mente, coração e atenção tem-se, então, o secularismo. O secularismo nega o eterno e não permite a ideia de que qualquer coisa imediata tem consequências eternas” (John Sittema, Coração de Pastor, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 62-63).
[8]Cf. Werner Jaeger, La Teologia de los Primeros Filosofos Griegos, México: Fondo de Cultura Económica, 3. reimpresión, 1992, p. 41.
[9] Veja-se: https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/srh/article/view/11468/6580
[10] “As proposições sobre o julgamento futuro são tão frequentes e tão fundamentais para o pensamento dos escritores bíblicos que nenhuma teologia que deixe de fazer justiça a isso pode ser considerada coerente com a fé do Novo Testamento” (Leon Morris, A Doutrina do Julgamento na Bíblia: In: Russel P. Shedd; Alan Pieratt, eds. Imortalidade, São Paulo: Vida Nova, 1992, p. 52-53).
[11]“Na Lei de Deus nos é apresentado um padrão perfeito de toda a justiça que pode, com razão, ser chamada de vontade eterna do Senhor. Deus condensou completa e claramente nas duas tábuas tudo o que Ele requer de nós. Na primeira tábua, com uns poucos mandamentos, Ele prescreve qual é o culto agradável à Sua majestade. Na segunda tábua, Ele nos diz quais são os ofícios de caridade devidos ao nosso próximo. Ouçamos a Lei, portanto, e veremos que ensinamentos devemos tirar dele e, similarmente, que frutos devemos colher dela” (João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003,Cap. 8, p. 21).
[12]Gerhard Von Rad, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: ASTE, 1986 (Reedição), v. 1, p. 353. Veja-se: A.H. Leitch, Justiça: In: M.C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 3, p. 807.
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