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Teologia da Evangelização (79) - Hermisten Maia

Teologia da Evangelização (79)

2.4.9. A doutrina da Eleição

2.4.9.1. Uma indagação sincera

Agostinho (354-430) fez algumas indagações pertinentes:

Alguns dizem: “A doutrina da predestinação é prejudicial à utilidade da pregação”. Como se fosse contrária à pregação do apóstolo: O Doutor dos Gentios não proclamou tantas vezes a predestinação na fé e na verdade e por acaso desistiu de pregar a Palavra de Deus? (…) Por que julgamos a doutrina da predestinação, que a Escritura divina proclama, como prejudicial à pregação, aos mandamentos, à exortação e à correção, que aparecem tantas vezes na mesma Escritura?[1]

          De fato, há sempre o perigo de nossa teologia se transformar em um cerceamento das Escrituras, como se pretendêssemos delimitar de forma policiada a Deus, um “velhinho caduco” que já não diz coisa-com-coisa e, por isso, precisa ser atenuado em Sua Revelação.

          Calvino (1509-1564), comentando Gálatas 4.26, diz:

A Igreja enche o mundo todo e é peregrina sobre a terra. (…) Ela tem sua origem na graça celestial. Pois os filhos de Deus nascem, não da carne e do sangue, mas pelo poder do Espírito.

Continua:

Eis a razão por que a Igreja é chamada a mãe dos crentes.[2] E, indubitavelmente, aquele que se recusa a ser filho da Igreja debalde deseja ter a Deus como seu Pai. Pois é somente através do ministério da Igreja que Deus gera filhos para si e os educa até que atravessem a adolescência e alcancem a maturidade.[3]

          A peregrinação da Igreja tem um sentido missionário (“Até os confins da terra”) e escatológico (“Até a consumação do século”): Enquanto ela caminha, confronta os homens com a mensagem do Evangelho, conclamando a todos ao arrependimento e fé em Cristo Jesus até que Ele volte.

          Deus chama os seus eleitos por meio da pregação da Palavra. “Deus quer que o Evangelho seja proclamado ao mundo todo e em todo o tempo para que seja congregada a soma total dos eleitos”, escreve Kuiper.[4] A Palavra de Deus é sempre um ato criador, por meio da qual Deus chama, convence, transforma e edifica os Seus.

          Cada um de nós que foi alcançado pela Graça de Deus, tornou-se um instrumento de testemunho da bendita salvação, a fim de que o povo de Deus seja salvo (Rm 10.14-17/At 18.9-11).[5] A Igreja é chamada para fora do mundo a fim de invadir o mundo com a pregação do Evangelho (Mt 5.14-16; Mc 16.15-16; At 1.8; 1Co 9.16).[6] A eleição eterna de Deus, inclui os fins e os meios.[7] Os meios de Deus são infalíveis porque Deus também o é.[8]

Nós somos o meio ordinário estabelecido por Deus para que o mundo ouça a mensagem do Evangelho. Jesus Cristo confiou à Igreja a tarefa evangelística. A Igreja, escreve Kuiper, é “o agente por excelência para a evangelização”.[9] Nenhum homem será salvo fora de Cristo; mas para que a salvação ocorra ele tem que conhecer o Evangelho da graça. Como crerão se não houver quem pregue? (Rm 10.13-15). “O evangelismo pelo qual Deus leva os seus eleitos à fé é um elo essencial na corrente dos propósitos divinos”, conclui Packer.[10]

          Ridderbos (1909-2007), diz acertadamente que “A igreja é o povo que Deus separou para Si em sua atividade salvífica, para que mostrasse a imagem de Sua graça e Sua salvação”.[11]

          Aqui também, podemos frisar o ponto, de que quando estamos levando o Evangelho a todos os homens, cumprindo prazerosamente parte de nossa missão, estamos de fato demonstrando o nosso amor pelo nosso próximo, desejando que ele conheça a Cristo e, segundo a misericórdia de Deus, se arrependa e creia.[12]

          Como bem observou Kuiper (1886-1966):

A eleição requer a evangelização. Todos os eleitos de Deus têm que ser salvos. Nenhum deles pode perecer. E o evangelho é o meio pelo qual Deus lhes comunica a fé salvadora. De fato, é o único meio que Deus emprega para esse fim.[13](Ef 1.13).

O trabalho do teólogo não é revelar mistérios ou, esclarecer o não-revelado. Não somos videntes nem intérpretes juramentados de Deus.

 Como tenho dito em outros lugares, aprendi a não gostar de pensar sozinho e, ao mesmo tempo, se estiver convencido de algo, a não temer pensar sozinho. O amar pensar solitariamente, pode nos conduzir a esquisitices teológicas arrogantes e presunçosas que em nada edificam. Por outro, temer pensar sozinho pode obstruir o caminho de uma compreensão mais ampla da Palavra e, consequentemente, de nos edificar com isso bem como à Igreja de Deus,

A teologia é sempre descritiva das Escrituras esforçando-se por relacionar as partes com o todo a fim de alcançar, por graça, um conhecimento mais completo e exaustivo do que Deus nos confiou em Sua Palavra.

O apóstolo Paulo, diante dos presbíteros de Éfeso, quando se despede em caráter definitivo, traz à lembrança de seus ouvintes um dos aspectos fundamentais de seu ministério:“Jamais deixei de vos anunciar todo o desígnio de Deus” (At 20.27). Este foi o seu ministério durante os três anos nos quais ali passou. (At 20.27,31).

Ele não se deteve em sabedoria humana, em debates frívolos ou em exibicionismo de saber, antes, anunciou o Evangelho da graça de Deus (At 20.24).

          Em outro lugar, o apóstolo diz: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, (didaskali/a = “instrução”) para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça” (2Tm 3.16). Entre outras coisas, isto significa que o nosso pensar teológico deverá estar sempre conectado com a fidelidade à Escritura e com o ensino da Palavra. Este aspecto realça a nossa responsabilidade como intérpretes, mestres e expositores da Palavra.

Por outro lado, há aqui um grande conforto, do qual nem sempre temos nos dado conta: não precisamos – nem nos foi requerido –, “desculpar” ou “justificar” Deus e a Sua Palavra.[14] Não há o que selecionar ou cortar: “Toda Escritura é (…) útil o para ensino”.

Algumas vezes, tenho a impressão de que diante de “questões embaraçosas” tais como: a “condenação de todos os homens inocentes que morrerem sem conhecer a Cristo”, a “eleição de uns para a salvação em detrimento de outros”, “o quase silêncio dos evangelhos sobre os trinta primeiros anos de Cristo”, “os tsunamis”, terremotos” e semelhantes, ficamos como que procurando uma justificativa para o Soberano agir desta ou daquela forma, buscamos uma maneira de tornar Deus apetecível à mente e aos valores modernos e “pós-modernos”.

          Deste modo, como tem acontecido recentemente, despojamos Deus de Sua glória, o colocando como um aprendiz da história que vai se surpreendendo com os eventos que ocorrem à Sua revelia. O alto conceito a respeito de nós mesmos e de nossos pensamentos tendem a corromper totalmente a nossa compreensão da Escritura e, consequentemente, de toda a realidade. Como já destacamos, é preciso deixar Deus ser Deus o reconhecendo na plenitude de Sua revelação. A sua revelação é para ser recebida com uma fé inteligente e uma inteligência submissa à Palavra.

O fato bíblico é que diante do mistério não há lugar para especulação,[15] antes devemos estar comprometidos com o que Deus nos deu a conhecer na Palavra. Como cristãos, devemos aprender, se ainda não o fizemos, a nos calar diante do silêncio de Deus, sabendo que o som da nossa voz petulante e “lógica”[16] – em tais circunstâncias –, por si só seria uma “heresia”.[17]

Diante da vontade de Deus – que é a causa final de todos os Seus atos –, temos que manter um reverente silêncio, reconhecendo que Ele assim age, porque foi do Seu agrado; conforme o Seu santo, sábio e bondoso querer: Isto nos basta! (Sl 115.3; 135.6; Dn 4.35; Ef 1.11). O que nos compete é procurar entender, por meio do estudo e da oração, o que Deus quer nos ensinar em “toda a Escritura” e em cada parte da Escritura.[18]

A doutrina da eleição deve ser estudada não com espírito armado e defensivo, mas em oração, com o desejo sincero de aprender de Deus a Sua Palavra, certos de que por meio deste aprendizado, poderemos usufruir de modo consciente as bênçãos que Ele reservou para o Seu povo.[19]

Maringá, 27 de setembro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]S. Agostinho, A Graça (II), São Paulo: Paulus, 1999,p. 247,248.

[2] “A Igreja é a mãe comum de todos os piedosos” (João Calvino, Efésios,(Ef 4.12), p. 125).

[3] João Calvino, Gálatas,(Gl 4.26), p. 144. Veja-se: As Institutas,IV.1.1.

[4] R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica,p. 21. (Veja-se, também, p. 39).

[5] “Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas! Mas nem todos obedeceram ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem acreditou na nossa pregação? E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (Rm 10.14-17). “Teve Paulo durante a noite uma visão em que o Senhor lhe disse: Não temas; pelo contrário, fala e não te cales; porquanto eu estou contigo, e ninguém ousará fazer-te mal, pois tenho muito povo nesta cidade. E ali permaneceu um ano e seis meses, ensinando entre eles a palavra de Deus” (At 18.9-11). O pequenino e edificante livro de Tyler é baseado neste texto. Ver: Bennet Tyler, Eleição: incentivo para pregar o Evangelho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (s.d.), 24p.

[6]Vejam-se: Michael Green, Estratégia e Métodos Evangelísticos na Igreja Primitiva: In: A Missão da Igreja no Mundo de Hoje,     São Paulo; Belo Horizonte, MG.: ABU; Visão Mundial, 1982, p. 67-68 e Bruce L. Shelley,A Igreja: O Povo de Deus, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 127.

[7] Confissão de Westminster,(1647),III.6. Ver também: R.C. Sproul, Eleitos de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 190; Bennet Tyler, Eleição: incentivo para pregar o Evangelho, p. 12ss.

[8] “Os muitos meios para o fim de salvar cada um dos eleitos são tão eficazes que terminam sempre em resultados bem-sucedidos. Os meios são infalíveis porque Deus é infalível” (R.K. McGregor Wright, A Soberania Banida: Redenção para a cultura pós-moderna, São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p. 143).

[9] R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 220. (Veja-se todo o capítulo, p. 220-226).

[10] J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p.146.

[11] Herman Ridderbos, El Pensamiento del Apóstol Pablo, Buenos Aires: La Aurora, 1987, v. 2, § 53, p. 9.

[12] John Stott observou bem este ponto, ao declarar em 1974: “A Grande Comissão não explica ou esgota, nem supera o Grande Mandamento. O que ela faz, na verdade, é acrescentar ao mandamento do amor e serviço ao próximo uma nova e urgente dimensão cristã. Se de fato amamos o nosso próximo, não há dúvida de que lhe diremos as boas novas de Jesus” (John R.W. Stott, A Base Bíblica da Evangelização: In: A Missão da Igreja no Mundo de Hoje, São Paulo; Belo Horizonte, MG. ABU; Visão Mundial, 1982, p. 37).

[13] R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica,p. 28.

[14]Calvino afirma que: “Contra os ímpios, que com destemor falam mal de Deus abertamente, o Senhor se defende suficientemente com a Sua justiça, sem que Lhe sirvamos de advogados” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, v. 3, (III.8), p. 49). Na sequência, entretanto, ele nos mostra como Deus nos fornece argumentos racionais para fazer calar as suas maldades e injustiças.

[15] “Aprendamos, pois, a evitar as inquirições concernentes a nosso Senhor, exceto até onde Ele nos revelou através da Escritura. Do contrário, entraremos num labirinto do qual o escape não nos será fácil” (João Calvino, Romanos, 2. ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.33), p. 426-427).

[16]A lógica dirigida pelo espírito de submissão a Deus, sempre será útil; caso contrário, esqueçamo-la. No entanto, devemos ter em que mente que “não podemos prender Deus na prisão da lógica humana” (Anthony Hoekema. Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 86).

[17]Calvino orientou-nos pastoralmente, dizendo: “Que esta seja a nossa regra sacra: não procurar saber nada mais senão o que a Escritura nos ensina. Onde o Senhor fecha seus próprios lábios, que nós igualmente impeçamos nossas mentes de avançar sequer um passo a mais” (João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 9.14), p. 330).

[18]Spurgeon (1834-1892) salientou: “Não se deve reter nenhuma doutrina. A doutrina retida, tão detestável na boca dos jesuítas, não é nem um pouco menos abjeta quando adotada por protestantes” (C.H. Spurgeon, Lições aos Meus Alunos,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1982, v. 2, p. 94). “O ensino saudável é a melhor proteção contra as heresias que assolam à direita e à esquerda entre nós” (C.H. Spurgeon, Lições aos Meus Alunos, v. 2, p. 89).

[19] “O propósito divino não é satisfazer nossa curiosidade, e, sim, ministrar-nos instrução proveitosa. Longe com todas as especulações que não produzem nenhuma edificação” (J. Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.14) p. 233).

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