Teologia da Evangelização (146)
4.3.4.3. Vicária
“Graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do nosso Senhor Jesus Cristo, o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados….” (Gl 1.3-4).
A espontaneidade do Filho envolve a consciência da intensidade e extensão dos seus sofrimentos: a rejeição, o mundo hostil, o pecado humano, o abandono e a morte como maldito: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro)” (Gl 3.13).[1]
Ele sabia que a cruz era o seu caminho e vocação. Os seus sofrimentos foram as dores do parto do nosso novo nascimento. Jamais poderemos avaliar corretamente a profundidade e a extensão dos seus sofrimentos.“Cristo sofreu como homem, no entanto, a fim de que sua morte pudesse efetuar nossa salvação, sua eficácia fluiu do poder do Espírito. O sacrifício que produziu a expiação eterna foi muito mais que uma obra meramente humana”, comenta Calvino.[2]
Entretanto, todos os pecadores eleitos, desde os mais humildes socialmente até os mais sábios, desfrutaram dos benefícios salvadores da obra sacrificial de Cristo. Afinal, sem a graça que emana da cruz ninguém seria salvo. A Igreja é o resultado efetivo e histórico do ministério sacrificial; o sacrifício de Cristo não foi em vão.
E nesta auto-entrega, está a vitória de Deus sobre o pecado e sobre Satanás, redimindo para si um povo comprado com o “sangue de Deus” (At 20.28/1Co 6.20; 1Pe 1.18,19).
O Catecismo de Heidelberg (1563), à pergunta de n° 37, “Que entendes pela palavra ‘sofreu’?”, responde:
Que durante toda a sua vida na terra, e especialmente no fim dela, ele suportou no corpo e na alma a ira de Deus contra os pecados de todo o gênero humano, de modo que, pelo seu sofrimento, como o único sacrifício expiatório, ele redimisse o nosso corpo e a nossa alma da maldição eterna, e para nós conseguisse de Deus a graça, a justiça e a vida eterna.
A obra sacrificial de Cristo foi cumprida de forma completa e com o sentimento adequado pela operação do Espírito (Hb 9.14).[3] Cristo, em total harmonia com o Espírito, se ofereceu a si mesmo, tendo plena consciência das implicações dessa oferta: a dor, a vergonha, a humilhação, o peso da ira de Deus, o abandono.
No entanto, em todo o seu sofrimento, Ele pôde usufruir do consolo do Espírito que sempre estivera plenamente nele.[4]
O Espírito que esteve em Cristo durante todo o seu Ministério terreno não o desamparou, antes, o acompanhou e o capacitou a apresentar-se voluntariamente (Hb 9.14; Gl 1.4/Jo 10.11,15,17,18)[5] como sacerdote e vítima: o ofertante e a oferta – para resgatar os seus (Hb 9.23-28).
Jesus morreu em nosso lugar: deu a sua vida por nós. A ideia do texto é que Ele morreu para apagar, remover os nossos pecados. “O Filho de Deus veio a este mundo porque o problema da humanidade em pecado era tão terrível que nada, a não ser uma intervenção drástica como esta, poderia providenciar uma solução” afirma Lloyd-Jones. [6] Somente um “tal” amor, que nos amasse de “tal maneira” poderia providenciar a nossa salvação (Jo 3.16).
Paulo enfatiza a biblicidade da entrega de Cristo e o Seu amor por nós: “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras”(1Co 15.3). “…. Vivo pela fé no Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim”(Gl 2.20). João mostra que na obra de Cristo podemos conhecer o amor: “Nisto conhecemos o amor, em que Cristo deu a Sua vida por nós”(1Jo 3.16).
A morte de Cristo pelos nossos pecados vem mostrar:
1) Que este era um único sacrifício por meio do qual nossos pecados poderiam ser perdoados e apagados. “Porque ele não encontrou nenhum outro pagamento que não o derramamento de seu sangue, de modo que se tornasse nosso fiador tanto no corpo quanto na alma, respondendo por nós diante do juízo divino para nos ganhar absolvição”, interpreta Calvino.[7]
2) Somos pecadores, totalmente incapazes de providenciar a nossa salvação. A vinda de Cristo mostra de forma contundente que sem a sua obra em nosso favor não haveria salvação: todos estaríamos irremediavelmente perdidos.[7] A cruz revela o nosso pecado.[8]
3) A nossa inimizade para com Deus: O Sacerdócio de Cristo pressupõe uma relação rompida entre Deus e os homens.
4) O amor invencível de Deus: “Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas que Ele nos amou, e enviou o Seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4.10). A cruz realça a santidade de seu amor.
O Evangelho consiste na proclamação de que a obra de Cristo foi completa e suficiente; por isso, obteve para o seu povo a “eterna redenção”(Hb 9.12): “Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos”(1Pe 3.18). “Com uma única oferta aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados”(Hb 10.14).[10] (Hb 7,24,27,28; 9.23-26,28; 10.10,12).
Jesus Cristo levou sobre si a culpa de todos os nossos pecados; o peso da ira de Deus caiu sobre Ele. Nenhum pecado ficou sem pagamento; não restaram pendências; tudo foi consumado pela obra de Cristo que se manifesta em graça para conosco.
Maringá, 15 de janeiro de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] “A justiça de Deus exige que o pecado seja punido, e a pena é medida pela culpa. Como a culpa do pecado é infinita, porque ele vai contra o bem infinito, Deus, cujo mandamento o pecador desprezou, também a pena devida ao pecado mortal é infinita. Mas Cristo pela sua Paixão livrou-nos dessa pena, assumindo-a Ele próprio” (S. Tomás de Aquino, Exposição Sobre o Credo, 3. ed. São Paulo: Loyola, 1994, p. 47).
[2]João Calvino, Exposição de Hebreus,São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 9.14), p. 231-232.
[3] Vejam-se: Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010,p. 135ss.; Edwin H. Palmer, El Espiritu Santo,Edinburgh: El Estandarte de la Verdad, [s.d.], Edición Revisada, p. 88.
[4] Veja-se: Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit,p. 116.
[5] “A morte do Senhor Jesus Cristo na cruz do Calvário não foi um acidente; foi obra de Deus. Foi Deus quem o ‘manifestou’ ali” (David M. Lloyd-Jones, A Cruz: A Justificação de Deus,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1980, p. 3). Comentando Gl 1.4, Stott, conclui: “A morte de Jesus pelo pecado foi um ato de autosacrifício e segundo a vontade de Deus Pai” (John R.W. Stott, A Mensagem de Gálatas,São Paulo: ABU., 1989, p. 21). Recomendo a leitura da excelente obra de Stott, A Cruz de Cristo,Miami: Vida, 1981, 359p.
[6]D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 71.
[7]João Calvino, Sermões em Efésios, p. 88.
[8] Ver: D.M. Lloyd-Jones, Seguros Mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 2), p. 152.
[9]“É porque o homem tem um conceito inadequado do pecado que ele tem um conceito inadequado da graça de Deus. Se vocês quiserem dimensionar a graça. Precisarão dimensionar a profundidade do pecado. A graça é aquilo que diz o homem que, apesar de tudo o que o caracteriza, Deus olha para ele com favor” (D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 39).
[10] “Visto que este único sacrifício que Cristo ofereceu uma vez por todas possui eficácia eterna, bem como é perpétuo em seus efeitos, não é de estranhar que o sacerdócio eterno de Cristo, que é apoiado por seu poder, jamais fracasse” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 9.25), p. 245).