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Teologia da Evangelização (72) - Hermisten Maia

Teologia da Evangelização (72)

2.4.4.1. O Deus Misterioso (Continuação)

          Packer coloca a questão nestes termos:

    A antinomia particular que está em vista neste caso é a aparente oposição entre a soberania divina e a responsabilidade humana, ou (expressando o caso de modo mais bíblico) entre o que Deus faz como Rei e o que Ele faz como Juiz. As Escrituras ensinam que, como Rei, Ele ordena e controla todas as coisas, inclusive as ações humanas, de conformidade com Seu próprio propósito eterno (Gn 45.8; 50.20; Pv 16.9; 21.1; Mt 10.29; At 4.27-28; Rm 9.20-21; Ef 1.11, etc.). As Escrituras igualmente ensinam que, como Juiz, Ele considera todo homem responsável pelas escolhas que faz, bem como pelos cursos de ação que segue (Mt 25; Rm 2.1-16; Ap 20.11-13, etc.). (…) O homem é um agente moral responsável, embora seja também divinamente controlado; o homem é divinamente controlado, embora seja também um agente moral responsável.[1]

          Diante disso, creio que a atitude correta do cristão sincero, é a confissão da sua ignorância e, concomitantemente a glorificação de Deus, por Ele nos dirigir de forma sábia e soberana e, misteriosamente, não anular a nossa vontade-responsabilidade.

          Creio também, que uma forma de demonstrarmos a nossa compreensão, gratidão e reverência para com Deus e para com sua Palavra, é não tentar indevidamente especular sobre estas verdades. O que Deus quis que soubéssemos revelou em sua Palavra. Nada faltou; nada foi demais: Na Palavra temos registrado apenas o que Deus quis que permanecesse; e para nós, isto basta!

Calvino com sabedoria e humildade escreveu em lugares diferentes:

Nem nos envergonhemos em até este ponto submeter o entendimento à imensa sabedoria de Deus, que sucumba em seus muitos arcanos. Pois dessas coisas que nem é dado, nem é lícito saber, douta é a ignorância,[2] uma espécie de loucura, a avidez de conhecimento.[3]

É estulto e temerário de cousas desconhecidas mais profundamente indagar do que Deus nos permita saber.[4] (Ver: Dt 29.29; 1Co 1.18).

Tudo o mais que pesa sobre nós e que devemos buscar é nada sabermos senão o que o Senhor quis revelar à Sua igreja. Eis o limite de nosso conhecimento.[5]

          No mesmo pensamento, a Confissão Belga(1561), falando sobre a Providência de Deus, orienta-nos:

    E no que se refere ao que Ele [Deus] faz fora do alcance da inteligência humana, isso não o queremos investigar mais curiosamente do que nossa razão pode suportar; porém adoramos com toda humildade e reverência os justos juízos de Deus, os quais nos são ocultos; tendo-nos por satisfeitos por sermos discípulos de Cristo para aprender unicamente o que Ele nos indica em sua Palavra, sem ultrapassar estes limites.[6] (destaques meus).            

          Qualquer atitude queixosa deve ser evitada pois não edifica e, denota a nossa pretensa prepotência diante de Deus (Rm 9.19-21). Por sua vez, guiar-se por especulações significa desejar ir além do que Deus revelou e, ao mesmo tempo, perder-se em hipóteses e teorias frívolas já que pretendem “decifrar” o que Deus sábia e soberanamente não nos quis dar a conhecer. “Nossas especulações não podem servir de medida para nosso Deus”, acentua Packer (1926-2020).[7]

Lembremo-nos de que Deus não precisa ser justificado, explicado ou racionalizado. Ele ultrapassa em muito a nossa capacidade de percepção (Jó 11.7; Is 40.18, 28; 45.15; Rm 11.33-36):[8] um Deus plenamente explicado, seria um “deus” humanizado, à altura da nossa “razão” e preso à cosmovisão contemporânea com seus valores, ênfases, perspectivas e limitações próprias. Em cada época este “deus” seria compreendido – fabricado e  remodelado –, de uma forma, de acordo com a percepção e valores hodiernos.[9] Neste caso, a Teologia se transformaria em antropologia.[10]

          A teologia não tem nem pode ter esta pretensão – de justificar Deus – ela apenas o descreve conforme Ele se revelou em atos e palavras nas Escrituras, buscando permanentemente a sua iluminação para a compreensão da sua Palavra.[11]

          Berkhof (1873-1957) escreve com precisão:

A teologia reformada sustenta que Deus pode ser conhecido, mas que ao homem é impossível ter um exaustivo e perfeito conhecimento de Deus (…). Ter esse conhecimento de Deus seria equivalente a compreendê-lo, e isto está completamente fora de questão: “Finitum non possit capere infinitum”.[12]

          Portanto, a limitação de nosso conhecimento não se deve somente ao nosso pecado, mas, também, à nossa condição de criatura. Devemos nos lembrar, conforme enfatizou Frame: “Ser criatura é ser limitado no pensamento e no conhecimento, como em todos os outros aspectos da vida”.[13]

          MacArthur coloca a questão de forma pastoral e biblicamente confortadora: “Não podemos compreender esse Deus triúno, mas sabemos que Ele é um Pai que nos ama, um Filho que morreu por nós e um Espírito que nos conforta”.[14]

 Kuyper tratando da doutrina da eleição, elenca outros mistérios das Escrituras que estão acima de nossa capacidade de compreensão:

Com respeito a essa questão da eleição eterna, deixamos o prumo atingir o ponto mais profundo. Aqui, somos confrontados com um mistério incompreensível. A nossa concepção finita entra em contato diretamente com o que é eterno e infinito em Deus e que está inteiramente além do alcance ou da apreensão de nossas mentes e entendimentos finitos. Não podemos arguir, racionalizar, explicar, compreender ou perscrutar a eleição, assim como não podemos compreender ou entender o que ou quem Deus é em seu Ser eterno e bendito. Tampouco podemos compreender ou entender a existência de três Pessoas em uma Trindade santa. Também não podemos entender ou compreender a criação de qualquer das criaturas por meio da vontade do Criador. Não podemos entender ou compreender como o Filho de Deus assumiu a carne e o sangue humanos e, ao mesmo tempo, era tanto Deus quanto homem. Nem mesmo podemos entender ou compreender o nosso nascimento, a nossa existência em alma e corpo e a nossa existência contínua depois que o corpo e a alma forem separados um do outro. Sequer podemos entender ou compreender a origem dos pensamentos em nossa própria consciência. Tampouco podemos entender ou compreender a essência do amor, da vida ou da morte. Em resumo, ficamos aturdidos a partir do momento em que tentamos, com a nossa compreensão e entendimento finitos, penetrar na essência das coisas e, assim, ultrapassar o limite do que é finito.

“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!” – essa também deve ser nossa exclamação ao adentrarmos a meditação desse santo mistério.[15]

          Após falar da soberania de Deus na Criação e na eleição, Isaías exclama: “Verdadeiramente tu és Deus misterioso” (Is 45.15). Em outro lugar: “Não se pode esquadrinhar o seu entendimento” (Is 40.28/Is 55.9; Pv 25.2; Rm 11.33). Nós aceitamos o mistério.

 Cremos que Deus é Soberano, e que realiza sempre os Seus propósitos. Nada nem ninguém pode impedir-Lhe (Jó 42.2; Sl 33.11; 115.3; 135.6; Dn 4.34,35; Ef 1.11, etc.). Por sua vez, o homem como ser moral e responsável dará contas de si mesmo a Deus, colhendo de forma obrigatória o que semeou livre e espontaneamente (Rm 14.10-12; 2Co 5.10; Gl 6.7,8). Deus nos tratará conforme de fato somos: agentes morais responsáveis.[16] É o que veremos no próximo tópico.

Maringá, 17 de setembro de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1]J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p.18-19. Para uma visão crítica do emprego do termo “antinomia”, não do conceito teológico sustentado por Packer, ver: R.C. Sproul, Eleitos de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p. 38-40 e Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 18. Veja-se também: K.S. Kantzer, Paradoxo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 3, p. 98-99 e Anthony Hoekema. Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 11-13.

[2] Veja-se também: As Institutas,III.21.2.

[3]João Calvino, As Institutas, (2006), III.23.8. Na edição de 1541, escrevera: “E que não achemos ruim submeter neste ponto o nosso entendimento à sabedoria de Deus, aos cuidados da qual Ele deixa muitos segredos. Porque é douta ignorância ignorar as coisas que não é lícito nem possível saber; o desejo de sabê-las revela uma espécie de raiva canina” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, v. 3, (III.8), p. 53-54). Semelhantemente, François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 647-648.

[4]João Calvino, As Institutas, III.25.6. Veja-se: As Institutas, III.21.4; Idem., Exposição de Romanos, (Rm 9.14), p. 330.

[5]João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 12.4), p. 242-243.

[6] Confissão Belga, XIII.

[7] J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20.

[8] “…. o Criador é incompreensível para as Suas criaturas. Um Deus que pudesse ser exaustivamente compreendido por nós, cuja revelação sobre Si mesmo não nos apresentasse qualquer mistério, seria um Deus segundo a imagem do homem e, portanto, um Deus imaginário, e nunca o Deus da Bíblia” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 20).

[9]Farley (1935-2018) acentua com propriedade que “Um Deus que não fosse inefável, que fosse inteiramente conhecido como um objeto, uma coisa ou um dado, não seria o Deus da Escritura” (Benjamin Wirt Farley, A Providência de Deus na Perspectiva Reformada: In: Donald K. Mckim, ed. Grandes Temas da Tradição Reformada,São Paulo: Pendão Real, 1999, p. 74).

[10]Uso aqui a expressão de Feuerbach (1804-1872), todavia não aceito a sua hipótese. Se a teologia se limitasse a ser um reflexo daquilo que o homem pensa de si mesmo, aí sim ele teria razão, poderíamos reduzir “a teologia à antropologia”. (Veja-se: L. Feuerbach, A Essência do Cristianismo,Campinas, SP.: Papirus, 1988, (Prefácio à 2. edição, p. 35), p. 55. Para Feuerbach a religião era apenas uma projeção da razão humana, a objetivação da sua essência.”Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa. O que é Deus para o homem é o seu espírito, a sua alma e o que é para o homem seu espírito, sua alma, seu coração, isto é também o seu Deus: Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segredos de amor” (Ibidem.,p. 55-56. Veja-se também, p. 57 e 77). A razão é o critério último de toda a realidade (Ibidem., p. 81); “é a medida de todas as medidas” (Ibidem., p. 84). Deus é uma entidade criada pelo homem à imagem de sua razão: “Como tu pensas Deus, pensas a ti mesmo a medida do teu Deus é a medida da tua razão. Se pensas Deus limitado, então é a tua razão limitada; se pensas Deus ilimitado, então a tua razão não é também limitada (…). No ser ilimitado simbolizas apenas a tua razão ilimitada” (Ibidem., p. 82). Karl Marx (1818-1883), interpretando a concepção de Feuerbach, diz que este “resolve o mundo religioso na essência humana” (Karl Marx, Teses Contra Feuerbach, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 35), 1974, § 6, p. 58). Acrescenta: “Feuerbach não vê, pois, que o próprio ‘ânimo religioso’ é um produto social e que o indivíduo abstrato, analisado por ele, pertence a uma esfera social determinada” (Ibidem.,§ 7, p. 58).

[11]Charles Hodge (1797-1878) observou com precisão: “A teologia não é filosofia. Não pretende descobrir a verdade nem conciliar o que ensina como verdadeiro com todas as outras verdades. Seu lugar é simplesmente declarar o que Deus tem revelado em Sua Palavra, e justificar estas declarações até onde seja possível frente a equívocos e objeções. Este limitado e humilde ofício da teologia é especialmente necessário ter em mente, quando passamos a falar dos atos e propósitos de Deus” (Charles Hodge, Systematic Theology,Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1986, v. 1, p. 535).

[12] L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz Para o Caminho, 1990, p. 32. “…. somos seres humanos, e é preciso que observemos sempre as limitações de nosso conhecimento, e não os ultrapassemos, pois tal gesto seria usurpar as prerrogativas divinas” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos,1998, (1Tm 5.25), p. 160). “Deus não pode ser apreendido pela mente humana. É mister que Ele se revele através de Sua Palavra; e é à medida que Ele desce até nós que podemos, por sua vez, subir até os céus” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.2-7), p. 186). Do mesmo modo, enfatiza Schaeffer (1912-1984): “A comunicação entre Deus e o homem é verdadeira, o que não significa que ela seja exaustiva. Esta é uma importante diferença e precisa sempre ser mantida em mente. Para conhecer qualquer coisa que seja, de forma exaustiva, teríamos que ser infinitos, como Deus é. Mesmo no céu não seremos assim” (Francis A. Schaeffer, O Deus que Intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 151). Veja-se: R.C. Sproul, O que é a teologia reformada: seus fundamentos e pontos principais de sua soteriologia, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 25ss.; R.C. Sproul,  A mão invisível, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 83.

[13]John M. Frame, A Doutrina do Conhecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 37. Veja-se também: Norman Geisler; Peter Bocchino, Fundamentos Inabaláveis: resposta aos maiores questionamentos contemporâneos sobre a fé cristã, São Paulo: Vida Nova, 2003, p. 50.

[14] John F. MacArthur, Jr., Deus: face a face com Sua Majestade, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2013, p. 27.

[15]Abraham Kuyper, A Doutrina Bíblica da Eleição,  Rio de Janeiro: Pro Nobis Editora, 2021, p. 55-56.

[16] Vejam-se: J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 20-23.

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